1º. setembro2014, Resistir.info http://www.patrialatina.com.br
(Portugal)
Esta terceira recessão que se inicia, diferente das outras duas
anteriores, está voltada para países centrais da Zona do Euro, Alemanha, França
e Itália.
Vicenç Navarro*, Carta
Maior
Não há dúvidas de que, quando for escrita a história da União
Europeia e da Zona do Euro dentro dela, será mostrado até que ponto uma
religião laica – o neoliberalismo – pode ser reproduzida apesar de toda a
evidência empírica acumulada mostrando não apenas que tal religião estava
equivocada, mas também o enorme prejuízo que ela está causando nas classes
populares dos países da União. A religião laica se promove com um espírito
apostólico, baseado em uma fé impermeável à evidência científica, revelando claramente
sua grande falsidade. Atualmente, esta fé, reproduzida pela maioria da mídia,
está anunciando que a Espanha e a Zona do Euro estão se recuperando, quando, na
realidade, estamos entrando em outra recessão. Vejamos os dados.
Desde que, no ano de 2007, teve início a Grande Recessão, que para
muitos países foi pior do que a Grande Depressão, houve, na Zona do Euro, nada
menos que duas recessões, consequência da aplicação das políticas neoliberais.
A primeira ocorreu no período 2008-2009. Foi seguida de uma rapidíssima
recuperação (com um crescimento econômico da Zona do Euro de somente 0,5% do
PIB) no período 2009-2010, para cair novamente em outra recessão, que durou 18
meses e que anulou o escassíssimo crescimento que tinha acontecido na etapa de
crescimento anterior. No ano de 2012, iniciou-se outra
excessivamente tímida
recuperação com um crescimento de somente 0,2% do PIB, recuperação que está
sendo novamente revertida, iniciando agora uma terceira recessão (o PIB da Zona
do Euro caiu 0,2%), alcançando três recessões em cinco anos. Um recorde! Na
realidade, a economia da Zona do Euro nunca se recuperou desde a queda de 2007,
quando teve início a Grande Recessão. As pequeníssimas recuperações eram, mais
do que tudo, pequenos saltos do fundo do abismo.
Estamos
agora no início da terceira recessão
O que é importante sublinhar é que esta terceira recessão que se
inicia, diferentemente das outras duas anteriores, está voltada para países
centrais da Zona do Euro, Alemanha, França e Itália. As outras duas anteriores
tinham se centrado nos países periféricos, Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda.
De certa maneira, esta recessão é consequência da Grande Recessão que,
finalmente, atingiu em cheio o centro e o eixo da Zona do Euro. O PIB dos três
países centrais soma 8,8 trilhões de euros, que é o tamanho da economia da
China. E dado que a economia da Alemanha (que equivale um terço do PIB da Zona
do Euro) se baseia muito nas exportações, que representam 56% de sua economia,
esta queda da economia do centro da Zona do Euro prevê uma desaceleração da
economia mundial.
Os fatos políticos que estão acontecendo no continente europeu, dos
quais o conflito da Ucrânia é de grande importância, contribuíram (apesar de
não terem causado) para esta terceira recessão. O golpe de Estado na Ucrânia,
com o apoio dos governos da União Europeia e dos Estados Unidos, iniciou uma
situação de conflito, reavivando a Guerra Fria, que já está tendo um custo
econômico considerável. Mas a principal causa da terceira recessão são as políticas
neoliberais baseadas na austeridade (os infames cortes e o desmantelamento do
Estado de bem-estar social, a diminuição dos salários e o crescimento do
desemprego), que estão destruindo o bem-estar das classes populares.
E estas políticas estão sendo feitas para benefício e glória do que
antes era chamado o capital, hegemonizado pelo capital financeiro, e que agora
se chama o 1%. Atualmente, o establishment (ou seja, a estrutura do poder
econômico, financeiro, midiático e político) europeu, centrado na Comissão
Europeia, no Banco Central Europeu, o Conselho Europeu e o governo alemão e
seus aliados, como o governo Rajoy, está realizando tais políticas com toda
crueldade, respondendo a cada crise com a resposta previsível de que o fato de
não sair da crise é porque precisam aplicá-las inclusive com mais força e
contundência, levando as classes populares à ruína. Três recessões em cinco
anos é o resultado.
