Revista de História da Biblioteca Nacional http://www.revistadehistoria.com.br (Brasil)
Edição nº 85 - Outubro de 2012 http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/ginga-a-incapturavel-1
Poderosa rainha africana, Nzinga Mbandi resistiu à invasão portuguesa, guerreou e exerceu a diplomacia para se manter no poder por quase 40 anos
(As ilustrações se encontram no texto original)
Mariana Bracks*
Não foi fácil para Portugal retirar milhares de pessoas da África
para servirem como escravos na América. Longas lutas de resistência foram
travadas contra a colonização, que contava com altos investimentos militares e
uma política que combinava opressão, violência e alianças com chefes locais.
A trajetória de Nzinga Mbandi é um
exemplo de como os chefes centro-africanos enfrentaram o avanço português.
Hábil guerreira, estrategista política e militar, Nzinga foi uma líder
carismática, uma rainha que passou a vida combatendo e morreu sem nunca ter
sido capturada.
Nasceu em 1582, filha do oitavo Ngola
(do qual derivaria o nome Angola)
, título do principal régulo do reino do
Ndongo. Os portugueses haviam iniciado a colonização a partir de Luanda sete
anos antes, e foram ganhando o interior com a construção de “presídios” –
fortificações militares no curso do Rio Kwanza, que abrigavam os comerciantes
de escravos – e a organização de feiras em que a principal mercadoria eram as
pessoas escravizadas. Criaram também um sistema de avassalamento de sobas,
os chefes locais autônomos que pagavam tributos ao Ngola em troca de
proteção militar e espiritual. Após a invasão portuguesa, eles eram batizados e
se declaravam fieis à Coroa. Essa condição incluía diversos compromissos:
fornecer baculamentos (tributos pagos geralmente em escravos), dar
passagem às tropas do governo, permitir kitandas (feiras e mercados)
em seu território e contribuir com escravos para serem soldados da “guerra
preta” – o pelotão que lutava junto aos portugueses.
A guerra se generalizava, e com ela
o clima de instabilidade. Os sobados intensificavam ataques a povoados vizinhos
para saldar suas dívidas com os portugueses, pois os prisioneiros capturados em
guerra eram escravizados. Ao sinal de qualquer atitude considerada infiel, o
governo português invadia os sobados e matava seus líderes, substituindo-os por
chefes aliados.
Foi nesse contexto de penetração
portuguesa no reino do Ndongo, movido pelo tráfico negreiro, que Nzinga Mbandi
cresceu. No reinado de seu irmão Ngola Mbandi, agravou-se a tensão entre os
locais e os conquistadores. Em 1617, o governador de Angola, Luis Mendes de
Vasconcelos, invadiu o reino do Ndongo para construir o presídio de Mbaka, a
poucas milhas da Cabaça, a moradia do Ngola. O resultado foi uma guerra
intensa, ao fim da qual Ngola, vencido, refugiou-se na ilha de Kindonga, no Rio
Kwanza. Em 1622, João Correia de Sousa assumiu o governo e decidiu procurar o
Ngola para restabelecer a paz, uma vez que o cenário de guerra paralisara os
mercados de escravos. Foi quando Nzinga entrou em cena.
Ngola Mbandi mandou sua irmã mais
velha como embaixadora para negociar a paz com os portugueses. Na audiência com
o governador, ela impressionou a todos por sua inteligência e habilidade
diplomática. Defendeu a manutenção da independência do Ndongo e o não pagamento
de qualquer tributo à Coroa portuguesa, mas se mostrou aberta ao comércio.
Entendendo que a paz com os portugueses passava pelo batismo cristão, aceitou o
sacramento: recebeu o nome de D. Anna de Sousa, tendo como padrinho o próprio
governador. De sua parte, os portugueses se comprometeram a efetivar a retirada
do presídio de Mbaka.
O
acordo, porém, não foi cumprido nem por aquele governador nem pelos sucessores.
A situação levou ao enfraquecimento político de Ngola Mbandi, que morreu na
ilha de Kindonga, em 1624, em circunstâncias que continuam sendo uma incógnita
para a historiografia de Angola. Nzinga se apoderou das insígnias reais e
assumiu o trono do Ndongo.
A nova rainha foi associada à
possibilidade de libertação do povo Mbundo, etnia predominante no reino Ndongo.
As crescentes fugas de kimbares – escravos que guarneciam os presídios
ou eram dados pelos sobas para comporem a “guerra preta” –
enfraqueciam as tropas lusas, enquanto fortaleciam o exército de Nzinga.
Aproveitando-se desse contexto favorável, a rainha lançou uma campanha
antilusitana, formando e liderando uma confederação de descontentes com a
colonização. Conquistou o apoio de sobas que já haviam se avassalado,
além de poderosos chefes que não pertenciam ao Ndongo, como o Ndembo Mbwila
(Ambuíla).
