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setembro 2014, Leonardo Boff http://leonardoboff.wordpress.com
(Brasil)
Entrevista com o teólogo
brasileiro Leonardo Boff, conhecido internacionalmente pelo seu trabalho na
promoção da Teologia da Libertação. No Brasil, apoiou o lançamento de Marina
Silva na política. (Mercosul & CPLP)
Entrevista
publicada em 3 de setembro de 2014 às 18:48 por Conceição Lemes para
o Portal VIOMUNDO. Veja a íntegra da nossa entrevista (com alguns retoques do
autor)
Viomundo
— Na última sexta-feira, Marina lançou o seu programa de governo, que previa o
reconhecimento da união homoafetiva e a criminalização da homofobia. Bastou o
pastor Malafaia (1) tuitar quatro frases para ela voltar atrás. O que achou
dessa postura? É cristão não criminalizar a homofobia, que frequentemente
provoca assassinatos?
Leonardo
Boff — Está
ficando cada vez mais claro que Marina tem um projeto pessoal de ser
presidente, custe o que custar. Numa ocasião, ela chegou a declarar que um dos
objetivos desta eleição é tirar o PT do poder, o que faz supor mágoas não
digeridas contra o PT que ajudou a fundar.
O
Malafaia, líder da Igreja Assembleia de Deus à qual Marina pertence, é o seu
Papa. O Papa falou, ela, fundamentalisticamente obedece, pois vê nisso a
vontade de Deus. E, aí, muda de opinião. Creio que não o faz por oportunismo
político, mas por obediência à autoridade religiosa, o que acho, no regime
democrático, injustificável.
Um
presidente deve obediência à Constituição e ao povo que a elegeu e não a uma
autoridade exterior à sociedade.
Viomundo
— Qual o risco para a democracia brasileira de alguém na presidência estar
submissa a visões tão retrógradas em pleno século XXI, ignorando os avanços, as
modernidades?
Leonardo
Boff — Um
fundamentalista é um dos atores políticos menos indicado para exercer o
cargo da responsabilidade de um presidente. Este deve tomar decisões dentro dos
parâmetros constitucionais, da democracia e de um estado laico e pluralista.
Este tolera todas as expressões religiosas, não opta por nenhuma, embora
reconheça o valor delas para a qualidade ética e espiritual da vida em
sociedade.
Se
um presidente obedece mais aos preceitos de sua religião do que aos da
Constituição, fere a democracia e entra em conflito permanente com
outros até
de sua base de sustentação, pois os preceitos de uma religião particular não
podem prevalecer sobre a totalidade da sociedade.
A
seguir estritamente nesta linha, pode acontecer um impeachment à
Marina, por inabilidade de coordenar as tensões políticas e gerenciar conflitos
sempre presentes em sociedades abertas.
Viomundo
— Lá atrás Marina Silva esteve ligada à Teologia da Libertação. Atualmente, é
da Assembleia de Deus. O que o senhor diria dessa trajetória religiosa? O que
representa essa guinada para o conservadorismo exacerbado?
Leonardo
Boff – Respeito a
opção religiosa de Marina bem como de qualquer pessoa. Eu a conheço do Acre e
ela participava dos cursos que meu irmão teólogo Frei Clodovis (trabalhava 6
meses na PUC do Rio e 6 meses na igreja do Acre) e eu dávamos sobre Fé e
Política e sobre Teologia da Libertação.
Aqui
se falava da opção pelos pobres contra a pobreza, a urgência de se pensar e
criar um outro tipo de sociedade e de país, cujos principais protagonistas
seriam as grandes maiorias pobres junto com seus aliados, vindos de outras
classes sociais. Marina era uma liderança reconhecida e amada por toda a
Igreja.
Depois,
ao deixar o Acre, por razões pessoais, converteu-se à Igreja Assembleia de
Deus. Esta se caracteriza por um cristianismo fundamentalista, pietista e
afastado das causas da pobreza e da opressão do povo. Sua pregação é a Bíblia,
preferentemente o Antigo Testamento, com uma leitura totalmente
descontextualizada daquele tempo e do nosso tempo. Como fundamentalista é uma
leitura literalista, no estilo dos muçulmanos.
