20 junho 2013, ODiário.info
http://www.odiario.info
(Portugal)
“Uma parte da
sociedade brasileira, mesmo com inclinação progressista, dá sinais de fadiga
com a estratégia de mudanças sem rupturas. Há crescente mal-estar com uma
equação de governabilidade que preserva as velhas instituições, depende de
alianças com fatias da própria oligarquia para formar maioria parlamentar,
abdica da disputa de valores e renuncia à mobilização social como método de
pressão. “Diante do clamor, o petismo pode rectificar sua estratégia e
repactuar com a rebelião das ruas para aprofundar e acelerar reformas de base.
Ou pagar o preço próprio das situações onde a esquerda e as ruas se divorciam”.
Um fantasma ronda o mundo petista.
O da perplexidade. Apesar das importantes conquistas dos últimos dez anos e das
pesquisas eleitorais favoráveis, a onda de protestos abala o principal partido
da esquerda brasileira e aproxima-se do governo federal. Com o prefeito de São
Paulo na berlinda e multidões de jovens nas ruas, tudo o que era sólido parece
se desmanchar no ar.
Muitos se perguntam o porquê de
tanta ira depois de uma década na qual a pobreza diminuiu, a renda foi melhor
distribuída e chegou-se praticamente ao pleno emprego. É verdade que as
manifestações estão gravitando, por ora, ao redor de uma agenda local. A
revolta juvenil exige principalmente menores tarifas de transporte e direito de
manifestação, contrapondo-se à violência das polícias estaduais. Somente um
autista político, no entanto, deixaria de perceber que uma nova situação se
instaurou no país.
Alguns petistas, estarrecidos, não
hesitaram em vislumbrar, balançando o berço dos protestos, a mão peluda da
direita, arrastando junto os infantes da ultra-esquerda. Mas a narrativa
conspiratória não resistiu aos factos. Os centros de poder do conservadorismo –
especialmente os veículos tradicionais de comunicação e o governo paulista –
desencadearam reacção feroz contra a mobilização, que desaguou na repressão
implacável da última quinta-feira.
A truculência policial serviu de
condimento para a escalada de protestos e sua nacionalização. A defesa de um
direito democrático fundamental, diante da qual vacilaram, nos primeiros
momentos, tanto o ministro da Justiça quanto o prefeito paulistano, foi
assumida com energia e radicalidade pela juventude das grandes metrópoles.
Partidos e governos da direita foram os responsáveis pela escalada repressiva,
mas tiveram a seu favor a tibieza de sectores da esquerda surpreendidos com
fenómenos alheios a suas planilhas.
Parte do estado-maior reaccionário
refez suas contas, emparelhando discurso para disputar a rebelião e voltá-la
contra o governo federal, provisoriamente arquivando a opção da violência. Até
o momento, colheram um rotundo fracasso. Não apenas as manifestações e lideranças
resistiram a abraçar suas bandeiras como foram frequentes cartazes e palavras
de ordem contra o governador Alckmin e a própria imprensa, especialmente a Rede
Globo.
Mesmo os alvos escolhidos pelos
segmentos mais radicalizados – o Palácio dos Bandeirantes em São Paulo, a
Assembleia Legislativa no Rio, o Congresso Nacional em Brasília – demonstram
que os jovens não estão nas ruas a serviço da restauração antipetista. Tampouco
parecem se sentir representados e incluídos, porém, no processo impulsionado a partir
da vitória de Lula em 2002.
A imensa maioria dos manifestantes
tinha abaixo de 25 anos, formada por filhos das camadas médias e também dos
bairros periféricos. A julgar por suas palavras de ordem, cartazes e bandeiras,
não estão contra as reformas empreendidas desde 2003. Mas querem mais, melhor e
rápido.
Ninguém levantou a voz para
criticar o bolsa-família, o crédito consignado ou o Prouni. Nenhuma faixa foi
erguida para defender privatizações e outras políticas favoráveis aos
interesses de mercado. Poucos eram os manifestantes que carregavam cartolinas
contra o “mensalão” e a corrupção. A luta é pela ampliação de direitos
políticos e sociais, demanda encarnada pela exigência de barateamento do
transporte público.
Mas cansaram de esperar que estes avanços
sejam patrocinados por governos e partidos, mesmo os de esquerda. Não parecem
satisfeitos com a timidez e a lentidão para realizar novas reformas, mais
audazes, que acelerem a melhoria de suas condições de vida. E resolveram, como
ocorre em determinados momentos históricos, tomar a construção do futuro em
suas próprias mãos.
A rejeição à presença de bandeiras
partidárias pode ser analisada pela óptica corriqueira, como rechaço a
instrumentos de organização colectiva ou despolitização. Mas também caberia ser
compreendida, ao lado de outros ingredientes, como simbolismo de quem, avesso
às correntes conservadoras ou ao aparelhismo de pequenos grupos, não se sente
cativado ou vocalizado no projecto liderado pelo PT.
Provavelmente não se trata apenas
de uma questão económico-social, mas igualmente política. Uma parte da
sociedade, mesmo com inclinação progressista, dá sinais de fadiga com a
estratégia de mudanças sem rupturas. Há crescente mal-estar com uma equação de
governabilidade que preserva as velhas instituições, depende de alianças com
fatias da própria oligarquia para formar maioria parlamentar, abdica da disputa
de valores e renuncia à mobilização social como método de pressão.
Antes esse cansaço se restringia a
pequenos círculos de militantes mais enfezados. Afinal, muito pode ser feito
mesmo sem reformas estruturais, a partir da reorientação do orçamento nacional,
integrando dezenas de milhões à cidadania e ampliando conquistas sociais. O
fato é que esse cenário pode ter atingido seu tecto. E as ruas começam a
gritar.
O movimento não é contra o PT, mas
coloca a estratégia do partido e do governo em xeque. Há uma exigência de
protagonismo popular e juvenil, explicitada nos últimos dias. A direcção
partidária e o Palácio do Planalto estão dispostos a considerar essa
mobilização um factor de poder e refazer suas conexões com estes movimentos,
impulsionando sua ascensão para construir forças rumo a uma nova geração de
reformas?
Esta e outras perguntas estão
embutidas no alarme que a revolta do vinagre fez soar. Diante do clamor, o
petismo pode rectificar sua estratégia e repactuar com a rebelião das ruas para
aprofundar e acelerar reformas de base. Ou pagar o preço próprio das situações
onde a esquerda e as ruas se divorciam.
*Breno Altman é jornalista e director editorial do site Opera Mundi
e da revista Samuel.
Nenhum comentário:
Postar um comentário