quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Angola/HISTÓRIAS DE FEVEREIRO (I)

6 fevereiro 2015, Página Global http://paginaglobal.blogspot.com.br (Portugal)

Martinho Júnior, Luanda 

1 – O 4 de fevereiro de 1961 foi para Angola como o soar duma trombeta de revolta, impossível de não se fazer ouvir, nem sentir, dentro e muito para lá das fronteiras angolanas.

A data foi criteriosamente escolhida para a produção do acontecimento, aproveitando-se o facto de estarem presentes em Luanda muitos jornalistas estrangeiros que aguardavam a chegada do paquete Santa Maria (rebaptizado pelos revoltosos de Santa Liberdade), que deveria estar em rota desde a América Central.

O paquete tomado por revoltosos portugueses e galegos a 22 de janeiro de 1961, não chegou, mas os jornalistas tiveram “de bandeja”, o 4 de fevereiro por relatar.

Efectivamente o agrupamento daqueles 150 patriotas angolanos, que com toda a legitimidade se levantava contra o regime fascista-colonial do “Estado Novo”, ainda que recorrendo a armas arcaicas, preencheram a oportunidade e colocaram Angola no centro das atenções internacionais.
  
2 – Os revoltosos produziram um ataque a duas cadeias de Luanda (São Paulo e Casa da Reclusão), onde se encontravam presos vários dos seus compatriotas angolanos, que
também haviam questionado a autoridade colonial-fascista em nome da independência, um ataque dirigido contra os instrumentos de poder, entre guardas prisionais e polícias, que visava libertar esses compatriotas presos.

O critério seguido, demarcou-se de outros acontecimentos seus contemporâneos, tendo em conta os seus objectivos, a organização do empenhamento e aqueles contra os quais foi dirigido o assalto.

Esse critério haveria de distinguir o MPLA durante a longa e justa luta contra o colonialismo, no sentido de independência: o alvo seria sempre o poder colonial-fascista, os seus instrumentos físicos e humanos de poder, em todas as opções de combate e, sob o ponto de vista ideológico-político, o inimigo identificava-se com as condutas do “Estado Novo”.

Jamais o MPLA haveria de confundir essas opções, pelo que as concepções práticas de combate nunca foram dirigidas contra o povo, qualquer que fosse sua identidade nacional, no teatro de operações, havendo sempre o cuidado de não provocar “danos colaterais”, um justificativo tão em voga nos dias de hoje.

Esse tipo de critérios com que se identificou o Movimento de Libertação em África, viria a ser evocado por René Pélissier, o historiador que mais produziu sobre Angola, Moçambique e Guiné Bissau, de modo a explicar o que era um movimento de libertação moderno, em comparação com os etno-nacionalismos seus contemporâneos.
  
3 – De entre os jornalistas presentes em Luanda a 4 de fevereiro de 1961, estava o repórter James Burke da revista “Life”, que cobriu os acontecimentos e deu notícia quer dos funerais dos polícias mortos, quer da onda de repressão que caiu sobre os angolanos, a 5 e a 17 de fevereiro, em vários bairros “indígenas” da capital de Angola.

A repressão indiscriminada que foi levada a cabo por colonialistas à margem, mas com o beneplácito, das autoridades coloniais, atingiu populações dos bairros mais pobres de Luanda, onde residiam muitos dos corajosos angolanos que levaram a cabo os assaltos de 4 de fevereiro.

No seguimento da primeira vaga de repressão, o Governador-Geral Silva Tavares visitou alguns desses bairros, a fim de com isso iniciar a manobra de contrapropaganda do colonialismo, face às reportagens de jornalistas estrangeiros que se referiram aos acontecimentos de forma muito mais isenta e com base nos factos.

O jornalista James Burke apresentou na “Life” uma reportagem fotográfica, que não deixava margem para dúvidas sobre as baixas dum lado e do outro: do lado colonial os guardas e polícias mortos (fotos dos seus funerais), do lado angolano, civis que foram alvo da repressão indiscriminada (por exemplo, a foto a que nos reportamos).

Na imprensa portuguesa (“O Século” e o “Diário de Lisboa”, entre outros) a contrapropaganda fascista-colonial sustentava o argumento das autoridades, abafando os estragos sangrentos da repressão e sem poder deixar de se referir, mesmo assim, à tomada da nave Santa Liberdade, nem aos nexos tácitos entre esses dois acontecimentos, ainda que não houvesse ainda qualquer tipo de efectivo “vaso comunicante” entre os seus protagonistas.

Na altura, o único “vaso comunicante” de facto, era a natureza fascista e colonial do Estado Novo, que fazia mover as consciências mais esclarecidas da península Ibérica, como dos patriotas angolanos.

O 4 de fevereiro desse modo não permitiu às autoridades coloniais “rédea solta” em termos de completo domínio de propaganda e contrapropaganda, como ocorreu com a revolta da Baixa do Cassanje, até por que do outro lado da barricada, para além do conhecimento público dos factos que ocorriam no Atlântico Sul, a denúncia do carácter do Estado Novo tornou-se por demais evidente! 

