quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

HOMILIA DE DOM ERWIN KRÄUTLER POR OCASIÃO DOS TRÊS ANOS DE MORTE DE IRMÃ DOROTHY


Portal do Conselho Indigenista Missionario/21 fevereiro 2008

Caríssimos irmãos e irmãs em Nosso Senhor Jesus Cristo,

Celebramos o terceiro aniversário da morte de nossa Irmã Dorothy. Em 12 de fevereiro de 2005 ela foi brutalmente executada. Durante esses três anos muitas vezes fui perguntado por que uma Irmã que consagrou sua vida aos pobres e acompanhou sua luta por mais dignidade, por justiça e pelos mais elementares direitos de ter um chão para plantar e colher, por que essa Irmã dos pobres sofreu uma morte tão cruel. A resposta é simples e todos nós sabemos qual é. Ao colocar-se decididamente ao lado dos desfavorecidos, excluídos por um sistema capitalista selvagem que reina em nossa região, ela contrariou os interesses e as ambições de uma oligarquia que quer apoderar-se da Amazônia para usufruir de suas riquezas sem nenhuma preocupação pelas conseqüências para as futuras gerações. O lema é "aproveite-se enquanto puder" e quem esboçar uma reação contra esta investida, corre risco de vida porque os representantes deste sistema agressivo à Amazônia reagem e conspiram imediatamente contra quem não rezar por sua cartilha. Dorothy foi vítima de seu amor à Amazônia. Por causa deste amor perdeu a vida.

A classe política se fez presente no dia do sepultamento de nossa Irmã. Anapu nunca viu tanto senador e deputado federal ou estadual. Hoje estou convicto de que a maioria dos que se fizeram presentes naquele funeral veio por causa da mídia que cobriu o triste evento. Essas autoridades que choraram ao lado do féretro queriam mostrar para o mundo que não compactuam com a morte e violência na Amazônia. Mas não deram nenhuma amostra de engajamento corajoso e valente para mudar a realidade. Não se converteram e a idéia de desenvolvimento que têm em relação a nossa região é meramente economicista. Pensa-se só em lucros imediatos e propositadamente se ignora as perdas irreparáveis. Delega-se às futuras gerações o enfrentamento da desgraça causada nestes tempos. É abominável uma geração descuidar de seus filhos e netos, deserdando-os por privá-los das mais elementares condições de sobrevivência.

Nos meses passados fomos sempre de novo alertados para o risco que a Amazônia corre, de sofrer danos sem precedentes. O ambicioso Plano de Aceleração do Crescimento, PAC, visa melhorar a infra-estrutura de transportes, comunicação e energia na região. À primeira vista o plano parece favorável à região. No entanto traz no bojo a ameaça de destruição da maior floresta tropical do mundo. Ao lado das investidas da parte de fazendeiros que mesmo multados insistem nas queimadas, ao lado da exploração por parte de madeireiros que, apesar de terem sido confiscados milhares de toras, continuam a derrubar, serrar e transportar clandestinamente madeiras de lei, ao lado desta depredação já em curso, a construção de barragens e de extensos linhões para transmissão de energia elétrica levará fatalmente a um desmatamento generalizado.

Irmã Dorothy foi morta porque denunciou essas agressões ao meio-ambiente que já a médio prazo prejudicarão o lar (oikos) habitado pelos povos da Amazônia.

Causa-nos revolta e indignação que o segundo julgamento do réu confesso Rayfram foi anulado, alegando-se que, "ao executar a freira, estaria potencialmente sob ameaça de cinquenta homens armados, os posseiros de Dorothy Stang". É incrível até que ponto um advogado de defesa chega e mais incrível ainda é que não foi preso por ter levianamente acusado os agricultores do PDS de "pistoleiros", equiparando-os ao criminoso que matou a Irmã. E pior, graças a essa intervenção o júri é anulado!

Que Justiça é essa que de repente inverte os papéis, imputando a criminalidade à pobre Irmã que derramou seu sangue e alegando legitima defesa para o assassino que disparou cinco tiros em cima da vítima indefesa, cuja única arma fora a Bíblia Sagrada?

Que Justiça é essa que depois de três anos não conseguiu ainda completar os inquéritos ou então os encerrou por motivos que nunca conseguem convencer-nos?

Que Justiça é essa que adia de ano em ano o processo contra pessoas altamente suspeitas de ter encomenado o crime?

Que Justiça é essa que nunca levou a sério a existência do "consórcio do crime" nesta terra?

O Evangelho proclamado neste dia (Mt 6,5-14) faz parte do Sermão da Montanha. Jesus ensina a seus discípulos e discípulas a rezar. É a oração por excelência da Igreja e de todos os cristãos e cristãs. Cada versículo merece uma meditação especial, cada palavra é sacrossanta e toca o nosso coração.

No contexto desta Santa Missa em que lembramos o terceiro aniversário de morte da Irmã Dorothy, escolhemos o pedido "Venha nós o vosso Reino!"
Nascemos neste mundo, mas somos cidadãos, cidadãs de outro mundo. Somos chamados a colaborar na construção de um Reino que não é deste mundo, mas é para este mundo. Essa missão não é nada fácil. Somos enviados "como ovelhas entre lobos" (Mt 10,16; Lc 10,3). Muitos rejeitam a mensagem que queremos anunciar. Não a rejeitam apenas, mas querem eliminar a mensagem e a quem a anuncia. Mas também nesta realidade conflitiva ouvimos as palavras de Jesus: "o servo, a serva não é maior que o seu senhor. Se eles me perseguiram, também a vós perseguirão" (Jo 15,20). O Reino é dádiva divina, é graça de Deus, mas não dispensa nosso empenho. O que caracteriza mesmo o cristão, a cristã, é a perseverança em meio a adversidades e frente ao ódio e à violência.

