quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

LOBBIES E DESINFORMAÇÃO DOMINAM DISCUSSÃO SOBRE BIOCOMBUSTÍVEIS

Do Correio da Cidadania

Portal do MST / 7 fevereiro 2008 / http://www.mst.org.br

Não é preciso ser especialista para observar a panacéia atual em torno ao etanol. Basta viajar pelo interior do estado de São Paulo para constatar uma nítida e brutal mudança na paisagem, em espaço curtíssimo de tempo, onde a predominância das plantações de cana-de-açúcar é absoluta. Adentrando-se por estradas vicinais, é possível ainda visualizar alojamentos precários recém construídos, muito provavelmente para abrigar os novos cortadores. Ademais, vários noticiários dão conta da elevação do preço da terra nesse último ano e, não coincidentemente, da febre na aquisição de terras e usinas destes trópicos por investidores estrangeiros.

Obviamente, grandes interesses estão em jogo e muitos lobbies, em ação. Para que, ao final, quiçá acabe por valer os interesses da nação, há que se qualificar uma discussão tão polarizada, destrinchando os argumentos de ambas as partes - mas tomando-se certamente em consideração que sempre há aquela que tem sua cadeira cativa nos grandes veículos.

Tamás Szmrecsányi, professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp, discorre sobre as ponderações dos defensores dos biocombustíveis, sobre as alternativas à sua produção e também a respeito da postura do governo e dos movimentos sociais. Confira abaixo.

Como o senhor avalia a atual discussão em torno dos biocombustíveis, em especial o etanol, no Brasil e no mundo?

Limitarei minhas respostas ao álcool (ou etanol, ou biocombustível), um assunto que conheço melhor. Por não me julgar, por outro lado, suficientemente entendido em plantas oleaginosas e em biodiesel, prefiro abster-me de opinar a respeito.

Em primeiro lugar, no que se refere às discussões em curso, convém distinguir entre as que são veiculadas pela mídia e as travadas em círculos acadêmicos e técnicos mais fechados. Nas primeiras, campeia a desinformação, tanto aqui, quanto lá fora, geralmente por falta de capacitação dos jornalistas profissionais, inclusive com relação à escolha de seus informantes - os quais, muitas vezes, ou carecem igualmente da necessária qualificação técnica e científica para tanto, ou são meros porta-vozes dos lobbies favoráveis aos empresários do setor sucro-alcooleiro e/ou do grande capital vinculado ao chamado agronegócio.

Lobbies com presença e influência também se fazem sentir no âmbito da comunidade científica e tecnológica. As discussões desta fora do Brasil me parecem menos suscetíveis a esse fator e, portanto, mais isentas e com melhor nível do que as do nosso meio. Aqui, além da desinformação, também há casos de censura (inclusive por parte dos órgãos de fomento à pesquisa, estatais e privados), de baixa tolerância às críticas e a pensamentos divergentes, de tendência à desqualificação e à marginalização daqueles que têm opiniões alternativas e independentes.

O senhor considera os biocombustíveis uma boa opção de energia para o Brasil?

Quanto à opção energética, poucos, também aqui, estabelecem uma distinção, desta vez entre o álcool hidratado e o álcool anidro.

O uso deste último como combustível misturado à gasolina numa proporção de até 25% foi, no passado, e continua sendo até hoje, uma boa opção energética para o Brasil, país possuidor de uma ampla agroindústria canavieira e que, até recentemente, não havia atingido uma relativa auto-suficiência na produção do petróleo. Este, aliás, continua sendo importado em parte, o mesmo se dando com o gás natural. A mistura do álcool anidro à gasolina me parece uma boa prática, na medida em que poupa divisas através da substituição de importações atualmente caras.

Essa prática também é interessante do ponto de vista da própria indústria sucro-alcooleira, na medida em que ajuda a diminuir os riscos e os efeitos de uma oferta excessiva de açúcar, permitindo, inclusive, manter certo controle sobre os preços deste. Isto se deve ao fato de o álcool poder ser produzido de duas maneiras: a tradicional, a partir do melaço residual da fabricação de açúcar (álcool residual); e a alternativa à produção do mesmo diretamente a partir do caldo resultante da moagem da cana (álcool direto).

Os problemas, a meu ver, surgem com a excessiva expansão da oferta de álcool hidratado, um produto intermediário na fabricação do álcool anidro (resultante da sua desidratação), e que, ao contrário deste, não tinha e continua não tendo um mercado garantido, seja dentro, seja fora do país. Tentou-se criar, aqui no Brasil, esse mercado através dos carros a álcool das décadas de 1970 e 1980 – uma experiência, cujos resultados, em termos de custos, não foram muito favoráveis. E agora está ocorrendo uma nova tentativa com os chamados carros Flex, cujos motores são abastecidos tanto pela gasolina misturada com álcool anidro como pelo álcool hidratado.

Ainda não se tem até o momento uma avaliação mais precisa dos resultados desta experiência, com respeito às dimensões do mercado interno para o álcool hidratado.

As críticas aos biocombustíveis voltam-se, em frontal oposição aos defensores, à 1) degradação do meio ambiente que será ocasionada pelo cultivo de cana, 2) ao reforço da monocultura e da concentração das propriedades em detrimento da agricultura familiar e da produção de alimentos, 3) à submissão da força de trabalho a condições desumanas, 4) à reduzida geração de empregos, e 5) aos ganhos energéticos pouco significativos. Haveria nesses argumentos alguma espécie de paranóia, “eco-ignorância”, como dizem os defensores dos biocombustíveis?

Essas críticas me parecem todas procedentes em termos gerais, carecendo, porém, de uma avaliação mais precisa no exame dos diversos casos individuais, em função da qual uma ou outra podem estar sujeitas a determinadas qualificações. É preciso, face a essa ressalva, ver mais de perto cada uma dessas críticas.