(No original: Foto publicada na revista “Life” ilustrando a repressão que se abateu de forma indiscriminada sobre os angolanos, no rescaldo dos ataques às prisões a 4 de fevereiro de 1961.)

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4 – Na Península Ibérica, no início da década de sessenta, eram já muitos os que com consciência crítica optavam por lutar contra o fascismo que exercia o poder em Espanha e Portugal, no rescaldo aliás da Guerra de Espanha e da IIª Guerra Mundial.

Esses lutadores antifascistas, tinham também consciência do carácter do colonialismo do Estado Novo que se havia implantado em Portugal e começavam a identificar-se com as causas do nascente Movimento de Libertação em África.

Alguns desses militantes antifascistas portugueses e espanhóis (galegos) constituíram o DRIL, “Directório Revolucionário de Libertação”, que se propôs à luta através de operações com componentes fortes de propaganda, com vista a criar um persistente impacto de opinião e comentário, a nível internacional, que denunciasse, expusesse e contrariasse o carácter do Estado Novo.
Os revolucionários a ocidente, inspiravam-se na Revolução Cubana e assumiam nos seus comportamentos e atitudes, um romantismo que tocava as raias dum surrealismo e aventureirismo, de imprevisíveis consequências…

O DRIL decidiu-se a desencadear a “Operação Dulcineia”, a tomada pela força por parte dum comando seu do paquete Santa Maria, a navegar em águas internacionais, para com isso denunciar o fascismo-colonialismo português, aproveitando para desviar o navio, que seria rebaptizado nesse âmbito com o nome de Santa Liberdade, de sua rota, pretensamente com vista a alcançar Luanda.

O Santa Liberdade (o Santa Maria pertencia à Companhia Colonial de Navegação, com pavilhão português), navegava no Mar das Antilhas, próximo de Santa Lúcia, com cerca de um milhar de passageiros e tripulantes a bordo, largara de Tenerife no dia 13, aportara em La Guayra (Venezuela) e em Curaçau e seguia para Miami (Estados Unidos), quando foi tomado pelo comando do DRIL.

O navio acabou por ser interceptado por meios aéreos e navais dos Estados Unidos e da Grã Bretanha (mais uma manobra do amplo espectro da NATO) e, após negociações, acabou por aportar a Recife, no Brasil, a 1 de fevereiro de 1961, com a evidente denúncia do carácter do Estado Novo pela cobertura mediática internacional da época, conforme pretendiam os componentes do comando, que tinham entre os portugueses, protagonistas ao nível do Capitão Henrique Galvão, ligado ao General antifascista Humberto Delgado, que aliás também chegaria a bordo do navio tomado pelos rebeldes.
  
5 – O Santa Liberdade, segundo depoimento do criterioso jornalista e patriota português Miguel Urbano Rodrigues no Alentejo Popular, entrevista essa reproduzida pelo Resistir Info, um antifascista que também participara na tomada do navio pelo comando do DRIL, deveria de acordo com uma versão inicial, dirigir-se das Antilhas a Fernando Pó (hoje território da Guiné Equatorial), onde o comando previa apossar-se de duas canhoneiras espanholas que ali se encontravam, que se dirigiriam por seu turno a Luanda, com vista a projectar um levantamento revolucionário.

Esse plano seria abandonado pelo que outra previsão chegou a estar em cima da mesa: “transferir os comandos do DRIL para a Guiné-Conakry para colaborarem na luta de libertação da Guiné-Bissau”…

Escolhemos pois propositadamente a versão do camarada Miguel Urbano Rodrigues, pela sua honestidade intelectual e histórico-narrativa, assim como pelo facto de ele se pronunciar sobre a ligação ao Movimento de Libertação em África, apesar de outras versões sobre a tomada do Santa Maria, uma delas constante no livro do galego José Fernandes, “Comandante Soutomaior”, (“24 homens e mais nada”).

Os desentendimentos entre os membros do comando do DRIL por um lado e por outro a persistente presença militar norte-americana que agiu em conformidade a pedido do governo português, seguindo a manobra do navio tomado pelos rebeldes, levou a conversações entre os dirigentes da “Operação Dulcineia” e entidades diplomáticas e navais dos Estados Unidos e do Brasil, com a decisão de encaminhar o Santa Liberdade para o Recife, onde desembarcariam os assaltantes, que acabariam por entregar a “nave dos loucos”.

O camarada Miguel Urbano Rodrigues relata assim a composição do grupo que compunha a“Operação Dulcineia”: “eram 24 os membros do comando do DRIL que tomou o Santa Maria. A maioria espanhóis, quase todos anarquistas. Alguns diziam ser marxistas, mas, com uma ou outra excepção, espanhóis e portugueses não tinham formação política. Eram antifascistas e a Revolução Cubana empolgava então a juventude na América Latina. Aproximadamente uma dezena de tripulantes aderiu; gente boa, mas também sem formação política”.
  