Politicamente
tem consequências graves: Marina pôs o foco no pietismo e no fundamentalismo,
na vida espiritual descolada da história presente e quase não fala mais da
opção pelos pobres e da libertação. Pelo menos não é este o foco de seu
discurso.
A
libertação para ela é espiritual, do pecado e das perversões do mundo. Com esse
pensamento fica fácil ser capturada pelo sistema vigente de mercado, da
macroeconomia neoliberal e especulativa.
Isso
é inegável, pois seus assessores são desse campo: a herdeira do Banco Itaú
Maria Alice (Neca), Guilherme Leal da Natura e o economista neoliberal Eduardo
Gianetti da Fonseca. Os pobres perderam uma aliada e os opulentos ganharam uma
legitimadora.
E
eu que em 2010 sonhava com uma representante dos povos da floresta, dos
caboclos, dos ribeirinhos, dos indígenas, dos peões vivendo em situação análoga
à escravidão, dos operários explorados das grandes fábricas, dos invisíveis, alguém
que viria dos fundos da maior floresta úmida do mundo, a Amazônia, chegar a ser
presidente de um dos maiores países do mundo, o Brasil?! Esse sonho foi uma
ilusão que faz doer até os dias de hoje. Pelo menos vale como um sonho que
nunca morre!
Viomundo
— O programa de Marina prevê autonomia ao Banco Central. O que acha dessa
medida?
Leonardo
Boff — Eu me
pergunto, autonomia de quem e para quem?
Acho
uma falta total de brasilidade. Significa renunciar à soberania monetária do
país e entregá-la ao jogo do mercado, dos bancos e do sistema financeiro
capitalista nacional e transnacional. Um presidente/a é eleito para governar
seu povo e um dos instrumentos principais é o controle monetário que assim lhe
é subtraído. Isso é absolutamente antidemocrático e comporta submissão à
tirania das finanças que são cada vez mais vorazes, pondo países inteiros à
falência como é o caso da Grécia, da Espanha, da Itália, de Portugal e outros.
Viomundo
— Essa medida expressa a influência de Neca Setúbal, herdeira do Itaú, no seu
futuro governo?
Leonardo
Boff — Quem
controla a economia controla o país, ainda mais que vivemos numa sociedade de
“Grande Transformação” denunciada pelo economista húngaro-americano Karl
Polaniy ainda em 1944 quando, como diz, passamos de uma sociedade com mercado
para uma sociedade só de mercado. Então tudo vira mercadoria, inclusive as
coisas mais sagradas como água, alimentos, órgãos humanos.
A
forma como o capital se impõe é manter sob seu controle os Bancos Centrais
dos países. A partir desse controle, estabelecem os níveis dos juros, a meta da
inflação, a flutuação do dólar e a porcentagem do superávit primário (aquela
quantia tirada dos impostos e reservada para pagar os rentistas, aqueles que
emprestaram dinheiro ao governo).
Os
bancos jogam um papel decisivo, pois é através deles que se fazem os repasses
dos empréstimos ao governo e se cobram juros pelos serviços. Quanto maior for o
superávit primário a alíquota Selic mais lucram. Pode ser que a citada Neca
Setúbal tenha tido influência para que a candidata Marina acreditasse neste
receituário, velho, antipopular, danoso para as grandes maiorias, mas altamente
benéfico para o sistema macroeconômico vigente.
Viomundo — As avaliações feitas até agora mostram que o programa econômico de Marina é o mesmo de Aécio Neves, candidato do PSDB (2) à Presidência. São neoliberais. O que representaria para o Brasil o retorno a esse modelo? O senhor acha que, se eleita, o governo Marina teria conotações neoliberais?
Viomundo — As avaliações feitas até agora mostram que o programa econômico de Marina é o mesmo de Aécio Neves, candidato do PSDB (2) à Presidência. São neoliberais. O que representaria para o Brasil o retorno a esse modelo? O senhor acha que, se eleita, o governo Marina teria conotações neoliberais?
