4 fevereiro 2015,
http://redecastorphoto.blogspot.com (Brasil)
29/1/2015, Entrevista concedida por José Luis Fiori*, Livraria Cultura, SP
Mensagem distribuída por e-mail pelo“Boletim Amigos da Escola
Nacional Florestan Fernandes”, do MST em 3/2/2015.
Enviado pelo pessoal da Vila Vudu.
A vitória do Syriza é um grito de
protesto dos desempregados da Grécia e de toda a Europa e dos deserdados do
estado de bem-estar social, mas também de todos os europeus que resistem a uma
dominação alemã vazia de qualquer conteúdo utópico ou societário.
1. Os países latino-americanos – ou a maioria deles –
optaram por um modelo mais intervencionista e considerado desenvolvimentista,
com foco maior no social. Exemplos como Venezuela, Bolívia e até recentemente o
Brasil, podem servir de paradigma para um novo rumo, entre capitalismo e o dito
socialismo?
Depende do que você chame de “socialismo”. De fato, os governos boliviano,
equatoriano e venezuelano têm utilizado esta palavra para se referir ou definir
a nova estratégia de desenvolvimento que adotaram na primeira década do século
XXI.
Mas se formos mais “ortodoxos’ e fiéis às definições clássicas, o que se
pode dizer é que estes governos – e também o governo brasileiro - estão
revolucionando a trajetória tradicional e secular de suas sociedades e estão
mudando sua face e estrutura extraordinariamente elitista e desigual. Assim
mesmo, as economias destes países seguem sendo capitalistas e, neste sentido,
seus governos me parecem mais próximos do antigo projeto socialdemocrata
europeu de construção de um estado de bem estar social, do que do projeto
cubano clássico de estatização da propriedade e construção do socialismo.
2. Com a equipe econômica nomeada pela presidenta Dilma
Rousseff, o Brasil abandona as políticas anticíclicas e retoma o rumo da
ortodoxia. Qual a sua visão sobre esta guinada? Significa um abandono dos aliados
latino-americanos?
Já escrevi em vários momentos e reitero no meu livro que não acredito que
existam políticas econômicas estritamente de esquerda, nem mesmo considero que
o único caminho progressista seja o das políticas heterodoxas. Acho que a política
econômica sozinha não define nada, até porque todas elas são, em grandes
linhas, “pró-capitalistas”.
Neste sentido, cada política econômica deve ser analisada e julgada dentro
do seu momento e contexto, e sobretudo em função da sua consistência ou não com
os objetivos estratégicos de médio e longo prazo de cada governo. A mesma
política econômica pode ter efeitos completamente diferentes em distintas
circunstancias geopolíticas e geoeconômicas. Por isto também acho que a
avaliação da atual política econômica do governo brasileiro terá que ser
avaliada e criticada a cada momento em função dos objetivos de longo prazo
deste mesmo governo e dos seus antecessores imediatos.
3. A política comercial do Brasil sofre muitas
críticas. Para alguns economistas, o País não pode ser refém do Mercosul e de
outros emergentes. Teria de fazer acordos bilaterais com grandes economias,
como a europeia e a americana, para expandir seu comércio e integrar-se às
“cadeias produtivas globais”. O senhor concorda com esta avaliação? O que
significa em termos geopolíticos?
Acho que temos que começar pela análise e compreensão de como funcionam os
mercados internacionais que mais se assemelham a uma “guerra de movimentos”
entre forças desiguais, do que a um “jogo de troca-troca” entre unidades iguais
e bem informadas.
Uma guerra assimétrica entre estados e capitais, que atuam como “grandes
predadores “ na luta pelo controle monopólico de posições de mercado, inovações
tecnológicas e “lucros extraordinários”. Por isto, acho que o problema do
Brasil não é apenas o de multiplicar acordos comerciais de todo e qualquer
tipo, ou de se integrar a qualquer preço em algumas “cadeias produtivas” cujo
centro de comando e inovação se encontre fora do país.
O verdadeiro desafio é saber como construí-las e/ou conquistá-las a partir
de sua própria capacidade de expansão e inovação. Para avançar neste campo, os
empresários e os economistas brasileiros, de dentro e fora do governo, teriam
que deixar de lado por um tempo os seus manuais e as suas fórmulas ideológicas,
para aprender com a história e a estratégia dos grandes ganhadores, os grandes
estados e capitais vitoriosos que lideraram e lideram os mercados, a inovação
tecnológica e a acumulação de capital, em todo o mundo, desde o século XVI.
