6
junho 2013, Correio da Cidadania http://www.correiocidadania.com.br
(Brasil)
Escrito por Marcelo Badaró Mattos* Entre o Brasil e Portugal há laços históricos e, em muitas de nossas famílias, sanguíneos, que nos fazem ter uma sensação muito própria de proximidade. No entanto, não temos visto muito espaço na imprensa empresarial brasileira para notícias e análises da crise por que passa a sociedade portuguesa no momento atual. Nem mesmo a esquerda brasileira parece muito interessada em prestar atenção ao que acontece daquele lado do Atlântico. |
Faz alguns dias, Reinaldo Azevedo,
colunista da revista Veja, publicou em seu blog uma nota sobre um
debate ocorrido dias antes na TV portuguesa, tendo por tema “Mudamos de país
ou mudamos o país?”, no qual, em determinado momento, uma das entrevistadas
se envolveu em uma polêmica com um jovem da platéia*. Na versão de Azevedo, a
debatedora é “a Marilena Chauí” de Portugal e o jovem um herói do
“empreendedorismo”, que aos 15 anos criou uma marca de roupas e está tendo
sucesso em tempos difíceis, demonstrando que a iniciativa individual é a
saída para a crise. Como o jovem respondeu à debatedora, que o questionava
sobre o valor dos salários dos trabalhadores da indústria têxtil, dizendo que
era melhor ganhar o salário mínimo do que ficar no desemprego, sendo
aplaudido por parte dos presentes, esse take do programa foi
reproduzido pelo colunista, com os comentários de praxe. Exaltou-se a
perspicácia do garoto moderno e apontou-se o atraso da pesquisadora
acadêmica.
Não perderei tempo analisando
Reinaldo Azevedo, a Veja, ou mesmo comentando a tal ideia do tipo é
melhor comer só farinha que passar fome, exposta pelo raciocínio do rapaz, ao
defender implicitamente o programa de redução salarial em curso em Portugal.
Não merecem. Apenas preciso que a “Marilena Chauí” portuguesa é Raquel
Varela, historiadora reconhecida internacionalmente por seus estudos sobre a
Revolução dos Cravos e sobre os trabalhadores do setor da construção naval e
militante política cada vez mais conhecida dos portugueses por suas
intervenções em dezenas de debates públicos, em centros sociais, rádios e
TVs. Neles tem demonstrado (ancorada em estudos sérios e pormenorizados) as
falácias da argumentação dominante sobre os altos custos do Estado Social,
empregadas para justificar os cortes em salários, aposentadorias e outros
direitos dos trabalhadores. Já o jovem “empreendedor” é Martim Neves, cuja
fala, devidamente editada, foi reproduzida imediatamente após o programa em páginas
eletrônicas como a do “microcrédito” do banco Millenium BCP e as de editores
de grandes jornais diários. Como se apurou pouco depois, o seu
“empreendimento” resume-se a estampar a sua logomarca (cujo registro só foi
requerido no dia seguinte ao programa) em camisetas e moletons simples. Mas é
claro que a propaganda feita durante e após o debate o levou a um novo
“patamar de vendas”, conforme se depreende pelos pedidos não atendidos
registrados no facebook do “empreendimento”.
O que estava em debate,
entretanto, é algo mais importante. Para além do trecho recortado por Azevedo
e pela direita portuguesa de forma geral, há uma resposta de Raquel Varela
omitida na edição que circula na rede. Nela, a historiadora classifica o
salário mínimo português (de 432 euros) como “uma vergonha”, e demonstra como
esse valor é insuficiente para sustentar dignamente os trabalhadores e
trabalhadoras portugueses, assim como do resto do mundo, e lembra que tanto a
redução da massa salarial interna quanto a imigração de portugueses que se
quer hoje forçar visam simplesmente instalar uma arena de competitividade por
baixos salários na Europa, de forma a ampliar a margem de lucro dos
capitalistas que, desde 2008, têm se fartado de demitir, achatar salários e
ainda assim serem prodigamente subsidiados pelo Estado. Defendendo a
estatização dos bancos, a ruptura com a “troika” (FMI, Banco Central Europeu
e Comissão Europeia), o não pagamento da dívida e a ruptura com o euro, além
de relembrar o 25 de abril para propor a atualidade da saída revolucionária,
Raquel Varela realmente tem incomodado à classe dominante portuguesa.
