Face-a-face com o assassino de Accomarca
Vinte e dois anos atrás, um militar conduziu o massacre de 69 civis no povoado de Accomarca, na região andina meridional do Peru. A patrulha comandada por Telmo Hurtado chegou na aldeia e atirou, lançou granadas e queimou os camponeses, a maioria mulheres e crianças.
Ángel Páez (IPS) / Carta Maior/ 23 fevereiro 2008
Lima (IPS) - Para as peruanas Teófila Ochoa e Cirila Pulido encontrar, face-a-face, o major aposentado Telmo Hurtado, em trajes de presidiário e com grilhões nos tornozelos, foi muito parecido com um ato de justiça.
Vinte e dois anos atrás, o militar conduziu o massacre de 69 civis no povoado de Accomarca, na região andina meridional do Peru. Ochoa e Pulido, que então ainda eram meninas, conseguiram salvar-se, mas o mesmo não aconteceu com suas famílias.
"Quando o vi arrastando os pés, vigiado por policiais, senti um alívio incrível. Finalmente Telmo Hurtado estava enfrentando a justiça", disse Ochoa para a IPS. Tinha 12 anos de idade quando os soldados liderados por Hurtado assassinaram sua mãe e cinco irmãos.
"Queria bater nele, gritar-lhe 'assassino', mas me contive. Ali estava o homem que causou tanto mal a tanta gente inocente. Finalmente será feita justiça, apesar de que me da muita tristeza que seja em um tribunal dos Estados Unidos e não do Peru", disse Pulido, cuja mãe e um irmão de nove meses estão entre as 69 vítimas de Accomarca.
No dia 11 de fevereiro, as duas mulheres prestaram depoimento diante do juiz Adalberto Jordan em um tribunal federal da cidade norte-americana de Miami, onde está ocorrendo o processo contra Hurtado por danos e prejuízos aos camponeses assassinados em 14 de agosto de 1985.
A patrulha comandada por Hurtado chegou na aldeia e atirou, lançou granadas e queimou os camponeses, a maioria mulheres e crianças.
A matança foi perpetrada poucas semanas depois que o atual mandatário Alan García assumiu como presidente pela primeira vez, em 28 de julho de 1985. Mas isso não fez com que ele mudasse a política anti-subversão aplicada pelo seu antecessor, Fernando Belaúnde. Na guerra de 20 anos contra grupos subversivos morreram 69.280 pessoas, segundo a independente Comissão da Verdade e Reconciliação.
Hurtado foi preso em março do ano passado por violar as leis migratórias dos EUA. Havia fugido para Miami em 2002, quando, por decisão da Corte Inter-Americana de Direitos Humanos, o Estado peruano derrogou a lei de anistia do ex-presidente Alberto Fujimori (1990-2000), que beneficiava os membros da repressão.
Informadas sobre sua prisão, as vítimas iniciaram gestões para processá-lo, com ajuda do organismo não-governamental Centro de Justiça e Responsabilidade (CJA em sua sigla em inglês). Se o juiz aceitar a demanda civil, ficará aberta a possibilidade de que Hurtado enfrente um processo penal.
Ochoa estava depondo quando o magistrado Jordan interrompeu para anunciar que Hurtado tinha chegado. Então, dirigiu-se ao acusado para informá-lo de que não estava obrigado a escutar o depoimento das testemunhas. O major optou por retirar-se.
"Foi embora porque é covarde", disse Ochoa. "Não manifestou arrependimento nem vergonha. Nem sequer olhou para nós. Quando notei que estava acorrentado, fiquei cheia de alegria. Disse para mim mesma: Finalmente o assassino começou a pagar suas culpas!", acrescentou.
"Não senti nenhuma pena de ver ele assim, vestido de presidiário e com correntes. Você já começou a pagar pelo que fez, eu dizia por dentro. O que sim me causou muita tristeza foi lembrar desse dia horrível em que mataram e queimaram meus familiares e meus conterrâneos", afirmou Pulido.
Na próxima semana, as duas mulheres viajarão até Accomarca para contar ao seu povo a boa notícia sobre o julgamento contra Hurtado.
"Vou dizer aos meus conterrâneos que a espera não foi em vão. Que o assassino Hurtado já está preso e que não vai sair livre até pagar por todo o mal que nos fez", disse Ochoa, sem poder conter o pranto. "Pensei que este sofrimento nunca ia acabar".
"Eu queria dizer para ele: você matou minha mãe e meus irmãozinhos Gerardo, Víctor, Ernestina, Celestino e Edwin, que só tinha um ano", acrescentou Ochoa.
A advogada das vítimas, Karim Ninaquispe, que também viajou até Miami para presenciar a audiência, disse que na primeira semana de março o juiz já poderia dar a sentença e que ela espera que seja favorável.
"As testemunhas comoveram com seu devastador relato sobre como ocorreu o brutal assassinato. Elas escaparam do fogo dos fuzis e das granadas. Viram como agiram os militares", explicou Ninaquispe.
O CJA expressou sua confiança em que o tribunal irá se pronunciar a favor de abrir o processo solicitado pelas sobreviventes de um dos piores crimes da guerra contra o grupo insurgente maoísta Sendero Luminoso (1980-2000). Durante o governo de Fujimori, Hurtado recebeu uma condenação branda na justiça militar e, em vez de ser expulso do exército, foi ascendido e condecorado. Depois, ainda se beneficiou da anistia.
Ninaquispe apontou que Hurtado, em uma tentativa de viciar a audiência e diminuir sua credibilidade, disse ao tribunal que não sabia para que tinha sido chamado. O militar alegou que não tinha dinheiro para pagar por sua defesa e buscou amparo na Quinta Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que concede aos réus o direito de não depor contra si mesmos. "Eu pensei que 22 anos depois dos fatos de sangue, Hurtado ia expressar alguma forma de arrependimento ou contrição. Achava que, sabendo da presença de duas vítimas, ia pedir perdão a todo o povo de Accomarca através de Teófila e Cirila. Não fez nada disso", disse Ninaquispe. "Pelo contrário, apresentou-se aparentando soberbia, desafiante, arrogante. Era uma forma de ocultar seu medo, o medo da possibilidade cada vez mais próxima de receber a condenação que merece", acrescentou.
Diante da eventualidade de uma sentença desfavorável, Ninaquispe aspira a que as autoridades norte-americanas deportem Hurtado para o Peru, para que lá ele enfrente um julgamento no Terceiro Juizado Supranacional de Direitos Humanos, conduzido pelo magistrado Armando Salvador Neyra.
Na audiência de Miami também ofereceu seu testemunho o ex-senador Javier Diez Canseco, que fez parte da comissão investigadora do caso Accomarca. Lembrou que Hurtado disse que a ordem que havia recebido era "capturar e eliminar" e que isso foi o que fez.
"Hurtado também reconheceu que ordenou que os prisioneiros, entre os quais havia crianças, fossem trancados em uma casa, onde foram assassinados a tiros, e que ele lançou uma granada para incendiar o lugar", relatou Diez Canseco. Soluçando, Ochoa comentou que "não vamos a recuperar a vida dos nossos familiares, mas queremos dar a eles a dignidade da justiça".
"Nem o abandono, a marginalização ou a impunidade nos derrotaram durante 22 anos. Ter visto Hurtado preso nos encheu de esperança. Em breve haverá menos dor em nosso povo", concluiu Pulido.
Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=14828
Nenhum comentário:
Postar um comentário