O México, por exemplo, calculou que poderia integrar-se às grandes cadeias
produtivas mundiais abrindo sua economia e se integrando de forma radical com a
economia norte-americana e canadense. O NAFTA já tem vinte anos, e até hoje o
México não avançou quase nada na sua participação ou integração nas cadeias
produtivas globais e nem mesmo naquelas capitaneadas pelas grandes empresas
norte-americanas. Porque no balanço final destes acordos de livre comércio
entre economias assimétricas, os países mais fracos só conseguem ganhos
tecnológicos infinitesimais, e acabam sempre ocupando a posição da presa dos
grandes predadores.
Por fim, acho que são os objetivos estratégicos de longo prazo do país,
geopolíticos e geoeconômicos, que devem definir a natureza e extensão dos seus
acordos comerciais, em distintos momentos de sua trajetória interna de
desenvolvimento e da projeção externa do seu poder internacional.
4. Há um modelo de desenvolvimento ideal para o Brasil, a
exemplo da influência da escola cepalina [do CEPAL] em passado recente?
Acho que não há nem nunca houve nenhum modelo ideal de desenvolvimento. O
que existem são algumas regularidades estreitamente associadas ao momento e à
localização do país dentro da luta internacional dos estados e das economias pelo
poder e pela riqueza mundiais. Dependendo da coesão interna de suas elites e da
capacidade de mobilização de suas sociedades em torno dos seus objetivos
prioritários. Aliás, do meu ponto de vista, a “escola cepalina” nunca teve um
modelo ideal de desenvolvimento, nem nunca se propôs definir regras de validade
universal.
O que ela sempre defendeu e que me parece que segue sendo válido, era a
industrialização dos países latino-americanos, como forma de expansão
progressiva da sua capacidade tecnológica, e do controle soberano de suas
próprias políticas econômicas.
5. A retomada das relações diplomáticas entre Cuba e
os EUA significa o que para o pensamento e a prática dos governos
latino-americanos?
Acho que a reaproximação dos dois países foi uma extraordinária vitória
política da sociedade cubana, mas refletiu também a necessidade dos EUA
redefinirem sua política para a América Latina, em face do extraordinário
avanço da presença econômica da China. E mais imediatamente, foi uma tentativa
de resposta dos EUA ao projeto chinês de construção do Grande Canal da
Nicarágua, que anuncia uma concorrência direta com os norte-americanos pelo
controle comercial do Mar do Caribe. De qualquer maneira, esta reaproximação
também foi uma vitória dos demais países latino-americanos que sempre se
colocaram ao lado de Cuba e contra o bloqueio econômico dos EUA .
Neste sentido, esta vitória fortalece também o objetivo e o ideal de uma
comunidade latina mais autônoma e soberana com relação à tradicional hegemonia
hemisférica dos EUA.
6. O Banco dos BRICS tem qual importância para este grupo
tão heterogêneo? Qual a importância geopolítica frente ao FMI, por exemplo?
Creio que a criação deste banco de desenvolvimento junto com o fundo de
compensações, acordados na VIº Reunião de Cúpula, em Fortaleza, em julho de
2014, representou uma mudança qualitativa na trajetória do grupo dos BRICS,
porque é de fato a sua primeira materialização concreta. A partir desta
decisão, por mais longo que venha a ser o seu processo de montagem e
institucionalização, o BRICS deixou de ser apenas um grupo diplomático e
político informal e passou a ter um instrumento concreto de ação econômica e de
administração conjunta.
Talvez tenha sido a decisão mais importante no campo financeiro internacional
das últimas décadas, e a primeira que escapa inteiramente aos desígnios da
finança publica e privada anglo-americana, mesmo sem confrontá-la. Esta decisão
não muda de forma imediata e radical a velha ordem monetário-financeira do
planeta, que foi liderada num primeiro momento pela moeda inglesa e que hoje
segue sendo liderada pela moeda norte-americana. Mas o mais importante é a
forma em que foi dado este passo, assumido como um gesto simbólico e político,
e como parte de uma estratégia de construção de circuitos monetários e
financeiros paralelos e de contenção, mas não necessariamente contraditórios
com a ordem monetária e financeira anglo-saxônica.
7. As recentes crises financeiras puseram em xeque a
hegemonia do capitalismo. Paralelamente, contudo, não surgiram modelos que
pudessem aperfeiçoar ou substituir o vigente. Como o senhor avalia este
cenário?