E o grande drama é que as esquerdas governantes aceitaram e
continuam aceitando o dogma neoliberal. Sua versão é a versão light das mesmas
políticas. Não têm mais a ver com as propostas econômicas dos principais
partidos social-democratas de oposição, incluindo o PSOE (cujo novo
secretário-geral enfatizou, em sua entrevista ao El País, como ponto central de
seu programa econômico melhorar a competitividade europeia e espanhola), para
perceber que não há uma mudança substancial destas políticas, sob o argumento
de que estas são as únicas possíveis. Acusam as únicas alternativas que
permitem romper com esta série de recessões de utópicas, demagógicas e uma
série de epítetos desqualificativos. A experiência histórica mostra que, para
sair desta recessão crônica (que, repito, alcança dimensões de depressão em
muitos países), é necessária uma mudança quase de 180º da política aplicada.
Há
alternativas
Sim, por exemplo, nos centramos em um dos maiores problemas – o
endividamento das famílias e de grandes e pequenas empresas – a solução é fácil
de ver. Os Estados têm que garantir o crédito, tomando uma série de medidas,
desde mudar a governança do euro e do BCE, estabelecendo o crescimento
econômico como objetivo deste Banco, até aumentar a capacidade aquisitiva das
classes populares com um aumento muito notável e massivo do gasto público,
incluindo o gasto em infraestruturas, não somente físicas, mas sociais do país,
facilitando o alcance da felicidade (sim, leu certo, felicidade) como objetivo
do novo modelo econômico-social, e não a acumulação de benefícios do capital. E
tudo isso não acontecerá sem uma profunda democratização das instituições que
refletem a vontade e a soberania popular. Atualmente, a demanda mais
revolucionaria existente na Europa não é a nacionalização dos meios de
produção, mas a exigência de que cada cidadão tenha a mesma capacidade de decisão
em um país, enfatizando as formas de participação direta (o direito a decidir
todos os níveis), além de democratizar as escassamente democráticas
instituições representativas.
Exigir democracia com toda contundência e agitação (que deve
excluir qualquer forma de violência) é revolucionário, pois entra em conflito
direito com as estruturas que controlam as instituições que se autodefinem como
democráticas.
Também não é afirmar que a propriedade dos meios de produção,
distribuição, persuasão e legitimação é chave para definir o grau de liberdade,
democracia e justiça existente em um país. Mas, a não ser que os sistemas
escassamente democráticos mudem, não haverá maneira de que o resto do mudo.
O grande erro de muitas esquerdas radicais tem sido se limitar à
agitação, sem intervir na luta dentro do Estado. Estas esquerdas devem estar na
rua e nas instituições, exigindo mudanças radicais (ou seja, que vão às raízes
do problema de concentração de poder) contra as quais as estruturas e castas de
poder vão se opor de todas as maneiras. As classes populares poderão alcançar o
que desejam se se mobilizarem. O problema principal existente na Espanha não é
que a população não seja consciente das enormes limitações da democracia
espanhola, mas sim não acreditar que isto possa mudar. Mas a história mostra
que sim, é possível. Ao contrário do que as estruturas de poder informaram, a
mudança de ditadura para democracia aconteceu como consequência da enorme
mobilização popular, liderada pelo movimento trabalhador. Foi esta mobilização
que colocou fim na ditadura. E esta mobilização podem também forçar mudanças
agora, democratizando autenticamente o país.
*Vicenç Navarro foi Catedrático de Economia Aplicada da Universidade de
Barcelona. Atualmente é Catedrático de Ciências Políticas e Sociais da
Universidade Pompeu Fabra de Barcelona. É também professor de Políticas
Públicas na Johns Hopkins University (Baltimore, EUA) onde lecionou por 35
anos. Dirige o Programa em Políticas Públicas e Sociais patrocinado.
Tradução:
Daniella CambaúvaEuropeu, Conselho Europeu
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