22 agosto 2014, Outras Palavras http://outraspalavras.net (Brasil)
Criá-lo foi ato desumano de colonialismo. Extinto, pode dar lugar a Estado plurinacional e secular, onde judeus e palestinos convivam pacífica e dignamente
8/3/2013: Jovem manifestante palestino foge dos guardas de fronteira israelense, durante confronto contra a expropriação de terras palestinas em Kafr Qaddum
Por Boaventura
de Sousa Santos*
Podem simples cidadãos de todo o mundo organizar-se
para propor em todas as instâncias de jurisdição universal possíveis uma ação
popular contra o Estado de Israel no sentido de ser declarada a sua extinção,
enquanto Estado judaico, não apenas por ao longo da sua existência ter cometido
reiteradamente crimes contra a humanidade, mas sobretudo por a sua própria
constituição, enquanto Estado judaico, constituir um crime contra a humanidade?
Podem. E como este tipo de crime não prescreve, estão a tempo de o fazer. Eis
os argumentos e as soluções para restituir aos judeus e palestinianos e ao
mundo em geral a dignidade que lhes foi roubada por um dos atos mais violentos
do colonialismo europeu no século XX, secundado pelo imperialismo
norte-americano e pela má consciência europeia desde o fim da segunda guerra
mundial.
O termo sionismo designa o movimento que apoia o
“regresso” dos judeus à sua suposta pátria de que também supostamente foram
expulsos no século V AC. Há, no entanto, que distinguir entre sionismo judaico
e sionismo cristão. O sionismo judaico tem origem no antissemitismo que
desgraçadamente sempre perseguiu os judeus na Europa e que viria a culminar no
holocausto nazi. O sonho de Theodor Herzl, judeu austríaco e grande poponente
do sionismo, era a criação, não de um Estado judaico, mas de uma pátria segura
para os judeus. O sionismo cristão, por sua vez, é antissemita, e a ideia de um
Estado judaico deveu-se a políticos britânicos, sionistas e anglicanos devotos,
como Lord Shaftesbury, que, acima de tudo, [1]desejavam ver o seu país livre
dos judeus-enquanto-judeus. Eram tolerados os judeus cristianizados (como
Benjamin Disraeli, que chegou a ser Primeiro Ministro), mas só esses. Esta
tolerância estava de acordo com a profecia cristã de que é destino dos judeus
converterem-se ao cristianismo. O mesmo sentimento se encontra hoje entre os
evangélicos norte-americanos, que apoiam Israel como Estado judaico, bem como a
sua desapiedada expansão colonialista contra os palestinianos, por acreditarem
que a redenção total ocorrerá no fim dos tempos, com a conversão dos judeus na
Parusia (o regresso de Jesus Cristo).
Terá sido Lord Shaftesbury quem, ainda no século XIX,
formulou o pensamento “uma terra sem povo para um povo sem terra” que ajudaria
mais tarde a justificar a criação do Estado de Israel na Palestina em 1948. E
alguns anos mais tarde, foi outro sionista não judeu (Arthur James Balfour)
quem propôs a criação de “uma pátria para os judeus” na Palestina, sem
consultar os povos árabes que habitavam esse território há mais de mil anos.
“Os Grandes Poderes” (Áustria, Rússia, França,
Inglaterra), lê-se no Memorandum Balfour de 11 de Agosto de 1919, “estão
comprometidos com o Sionismo. E o Sionismo, correto ou incorreto, bom ou mau,
tem as suas raízes em antiquíssimas tradições, em necessidades atuais e em
esperanças futuras, que são bem mais importantes do que os desejos de 700.000
árabes que neste momento habitam aquele antigo território”. Urgia, pois,
transformar esses árabes em um não-povo. Em 1948, com o beneplácito dos poderes
ocidentais, especialmente da Inglaterra, foi criado o Estado de Israel numa
Palestina povoada de árabes e 10% de judeus imigrantes.
Argumentava-se então que havia de se encontrar um
espaço para o povo judeu, que ninguém queria receber depois do genocídio
alemão. Muito antes dessa catástrofe, os sionistas judeus tinham já pensado em
vários locais para[2] o seu futuro Estado. No final do século XIX, a região do
Uganda, no que é hoje o Quénia, então colónia inglesa, foi ponderada como um
possível local para o futuro Estado de Israel. Um espaço na Argentina chegou
também a ser considerado. Mais tarde, auscultado sobre um local no norte de
África (no que é hoje a Líbia), o rei da Itália, Victor Emmanuel, terá
recusado, respondendo: “Ma è ancora casa di altri”. Mas nenhum europeu, por
mais preocupado com a situação dos judeus, jamais pensou num lugar dentro da
própria Europa. Havia que inventar-se “uma terra sem povo para um povo sem
terra”. Mesmo que fosse necessário obliterar um povo. E assim se vem
paulatinamente eliminando um povo da face da terra desde há sessenta e seis
anos. A Cisjordânia palestiniana vem sendo desmantelada pelos colonatos ilegais
e a Faixa de Gaza transformada em prisão a céu aberto. A extrema-direita
israelita é apenas mais estridente do que o governo ao reclamar que os “árabes
fedorentos de Gaza sejam lançados ao mar”. O que é espantoso, comenta o
historiador judeu israelita, Ilan Pappé em The Ethnic Cleansing of Palestine
(2006), é ver como os judeus, em 1948, há tão pouco tempo expulsos das suas
casas, espoliados dos seus pertences e por fim exterminados, procederam sem
pestanejar à destruição de aldeias palestinianas, com expulsão dos seus
habitantes e massacre daqueles que se recusaram a sair. O controverso
comentário de José Saramago de há alguns anos de que o espírito de Auschwitz se
reproduz em Israel faz hoje mais do que nunca.
Assim foi sacrificada a Palestina, invocadas razões
bíblicas e históricas, que a Bíblia não sanciona e a história viria a
desmistificar. Muitos judeus, como os que constituem a Jewish Voice for Peace,
não são sionistas e consideram que o Estado de Israel, nas condições em que foi
criado (um território, um povo, uma língua, uma religião) é uma arcaica
aberração [3] colonialista fundada no mito de uma “terra de Israel” e de um
“povo judaico”, que a Bíblia nem sequer confirma. Como bem demonstra, entre
outros, o historiador judeu israelita, Shlomo Sand, a Palestina como a “terra
de Israel” é uma invenção recente (The Invention of the Land of Israel, 2012).
Aliás, ainda segundo o mesmo autor, também o conceito de “povo judaico” é uma
invenção recente (The Invention of the Jewish People, 2009).
A criação do Estado judaico de Israel configura um
crime continuado cujos abismos mais desumanos se revelam nos dias de hoje.
Declarada a sua extinção, os cidadãos do mundo propõem a criação na Palestina
de um Estado secular, plurinacional e intercultural, onde judeus e
palestinianos possam viver pacifica e dignamente. A dignidade do mundo está
hoje hipotecada à dignidade da convivência entre palestinianos e judeus.
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