Não creio que as crises econômicas recentes, ou mesmo as grandes crises
financeiras dos séculos XIX e XX, tenham posto em xeque, em algum momento, a hegemonia
do capitalismo. Talvez tenham posto em discussão a supremacia do modelo liberal
anglo-saxônico de organização e gestão do capitalismo, mas não o próprio
capitalismo. E também acho que cada uma destas crises contribuiu sim para o
surgimento de novas formas ou novos modelos de organização e gestão do
capitalismo. O próprio sucesso da China, hoje, e do “modelo asiático” de
capitalismo desde os anos 70 do século passado, parecem sugerir a existência de
muitas formas distintas, alternativas e renovadas de desenvolvimento do mesmo
capitalismo.
8. Em que sentido o Brasil poderia retomar o protagonismo
nos fóruns mundiais? Aparentemente, após Lula, o País perdeu voz nos grandes
temas. Ou estamos enganados?
Acho que de fato a política externa do governo Dilma teve menos presença e
destaque internacional do que a política do governo Lula. Em parte porque o
próprio Lula foi e é um fenômeno de interesse e destaque internacional por si
mesmo, e além disto, seu governo contou com um ministro de Relações Exteriores
que sempre valorizou a presença ativa mais do que a simples tomada de posições
no campo internacional. Mas isto não quer dizer que este governo não tenha
tomado ou mantido posições extraordinariamente corajosas e inovadores com
relação à crise da Ucrânia, com relação aos recentes ataques de Israel à Faixa
de Gaza, com relação à expansão dos BRICS e da Unasul, com relação à crise
política da Venezuela e do Paraguai, com relação à política de renovação e
modernização do material bélico brasileiro, etc. etc., ou mesmo com relação a
situações conjunturais, como foi o caso de espionagem americana do governo
brasileiro, denunciada pelo Sr. Snowden.
9. Mujica, no Uruguai, foi um presidente admirado e quase
endeusado na América Latina. Trata-se de um ponto fora da curva ou uma forma de
administrar que pode ser replicada?
Considero o ex-presidente Mujica uma pessoa e uma figura política
extraordinária, como o presidente Evo Morales, por exemplo. Mas acho que é
necessário ter em conta as pequenas dimensões territoriais, demográficas e
econômicas do Uruguai, para que se possam extrair lições úteis e replicáveis do
estilo de gestão do seu ex-presidente José Mujica.
10. Quais os desafios principais da América do Sul neste
momento?
Enfrentar os efeitos críticos imediatos e de médio prazo da desaceleração
econômica global, sem abrir mão da estratégia da maioria dos seus países, de
ataque à desigualdade social e promoção e mobilização social ativa de sua
população mais pobre e, ao mesmo tempo, sem abrir mão do seu projeto comum de
unificação política do continente, e de expansão da sua presença, da sua
influencia, do seu poder e de sua participação na riqueza internacional.
11. O recente ataque ao jornal Charlie Hebdo reflete
um mundo cuja intolerância é uma característica? Como lidar com a absorção de
crenças diferentes?
De fato, depois do fim do guarda-chuva ideológico da Guerra Fria, e do
rápido fracasso da utopia da globalização e do projeto imperial e unipolar dos
EUA, aumentou em vários pontos do mundo a intensidade dos conflitos e da
intolerância, sobretudo religiosa e racial. E acho também que o esvaziamento
ideológico do projeto de unificação europeia junto com sua progressiva
desintegração vêm contribuindo decisivamente para este aumento da intolerância
dentro da própria Europa e de sua antiga zona de dominação colonial, na África
e Oriente Médio, onde os europeus e a OTAN seguem atuando como se fossem povos
escolhidos por Deus para gerir o mundo.
Você me pergunta como lidar com estas diferenças e antagonismos crescentes
entre crenças e civilizações? Parece-me que segue válido o modelo helênico da
convivência, do diálogo, do respeito pelas diferenças, além de aceitar de uma
vez por todas que não existem mais apenas dois ou três países que sejam os
responsáveis pela produção dos valores e pela arbitragem e gestão da ética
internacional. E por cima de tudo, enterrar definitivamente a fantasia
arrogante de que existam povos que teriam sido escolhidos e nominados por Deus,
e por isto possuam um mandato divino para civilizar, converter ou mandar nos
demais...
12. Como o senhor avalia a recente vitória eleitoral da
esquerda e do Syriza, e a formação do novo governo liderado por Alexis Tsipras,
na Grécia ?
É difícil avaliar e prever as consequências desta vitória no médio prazo.