Pensando, então, mais detidamente e separadamente, em cada uma dessas críticas aos biocombustíveis, qual a sua avaliação, em primeiro lugar, quanto à degradação do meio ambiente resultante do cultivo da cana?

A degradação do meio ambiente pela expansão das lavouras canavieiras tem início com a sua implantação numa área anteriormente ocupada por outras culturas, pela pecuária extensiva, ou então inexplorada ou vazia.

No primeiro caso, tende a ocorrer uma substituição da policultura pela monocultura; no segundo, dá-se a substituição de uma atividade extensiva por outra; e, no terceiro caso – por exemplo, através do desmatamento –, há um comprometimento, quando não a destruição da biodiversidade pré-existente.

Como se trata de cultivos semi-perenes, e não anuais, as lavouras de cana, se plantados em curva de nível, ajudam a combater a erosão. Ao mesmo tempo, todavia, o uso de máquinas durante os tratos culturais e principalmente monoculturais contribui para a compactação dos solos. Mas os piores impactos acabam sendo ocasionados pelas queimadas que anualmente precedem as colheitas manuais e pelo despejo indiscriminado de vinhaça não tratada.

Esta última prática envolve dois riscos ambientais ainda insuficientemente avaliados: o da penetração desse resíduo altamente poluidor (à razão de dois a três litros para cada litro de álcool), o que junta agrotóxicos no subsolo, comprometendo não apenas o lençol freático, mas aprofundando-se até águas subterrâneas mais profundas – como o aqüífero de Guarani; e o da salinização dos solos pela aplicação contínua e excessiva, com a conseqüente redução da sua fertilidade.

E quanto à concentração das propriedades fundiária, com ênfase na monocultura, em detrimento da agricultura familiar e da produção de alimentos?

A concentração da propriedade fundiária provocada pela expansão da monocultura extensiva da cana-de-açúcar pode ser facilmente comprovada por meio dos Censos Agropecuários e, na ausência destes, através do Cadastro do Incra relativo ao ITR (Imposto Territorial Rural).

As origens dessa tendência remontam ao período colonial; trata-se de uma recorrência da elevada integração vertical da agroindústria sucro-alcooleira, uma característica inexistente quer em outros países produtores de açúcar e de álcool, quer em outras ocupações agroindustriais do Brasil.

Paralelamente, em vez de haver uma divisão social do trabalho entre a agricultura e a indústria, as usinas açucareiras e as destilarias (anexas ou autônomas) são proprietárias da maior parte das terras que produzem a matéria-prima dessas agroindústrias. Na medida em que elas vão se expandindo, tanto a produção de alimentos como as pequenas e médias propriedades são eliminadas, com órgãos responsáveis sendo expulsos da agricultura ou empurrados para mais longe dos lugares de consumo de seus produtos.

Essa expansão forçada da fronteira agrícola envolve não apenas grandes migrações internas, mas também uma rápida e intensa destruição da biodiversidade, em áreas de cerrado especialmente.

Quanto às condições desumanas a que é submetida a força de trabalho, os próprios noticiários não têm mais como mascarar essa realidade, não?

Através do monopólio (sem agricultor, diz-se oligopólio) da terra, as usinas açucareiras, que possuem e/ou arrendam milhares de hectares de terras, também adotam o monopsônio (ou melhor, o oligopsônio) no emprego da força de trabalho no setor agropecuário nas regiões em que atuam. Elas empregam muita gente porque ocupam muito espaço, a maior parte das terras disponíveis, eliminando outras alternativas de ocupação da mão-de-obra. Nessas condições, elas têm o poder de impor baixos níveis salariais e/ou péssimas condições de trabalho, como ocorre nas colheitas manuais que pagam por produção (e não por horas trabalhadas).

A geração de empregos é realmente tão reduzida quanto se alardeia?

A geração de empregos por uma atividade pode ser e tem sido grande pelas razões expostas acima. A lavoura canavieira é a que mais pessoas emprega; trata-se porém de ocupações temporárias e sazonais, cujas remunerações têm que ser dimensionadas não pelos meses trabalhados, mas pelos doze meses do ano. Fazendo o ajuste, tais remunerações não são muito superiores aos salários mínimos regionais.

Por outro lado, o grande emprego nem sempre corresponde a uma ampla ocupação da força de trabalho. Mesmo em termos absolutos, há outras culturas que ocupam mais gente no Brasil do que a cana-de-açúcar (algo que pode ser constatado através de dados dos censos e da PNAD), e fazem isso durante o ano todo. Assim, as lavouras canavieiras podem estar desempregando pessoas, em vez de gerarem um maior número de empregos.

É uma tendência que vem se agravando pela crescente mecanização dessa atividade, que, a partir de meados da década de 1990, vem empregando cada vem menos gente por hectare / ano.

E os ganhos energéticos, são mesmo pouco significativos, como analisam os críticos ao biocombustível?

Os ganhos energéticos da agroindústria canavieira são atribuíveis à combustão derivada da queima do bagaço no processamento industrial da cana e sua transformação em açúcar e/ou álcool. Trata-se do excedente de energia transformada ou de fato transferida à rede distribuidora de energia elétrica.

Isso representa, sem dúvida, uma vantagem da cana em relação à beterraba açucareira no que se refere aos custos de processamento industrial.

Mas esse ganho tem que ser contraposto aos gastos de energia das máquinas e caminhões usados no cultivo e na colheita da cana, e também aos gastos do processamento industrial, no transporte do produto muitas vezes a longas distâncias. Este último problema pode ser solucionado através de maior racionalização da produção sucro-alcooleira e através da substituição dos caminhões por dutos, por ferrovias ou barcaças fluviais.

http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=4870


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