Leonardo
Boff — Marina
acolheu plenamente o receituário neoliberal. Ela o diz com certo orgulho
inconsciente, sem dar-se conta do que isso realmente significa: mercado livre,
redução dos gastos públicos (menos médicos, menos professores, menos agentes
sociais etc), flutuação do dólar e contenção da inflação com arrocho salarial,
desemprego e com eventual alta de juros.
Como
consequência, grassa a fome nas famílias pobres e a mortalidadae infantil se
torna inevitável. É o pior que nos poderia acontecer. Tudo isso vem sob o nome
genérico de “austeridade fiscal” ,que está afundando as economias da zona do
Euro e não deram certo em lugar nenhum do mundo, se olharmos a política
econômica a partir da maioria da população. Dão certo para os ricos que ficam
cada vez mas ricos, como é o caso dos EUA onde 1% da população ganha o
equivalente ao que ganham 99% das pessoas. Hoje os EUA são um dos países mais
desiguais do mundo.
Viomundo
– Foi amplamente divulgado que Marina consulta a Bíblia antes de
tomar decisões complexas. Esta visão criacionista do mundo é compatível com um
mundo laico?
Leonardo
Boff — O que
Marina pratica é o fundamentalismo. Este é uma patologia de muitas religiões,
inclusive de grupos católicos. O fundamentalismo não é uma doutrina. É uma
maneira de entender a doutrina: a minha é a única verdadeira e as demais estão
erradas e como tais não têm direito nenhum.
Graças
a Deus que isso fica apenas no plano das ideias. Mas facilmente pode passar
para o plano da prática. E, aí, se vê evangélicos fundamentalistas invadirem
centros de umbanda ou do candomblé e destruírem tudo ou fazerem exorcismos e
espalharem sal para todo canto. E no Oriente Médio fazem-se guerras entre
fundamentalistas de tendências diferentes com grande eliminação de vidas
humanas como o faz atualmente o recém-criado Estado Islâmico. Este pratica
limpeza étnica e mata todo mundo de outras etnias ou crenças diferentes das
dele.
Marina
não chega a tanto. Mas possui essa mentalidade teologicamente errônea e
maléfica. No fundo, possui um conceito fúnebre de Deus. Não é um Deus vivo que
fala pela história e pelos seres humanos, mas falou outrora, no passado, deixou
um livro, como se ele nos dispensasse de pensar, de buscar caminhos bons para
todos.
O
primeiro livro que Deus escreveu, foi a criação e a natureza. Elas estão cheias
de lições. Criou a inteligência humana para captarmos as mensagens da natureza
e inventarmos soluções para nossos problemas.
A
Bíblia não é um receituário de soluções ou um feixe de verdades fixadas, mas
uma fonte de inspiração para decidirmos pelos melhores caminhos. Ela não foi
feita para ser colocada diante dos olhos, encobrindo assim a realidade, mas
para ser posta atrás e acima da cabeça para iluminar esta realidade. Se um
fundamentalista seguisse ao pé da letra o que está escrito no livro do Levítico
20,13 cometeria um crime e iria para a cadeia, pois aí se diz
textualmente: “Se um homem dormir com outro, como se fosse com mulher,
ambos cometem grave perversidade e serão punidos com a morte: são réus de
morte”.
Viomundo
— Marina fala em governar com os melhores. É possível promover inclusão social,
manter políticas que favorecem os mais pobres com uma política econômica
neoliberal?
Leonardo
Boff — Marina
parece que não conhece a realidade social na qual há conflitos de interesses,
diversidade de opções políticas e ideológicas, algumas que se opõem
completamente às outras.
Lendo
o programa de governo do PSB (3) de Marina parece que fazemos um passeio ao
jardim do Éden. Tudo é harmonioso, sem conflitos, tudo se ordena para o bem do
povo. Se entre os melhores estiver um político, para aceitar seu convite,
deverá abandonar seu partido e com isso, segundo a atual legislação, perderia o
mandato.