Mas sem duvida é um acontecimento de extrema importância e um momento decisivo
na trajetória da crise e desintegração que está vivendo o projeto de unificação
europeia, liderado hoje com mão de ferro pela Alemanha.
Como é sabido, o Syriza não tem o objetivo de deixar a UE, apenas exige uma
revisão radical dos termos do acordo e das políticas de austeridade impostos à
Grécia em troca da ajuda financeira concedida pela Alemanha e pelo FMI, em 2010
– políticas que destruíram naqueles quatro anos a estrutura produtiva e a
sociedade grega.
Mas, atenção, porque o significado desta vitória da esquerda grega vai
muito além da questão econômica e da pura renegociação da dívida e do acordo.
Ela de fato dá voz e força a um movimento subterrâneo que está atravessando
toda Europa neste momento, de insatisfação e de questionamento de um projeto de
unificação que perdeu vigor com o desaparecimento do seu grande inimigo
externo, a URSS, mas sobretudo deixou de ser um sonho coletivo, perdeu sua
dimensão utópica e se transformou apenas num projeto realista e incremental de
construção da supremacia europeia da Alemanha. Uma supremacia que
traz lembranças trágicas para toda a Europa, e para a Grécia muito em
particular.
Neste sentido a vitória do Syriza é um grito de protesto dos desempregados
da Grécia e de toda a Europa e dos deserdados do estado de bem-estar social,
mas também de todos os europeus que resistem contra uma dominação alemã vazia
de qualquer conteúdo utópico ou societário. A pobreza ideológica da Sra. Merkel
e de sua retórica vazia e autoritária, reflete apenas a pobreza a que se viu
condenado um projeto que foi concebido depois da IIa. Guerra Mundial, pelos
“aliados”, para conter a Alemanha, e que acabou se transformando num
instrumento de dominação europeia da própria Alemanha.
*José Luís da Costa Fiori estudou Filosofia na Faculdade de
Filosofia da Universidade Católica do Chile (1968-70), se graduou em Sociologia
no Instituto de Sociologia da Universidade do Chile (1970), fez Mestrado em
Economia na ESCOLATINA, do Instituto de Economia da Universidade do Chile
(1973), doutorado em Ciências Políticas, no Instituto de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (1985) e pós-doutorado na
Faculdade de Economia da Universidade de Cambridge, Inglaterra (2005).
Foi professor assistente de Ciência Política na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP, em 1974/75.
É professor titular de Economia Política Internacional do Instituto de
Economia, e do Núcleo de Estudos Internacionais da UFRJ, e professor titular de
Medicina Social (aposentado) do Instituto de Medicina Social da UERJ.
Foi Diretor de Pós Graduação do Núcleo de estudos Internacionais da UFRJ, e
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional do
Instituto de Economia e do Núcleo de Estudos Internacionais da UFRJ, desde
julho de 2009 até 2011.
É conselheiro da Universidade Estadual de Campinas, consultor ad hoc do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, consultor do
Ministério das Relações Exteriores - DF, consultor ad hoc do
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, consultor ad
hocdo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - DF, consultor ad
hoc - Editora Brasiliense e membro da Associação Nacional de Pós
Graduação Em Ciências Sociais. Já trabalhou e escreveu em vários campos da
Ciência Política, mas pesquisa e ensina há mais de 20 anos no campo das
Relações Internacionais e, em particular, na área de Economia Política
Internacional, com ênfase no estudo das relações entre a geopolítica e a
economia política do “sistema inter-estatal capitalista”.
Até 2008, publicou 9 livros e organizou 5 coletâneas. Ganhou o Premio
Jabuti de Economia, Administração, Negócios e Direito, na Bienal do Livro de
São Paulo, em 1998, com o livro “Poder e Dinheiro. Uma economia Política da
Globalização”, organizado com a professora M.C.Tavares; e recebeu Menção
Honrosa, na Bienal do Livro de 2002, com o livro “Polarização Mundial e
Crescimento”, organizado com o professor C. Medeiros.
Desde 1990, publicou mais de 300 artigos em jornais como Valor Econômico,
Correio Brasiliense, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Jornal do Comercio,
e em revistas como Carta Capital, Exame, Praga, Margem Esquerda, Carta Maior, SinPermisso e La
Onda.
Foi eleito Homem de Idéias de 2001, pelo Caderno de Idéias do Jornal do
Brasil. Atualmente é Coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ/UFRJ, “O Poder
Global e a Geopolítica do Capitalismo”.
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