A referência que faço ao debate
na TV e à replicação por aqui da grita da direita portuguesa contra a
representante de uma proposta política radicalmente alternativa tem também um
outro objetivo: chamar a atenção para o fato de que a sociedade portuguesa
vive um momento de crise econômica, social e política. A taxa de desemprego
atingiu 17,8% em abril, sendo da ordem de 42,5% o desemprego entre os jovens
(segundo os dados da agência europeia Eurostat). Dados locais indicam 1
milhão e 400 mil desempregados em uma população economicamente ativa de 5,4
milhões de pessoas (no total de 10 milhões e meio de portugueses e
portuguesas). Ao mesmo tempo, aposentadorias e salários do setor público
foram cortados e 80% dos empregados ganham menos de 900 euros por mês. A
precarização das relações de trabalho atinge boa parte desses que ainda não
vivem o desemprego completo, numa força de trabalho que é relativamente jovem
e altamente qualificada. São 1,3 milhão de graduados com nível superior e
mais de 30 mil doutores formados pelas Universidades portuguesas.
Momentos como esses abrem espaço
para o acirramento dos conflitos sociais e é a isso que estamos assistindo em
Portugal. Foram já cinco greves gerais nos últimos cinco anos. A próxima já
está convocada para 27 deste mês de junho. Há manifestações todos os dias
(não é exagero retórico) nas ruas portuguesas. E são, algumas delas, as
maiores manifestações da história do país, como a de 2 de março último, que
levou às ruas de dezenas de cidades portuguesas mais de 1 milhão e 500 mil
pessoas. A luta, é certo, não é apenas portuguesa. No último dia 1 de junho,
um chamado à mobilização continental reuniu manifestantes em centenas de
cidades europeias, do sul “periférico” (Portugal, Espanha, Grécia) ao centro
financeiro do euro, em Frankfurt.
Mesmo com esse elevado nível de
mobilização social, até aqui, o regime tem resistido. Nem mesmo o gabinete
ministerial português caiu, apesar de todos os cartões vermelhos que a
população acuada pelo desemprego e o avanço da miséria lhes apresenta. Tanto
a direita declarada (PSD e CDS) no governo quanto os “socialistas” (PS)
compartilham da mesma submissão aos desígnios da troika e o PS não parece
querer se arriscar a ganhar eleições para se desgastar fazendo mais do mesmo.
Já a oposição parlamentar de esquerda (especialmente o PCP e o Bloco de
Esquerda), embora tenha sido progressivamente empurrada pelo povo nas ruas a
uma posição de defesa da “demissão” do gabinete, não apresentou até aqui um
projeto radicalmente distinto, propondo “renegociações”, políticas
compensatórias e medidas “soberanas”, mas temendo sempre o “imponderável” da
moratória ou da saída do euro. Nos sindicatos, a grande central – a CGTP –,
dirigida principalmente pelos militantes do PCP, tende a limitar as
mobilizações ao domínio econômico-corporativo da defesa dos salários e
direitos do grupo cada vez mais reduzido de trabalhadores protegidos por
contratos estáveis.
O resultado dessa combinação
entre mobilizações multitudinárias de descontentamento e ausência de
alternativas programáticas das direções mais representativas tem sido, até
aqui, a sobrevivência de um regime democrático em que o teatro das eleições
referenda governos títeres do poder de fato, emanado dos organismos
supranacionais do capital, a ditarem as regras do jogo contra os interesses
das maiorias trabalhadoras.