Ela
necessariamente, se quiser governar, deverá fazer alianças, pois temos um
presidencialismo de coalizão. Se fizer aliança com o PMDB deverá engolir o
Sarney, o Renan Calheiros e outros exorcizados por Marina. Collor tentou
governar com base parlamentar exígua e sofreu um impeachment.
Viomundo
— Marina é preparada para presidir um país tão complexo como o Brasil?
Leonardo
Boff — Eu
pessoalmente estimo sua inteireza pessoal, sua visão espiritualista (abstraindo
o fundamentalismo), sua busca de ética em tudo o que faz. Estimo a pessoa,
mas questiono o ator político. Acho que não tem um manejo político para
fazer as alianças certas. O presidente deve ser uma pessoa de síntese, capaz de
equilibrar os interesses e resolver conflitos para que não sejam danosos e
chegar a soluções de ganha-ganha. Para isso precisa-se de habilidade, coisa que
em Lula sobrava. Marina, por causa de seu fundamentalismo, não é uma pessoa de
síntese, mas antes de divisão.
Viomundo
— A preservação efetiva do meio ambiente é compatível com o capitalismo
selvagem dos neoliberais?
Leonardo
Boff — Entre
capitalismo e ecologia há uma contradição direta e fundamental. O capitalismo
quer acumular o mais que pode sem qualquer consideração dos bens e serviços
limitados da Terra e da exploração das pessoas. Onde ele chega, cria duas
injustiças: a social, gerando muita pobreza de um lado e grande riqueza do outro;
e uma injustiça ecológica ao devastar ecossistemas e inteiras florestas úmidas.
Marina
fala de sustentabilidade, o que é correto. Mas deve ficar claro que a
sustentabilidade só é possível a partir de outro paradigma que inclui a
sustentabilidade ambiental, político-social, mental e integral (envolvendo
nossa relação com as energias de todo o universo).
Portanto,
estamos diante de uma nova relação para com a natureza e a Terra, onde as
medidas econômicas preconizadas por Marina contradizem esta visão. Temos que
produzir, sim, para atender demandas humanas, mas produzir respeitando os
limites de cada ecossistema, as leis da natureza e repondo aquilo que temos
demasiadamente retirado dela.
Marina
quer a produção sustentável, mas mantém a dominação do ser humano sobre a
natureza. Este está dentro da natureza, é parte dela e responsável por sua
conservação e reprodução, seja como valor em si mesmo, seja como matriz que
atende nossas necessidades e das futuras gerações.
Ocorre
que atualmente o sistema está destruindo as bases físico-químicas essenciais
para a mnutenção da vida. Por isso, ele é perigoso e pode nos levar a uma
grande catástrofe. E com certeza os que mais sofrerão, serão aqueles que sempre
foram mais explorados e excluídos do sistema. Esta injustiça histórica nós não
podemos aceitar e repetir.
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Relacionado
NOTAS de Mercosul & CPLP
1. Silas Lima Malafaia: Pastor pentecostal líder da Igreja
Assembleia de Deus. Tornou-se conhecido por suas posições políticamente
direitistas e contrárias aos Direitos Humanos, com base no fundamentalismo
religioso. Em 2013, a revista
norte-americana Forbes divulgou que a sua
fortuna pessoal se aproximava dos 150 milhões de dólares. Este montante o
colocava em terceiro lugar como o pastor mais rico do Brasil. Já foi denunciado
por outros pastores por utilizar a bíblia como meio para ganhar dinheiro. Apoia
a candidatura de Marina Silva à presidência da República.
2. PSDB: Partido da Social Democracia
Brasileira,
fundado em 1988. Esta organização direitista está muito ligada aos interesses dos
Estados Unidos. O tucano figura no seu
logotipo, o
que dá nome aos seus membros.
3. PSB: Marina Silva não é
membro do Partido Socialista Brasileiro. Juntou-se a esta sigla como vice
Eduardo Campos para as eleições de outubro. Morreu no dia 13 de agosto em um já
denunciado desastre aéreo. De acordo com
a mídia nacional e internacional, tudo indica que poderia ser uma operação encoberta
da CIA para favorecer a vitória eleitoral de Marina Silva.
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