Tombam irmãos e irmãs, sacrificados, executados pelos asseclas de um sistema iníquo, mas quem acredita no Reino de Deus e em sua justiça, não vacila nem treme. O sangue derramado de Irmã Dorothy, de Dema, de Brasília e de tantos outros por esta Amazônia afora é semente fecunda que se multiplica em inúmeros irmãos e irmãs que continuam no Caminho, apostam na utopia do Reino, acreditam no triunfo final de Cristo Senhor, não recuam e, se preciso for, estão dispostos a dar até a própria vida.

"Venha a nós o Vosso Reino!" "Reino da verdade e da vida, reino da santidade e da graça, reino da justiça, do amor e da paz” (Prefácio de Cristo Rei). Amém.

Anapu, 12 de fevereiro de 2008
Erwin Krautler, Bispo do Xingu

http://www.cimi.org.br/?system=news&action=read&id=3035&eid=367


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IRMÃ DOROTHY E SUA TRÍPLICE CIDADANIA


Frei Lourenço M. Papin. OP


Todo cidadão brasileiro sincero, cristão ou não, certamente indignou-se e comoveu-se diante do brutal assassinato de Irmã Dorothy Mae Stang, religiosa missionária no Oeste do Pará, pertencente à Congregação de Nossa Senhora (Notre Dame de Namur), fundada em 1804 na França. Cidadã norte-americana, nasceu em Dayton, nos Estados Unidos, no dia 7 de junho de 1931. De 1956 a 1966 foi professora em várias escolas de sua Congregação em seu país.

Veio para o Brasil em 1966. Foi residir não em grandes cidades, mas em Coroatá no Estado do Maranhão. Em seguida, desde a década de setenta, viveu na Amazônia junto aos trabalhadores rurais da Região do Xingu, na vasta Prelazia onde é bispo Dom Erwin Kräuter. Era de temperamento tranqüilo e decidido, de voz mansa marcada pelo sotaque de seu inglês norte-americano.

Sua atividade pastoral junto as trabalhadores rurais da Transamazônica visava a busca e geração de empregos e renda com projetos de reflorestamento em áreas devastadas e de preservação da natureza, onde, aliás, entram tantos interesses em jogo.

Foi uma líder em diversos movimento sociais no Pará. Ganhou reconhecimento nacional e internacional pela sua atuação em projetos de desenvolvimento sustentável iniciados na pequena Vila de Sucupira, no município de Anapu, a 500 km da capital paraense. Lutava por uma reforma agrária justa e objetiva. Empenhava-se em promover diálogo com lideranças camponesas, políticas e religiosas, em busca de soluções concretas em relação à posse e à exploração da terra na Região Amazônica. Naturalmente incomodava gananciosos fazendeiros, muitos dos quais “grileiros” de terras da União.Uma importante iniciativa de Irmã Dorothy em favor das populações pobres, foi colaborar efetivamente na fundação da primeira Escola de Formação de Professores(as) (Escola Grande Brasil) na rodovia Transamazônica que passa por Anapu.

Irmã Dorothy sempre participou da CPT (Comissão Pastoral da Terra) da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

Tantas vezes criticamos, e com razão, tantos nossos irmãos norte-americanos pelo seu espírito capitalista, consumista e dominador. Devemos, todavia, reconhecer multidões de norte-americanos idealistas como Irmã Dorothy, preocupados com a justiça social, defensores dos empobrecidos e excluídos da sociedade. Essa Irmã tanto amava o nosso povo que fez questão de adquirir a cidadania brasileira, pois assim poderia mais eficazmente defender os direitos fundamentais dos camponeses explorados e garantir-lhes condições dignas de vida. Norte-americana de nascimento, brasileira de adoção e coração!

Pela sua atuação corajosa e transparente, recebeu diversas ameaças de morte sem nunca se intimidar. Há uma sua profética declaração pouco antes de ser assassinada: “Não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade, sem devastar”.

Irmã Dorothy foi assassinada, na covardia de uma emboscada, com sete tiros, a mando certamente de alguns latifundiários da região. Consta que antes de morrer, tirou de sua bolsa a Bíblia Sagrada. Leu um trecho bíblico e caiu no chão sem vida.

O testemunho evangélico e profético de Irma Dorothy, despertou a mídia nacional e internacional, despertou a sociedade e as autoridades legitimamente constituídas para a grave questão social rural, para as violências e as injustiças no campo.

Os antigos cristãos diziam: “O sangue dos mártires é semente de novos cristãos”!

Parafraseando essas palavras, creio poder afirmar que o sangue dessa Irmã mártir pela causa do evangelho, “suscitará a solidariedade e a paz no Brasil, através de políticas públicas para promover o respeito à dignidade e aos direitos fundamentais de cada pessoa humana e para assegurar a justiça e a paz para todos”, da carta da CNBB a Dom Erwin.

Com seu martírio Irmã Dorothy adquiriu sua terceira cidadania, a celeste. Cidadã dos Céus, interceda por este povo que você tanto amou!


http://www2.uol.com.br/debate/1247/cadd/cadernod04.htm

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