Pode uma situação dessa natureza
se sustentar por muito tempo? Não há previsões infalíveis para o desenrolar
da história. Podemos assistir na sequência à desmoralização completa das
manifestações de massa. Afinal, como sustentar que milhões possam ir às ruas
a cada mês, que diversas greves gerais se sucedam em poucos anos e que ainda
assim nem um reles ministro caia de sua cadeira? Ou, de outro lado, é
possível que se abra um período de inversão da correlação de forças a favor
dos “de baixo”?
A segunda hipótese não pode ser
dada como certa, mas está no horizonte de possibilidades, especialmente
porque falamos de um país que, há quase quarenta anos, viveu a última
revolução social do Ocidente. Nele convivem uma geração de portugueses que
protagonizou a Revolução dos Cravos e as gerações seguintes, que se
beneficiaram das conquistas revolucionárias, mas são agora mais fortemente
impactadas pelo retrocesso social pós-2008. Mesmo derrotada a revolução, seu
legado de conquistas garantiu um Estado Social (como o chamam por lá), que
permitiu aos que foram às ruas em 1974 ver seus filhos e netos completarem os
estudos universitários num sistema público de educação, usufruírem de um
sistema de saúde pública exemplar, se informarem através de um sistema de
rádio e televisão públicos em que as telenovelas importadas do Brasil têm que
competir em audiência com programas de debate político, como o citado no
início deste texto, entre outras conquistas, sintetizadas pela transferência
de renda de cerca de 15% do capital para o trabalho no período de 1974-1975.
Essa geração está hoje, em grande
medida, aposentada (reformada, como dizem por lá) e, apesar dos cortes em
seus rendimentos, vem equilibrando orçamentos familiares em meio a filhos e
netos precarizados e desempregados. A construção de uma unidade nas lutas
entre os “reformados”, com o aprendizado organizativo das jornadas de
1974-1975, os precarizados/desempregados – que começam a ir para as ruas na
conjuntura atual desprovidos do aparato sindical dos trabalhadores formais –
e os setores mais combativos da classe trabalhadora sindicalmente organizada,
pode fazer a diferença e significar o ponto de inflexão na correlação de
forças. Resta saber se os que propõem tal estratégia conseguirão
representatividade em meio às organizações que surgiram do 25 de abril e às
novas formas organizativas que emergem das lutas de hoje, e ainda se
encontrarão eco social para suas propostas.
De qualquer forma, olhando aqui
do Brasil, não consigo deixar de pensar em algumas questões. Sou historiador
e estou acostumado a ouvir falar sobre presumidas “heranças” portuguesas na ex-colônia
das Américas, como a ideia de um “patrimonialismo ibérico”, uma suposta
confusão entre “público” e “privado”, que de fato só existe na cabeça
daqueles que se recusam a aceitar o fato de que o Estado (o “público”) existe
historicamente para sustentar os interesses – econômicos inclusive – das
classes dominantes (o “privado”). Mais recentemente virou moda dizer que
fomos aqui uma extensão territorial nos trópicos do “Antigo Regime”
português, em chave explicativa que menospreza tanto o caráter escravista da
sociedade que se desenvolveu nestas terras quanto o sentido de exploração que
motivou a empreitada colonizadora. Queria eu, porém, ouvir falar de outras
heranças e homologias entre Brasil e Portugal, num período mais recente.
Preferiria, com certeza, ter assistido a algum tipo de influência mais direta
da saída revolucionária de um regime ditatorial, como a de 1974 em Portugal,
na chamada “transição democrática” brasileira. Assim como espero que o
exemplo das mobilizações atuais daquele lado do Atlântico faça algum eco
deste lado de cá.
* O programa chama-se “Prós e
Contras”, é transmitido pela RTP1 e, embora seja transmitido após as 22h,
possui enorme audiência para os padrões portugueses. A edição comentada foi
ao ar em 20 de maio último pode ser assistida em http://www.rtp.pt/programa/tv/p29826/e15
*Marcelo Badaró Mattos é professor da
Universidade Federal Fluminense
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sexta-feira, 7 de junho de 2013
Brasil/REVOLUCIONAR É PRECISO: A CRISE PORTUGUESA (E NÓS?)
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