Capturar Nzinga e reduzi-la à
obediência passou a ser um dos objetivos principais do governo português. Em
1626, o governador de Angola, Fernão de Sousa, arquitetou um golpe político
para que Are a Kiluanje, um vassalo dos portugueses, assumisse o trono. Nzinga
se refugiou na ilha de Kindonga e conseguiu se livrar do cerco usando
sabiamente a geografia do local, deslocando-se pelas diversas ilhas do Rio
Kwanza. Quando as tropas lusas enfim a encurralaram em Kindonga, ela mandou
seus embaixadores informarem que estava disposta a se render e se avassalar.
Para isso, no entanto, pediu uma trégua de três dias. Passado o prazo, os
portugueses perceberam que tinham caído em um golpe: Nzinga já estava longe
dali.
A rainha foi então buscar proteção
junto aos temidos jagas, guerreiros nômades que se organizavam em kilombos
– acampamentos que se deslocavam conforme as necessidades de guerra, com rígida
hierarquia e severa disciplina militar. Nzinga recebeu o título feminino mais
importante no kilombo – Tembanza –, assumindo funções rituais
essenciais. Imprimiu consciência política aos bandos, que até então viviam errantes,
praticando roubos e sem se prenderem a linhagens. Sob o comando de Nzinga, os kilombos
passaram a compor a frente de resistência contra a ameaça estrangeira. O
incrível poderio bélico que Nzinga conseguiu mobilizar junto aos jagas foi
crucial para se manterem livres e vencer os portugueses por várias vezes.
Por volta de 1630, Nzinga ocupou o
reino de Matamba (Ndongo Oriental), terra evocativa de seus ancestrais e
tradicionalmente governada por mulheres. Foi na condição de rainha de Matamba
que ela soube da invasão holandesa em Angola, em 1641. Ali estava uma
oportunidade de estabelecer nova aliança para minar a presença portuguesa na
região. Nzinga aproximou-se dos invasores, e juntos criaram uma importante rota
comercial que conectava Luanda (agora de posse holandesa) a Matamba, trocando
escravos por mercadorias europeias, sobretudo armas de fogo.
Era fundamental para a oligarquia
do Rio de Janeiro restabelecer o domínio do mercado de escravos em Angola. Isso
foi conseguido em 1648 por iniciativa de Salvador de Sá, que organizou tropas
formadas por índios e bandeirantes para expulsar os holandeses. A vitória lusa
teve o efeito direto de enfraquecer a rainha Nzinga. Suas duas irmãs foram
capturadas e mantidas como reféns pelos portugueses. Kifunge acabou assassinada
em Massangano, acusada de espionagem. Mocambo ficou presa em Luanda, utilizada
como arma política a fim de forçar a rendição de Nzinga.
O papa Gregório XV, com o objetivo
de diminuir o poder que as coroas ibéricas tinham acumulado com as colonizações,
criara em 1622 a Propaganda Fide – a “propagação da fé” –, que permitiu a ida à
África Central de missionários que não tinham relações com a Coroa portuguesa.
Entre eles estavam os capuchinhos, que chegaram à região na década de 1640.
Nzinga enxergou nesses religiosos outra possibilidade de fazer novos aliados
europeus que não fossem ligados ao governo português. Por meio do capuchinho
italiano Antonio de Gaeta, Nzinga retornou ao catolicismo em 1656, renegando os
ritos gentílicos e aceitando a fé de Cristo. A conversão ao cristianismo foi
uma saída estratégica, pois, já idosa, ela sabia que a cruz seria o caminho
mais rápido para a paz e para conseguir o retorno de Mocambo, sua irmã indicada
à sucessão de Matamba, enfim libertada pelos portugueses em 1657.
A líder de Matamba morreu em
dezembro de 1663, com mais de 80 anos, sepultada de acordo com os ritos
cristãos. O povo Mbundo a venerou como “rainha imortal”, que nunca se entregou
e que jamais aceitou a submissão aos invasores. Sua fama atravessou o Atlântico
e chegou ao Brasil. Aqui, o nome Ginga, ou Jinga, é evocado em rodas de
capoeira, em congados e maracatus de múltiplas formas: como guerreira que
engana os adversários, inimiga da corte cristã, venerável ancestral de Angola.
*Mariana Bracks é
autora da dissertação “Nzinga Mbandi e as guerras de resistência. Século XVII”
(USP, 2012).
Saiba Mais
Unidos pelo tráfico:
a escravidão na África era comum antes da chegada dos europeus ao continente.
Veja mapa sobre os reinos do Congo que explica essa dinâmica.
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O
trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. Séculos XVI e XVII.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CASCUDO, Luís da Câmara. Made
in África. São Paulo: Global Editora, 2001.
PANTOJA, S. A.Nzinga Mbandi:
Mulher, Guerra e Escravidão. Brasília: Thesaurus, 2000.
SOUZA, Marina de Mello e. Reis
negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de rei Congo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2002.
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