6 – O depoimento do camarada Miguel Urbano Rodrigues, que viria a ser digno militante do Partido Comunista Português, retracta de forma lúcida as personagens dos dirigentes do comando do DRIL na “Operação Dulcineia”, realça o papel dos galegos Velo e Soutomaior e é tão sóbrio, quanto cáustico, no exercício de rigor que fez em relação à verdade dos acontecimentos, como na humildade que teve para com o Movimento de Libertação em África, que constituiu para ele uma prova de universidade de vida.

Esse depoimento expõe o oportunismo do Capitão Henrique Galvão, que logo após o desembarque no Recife e quando no Brasil teve conhecimento do início da luta armada com a eclosão do 4 de fevereiro em Angola, “manifestou-se contra a independência das colónias, assumindo posições racistas que chocaram a juventude brasileira”…

Segundo ainda o camarada Miguel Urbano Rodrigues, os pronunciamentos do Capitão Henrique Galvão acabariam por tomar o seguinte rumo: “as divergências sobre a questão colonial foram aliás decisivas para o rompimento com Humberto Delgado, ocorrido semanas depois. Nos anos seguintes – morreu em 1970 – assumiu posições ostensivamente reaccionárias, marcadas por um anticomunismo anacrónico”.

Em relação à universidade de vida que se constituía no Movimento de Libertação em África, o camarada Miguel Urbano Rodrigues deu a conhecer sem margem para retóricas o seguinte:

…“A ideia era transferir para África o núcleo de comandos que participara na tomada do Santa Maria. Em Conakry, após um encontro com Amílcar Cabral, mantive contactos com os embaixadores da Jugoslávia e da União Soviética com vista eventual obtenção de vedetas armadas que nos permitissem interceptar os transportes de tropas portugueses que seguiam para Angola. O plano era expressão daquilo a que Lenine chamou o esquerdismo, doença infantil do comunismo. Recordando a iniciativa, mais do que a minha irresponsabilidade, o que me surpreende hoje é o facto de esses diplomatas me terem recebido e escutado com atenção... O comando do DRIL tinha-se, aliás, desagregado quando semanas depois voltei ao Brasil”…

… “O encontro com dirigentes do MPLA e do PAIGC ficou a assinalar um terramoto interior. As semanas de Conakry desencadearam em mim uma reflexão simultaneamente tempestuosa e serena. Ao regressar ao Brasil não era o mesmo jovem que concebera planos loucos a serem executados pelos companheiros do DRIL. No livro de memórias a que me referi evoco a viragem que me levou a contemplar o mundo e o comprometimento revolucionário sob outra perspectiva. Amílcar Cabral foi de todos os dirigentes africanos que então conheci o que mais me impressionou. Senti que me tratava como se fosse um velho camarada, não obstante eu ter esboçado um projecto irresponsável. Foi o início de uma relação de confiança, amistosa, reforçada pelo contacto que mantivemos através da troca de cartas. Numa homenagem à sua memória, em Lisboa, afirmei, parafraseando um discurso seu, que "flores vermelhas, como o sangue dos mártires africanos, e outras, com o verde terno da esperança, cresceram já sobre o seu túmulo". As suas ideias e o seu exemplo adquiriram a consistência do que é imortal. O legado de Amílcar Cabral tornou-se património da humanidade.

Para terminar, permita que evoque um episódio. Pouco depois de regressar de África, procurei o representante do Partido Comunista Português no Brasil, que era então Álvaro Veiga de Oliveira, e disse-lhe o que me pareceu útil sobre a minha ruptura com o esquerdismo romântico. Eu lera em Conakry, no Avante!, o documento em que o PCP anunciava uma nova estratégia que deveria desembocar no levantamento nacional, numa desejada insurreição popular armada. Lembro-me das palavras finais que então pronunciei: Vou lutar com os comunistas pelo tempo adiante. Podem contar comigo para sempre. Foi há quase 50 anos”…

…Foi há precisamente 54 anos, quando a Revolução Cubana inspirava em África um Movimento de Libertação cuja lógica fundamentada na história dos oprimidos e no sentido de vida que eles tão legitimamente buscavam, permitiu aos seus seguidores que ela se estendesse até aos nossos dias!

Na foto (N ooriginal): O Santa Liberdade, sob observação dum “Superconstelation” de reconhecimento, ao serviço da US Navy, a sobrevoar o navio.

Notas a consultar:
[1] O Tempo e o Espaço em que Vivi - I Tomo , Campo das Letras, Porto, 2002, 264 pgs., ISBN: 9789726105343
O Tempo e o Espaço em Que Vivi - II Tomo , Campo das Letras, Porto, 2004, 328 pgs., ISBN: 9789726108160

-- O original encontra-se em 
http://www.alentejopopular.pt/noticias.asp?id=6036

Esta entrevista encontra-se em 
http://resistir.info/ . 



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