31 agosto
2014, ODiario.info http://www.odiario.info
(Portugal)
A
televisão mudou enquanto documento quotidiano da realidade portuguesa. Houve um
tempo nada distante em que os telenoticiários vinham informar-nos quase dia
após dia de novos encerramentos de empresas, desemprego, filas à porta dos
serviços públicos, despejos, desesperos. Mas agora o quadro televisivo sugere
inversão de caminho: menos desemprego, muitos portugueses nas praias, o turismo
tão animado que até grupos de saudáveis turistas se aplicam a agredir homens da
GNR. E festas «populares» por todo o lado com acordeões, música da área pimba e
meninas de calções muito curtinhos, esperemos que bem pagas. Como de costume,
não se trata de noticiar. Trata-se de entreter, enquanto o governo prepara novo
avanço na política de desastre.
Já lá vão os tempos em que se
pediam notícias do país ao vento que então passava. Agora há duas enormes
diferenças em relação a
essa altura: há democracia e há uma televisão
muitíssimo democrática, pelo que é a ela, à televisão, que dirigimos as nossas
perguntas. Melhor ainda, nem é preciso perguntar: ela própria, a televisão,
toma a iniciativa de nos vir dando as tais notícias praticamente a toda a hora,
e é preciso dizer que nos últimos tempos as notícias, ainda há bem pouco tempo
deprimentes, melhoraram muito. Convém precisar, para melhor entendimento dos
factos, que notícias não são apenas as que chegam incluídas nos telenoticiários
de rotina mas também as que vêm por via indirecta, digamos assim. Por exemplo:
ocorrem umas coisas desagradáveis num grande banco e daí pode advir alguma
preocupação para o cidadão telespectador e crónico pagador, mas logo nos ecrãs
dos televisores surge o senhor primeiro-ministro em trajo desportivo, melhorado
pelo bronze algarvio, com o ar de não estar nada ralado com o que se passa, e
todos ficamos sossegados porque aquele bom aspecto é uma boa notícia. Porém,
este é apenas um exemplo recente, pois há muitos mais. Bem nos dizia um senhor
deputado do PSD, há semanas atrás, que o país está melhor, afirmação aliás
corroborada por índices de melhoria, de confiança e de retoma, da ordem dos
zero vírgula não sei quantos, coisa obviamente substancial. Mas não é apenas a
palavra do deputado pêèssedaico a informar-nos do facto: é também a televisão a
dizer-no-lo à sua específica maneira. Pois, como para sempre nos foi lembrado
por Eduardo Guerra Carneiro, isto anda tudo ligado.
Ao virar da uma esquina
A questão é que, tanto quanto me
parece, a televisão mudou enquanto documento quotidiano da realidade
portuguesa. Houve um tempo nada distante em que os telenoticiários vinham
informar-nos quase dia após dia de novos encerramentos de empresas, de mais
desempregados, de filas de doentes forçadamente madrugadores às portas dos centros
de saúde, de novos lugares onde mãos generosas davam comida aos chamados
carenciados, de mais despejos, de mais desesperos. Era uma diária dose de
tristezas e por ela se via que o país não ia nada bem, sendo certo que por ali
claramente se percebia que o país não é um conjunto de bonitas paisagens mas
sim de gente viva e, naquelas circunstâncias, sofredora. Porém, se não me
engano ou, dizendo-o de outro modo, se o televisor não me engana, esse tempo já
passou ou os referidos motivos de tristeza se atenuaram substancialmente. Na
verdade, não me tenho apercebido de que a TV nos haja falado recentemente de
portugueses com fome ou sem tecto, de magotes de desempregados à porta dos
centros inventados para os entreterem, de pais idosos a dormirem em cozinhas
porque cederam o quarto aos filhos sem emprego e sem quarto. É certo que
continuam a surgir desgraças: desavenças duras, desastres, até crianças a
morrerem em em água a ferver. Mas são casos pontuais, meros descuidos, num
quadro televisivo que sugere inversão de caminho: menos desemprego, muitos
portugueses nas praias, o turismo tão animado que até grupos de saudáveis
turistas se aplicam a agredir homens da GNR. E o mais sintomático: festas
«populares» por todo o lado com acordeões, música da área pimba e meninas de
calções muito curtinhos, esperemos que bem pagas. À noite temos concursos de
dança ou de canto em caldo de «gente bonita». São, estas e outras, imagens de
um país feliz que não é o que vemos quando saímos à rua mas que a televisão
parece ter descoberto para benefício da nossa tranquilidade. Até que, indo nós
pelo passeio afora, ao virar de uma esquina deparamos com uma mão estendida, um
vestuário em farrapos e um monte de cartões que hão-de servir de abrigo durante
a noite. Apercebemo-nos então de como é importante continuar do lado certo. De
como são enganosas as boas notícias que a televisão nos traz por formulação ou
por omissão. Talvez porque esta não é apenas a «silly season», expressão
euroatlântica que está na moda, mas também e principalmente uma «liar season».
Que aliás se alonga por todo o ano.
*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2125, 21.08.2013
*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2125, 21.08.2013
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