30 março 2015, Carta Maior http://cartamaior.com.br (Brasil)
Maria planeja
fazer na Grécia o que já ajudou a fazer no Equador: permitir que os gastos
sociais superem os gastos com o sistema financeiro.
André Cristi
Uma
das pontes entre o Brasil e as novas experiências políticas da esquerda
socialista europeia chama-se Maria Lúcia Fattorelli. Auditora da Receita
Federal desde 1982, a coordenadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida foi
convidada por Zoe Konstantopoulou, deputada do Syriza que ocupa a presidência
do Parlamento Grego, a compor o Comitê pela Auditoria da Dívida Grega.
Maria Lúcia já participou de processo semelhante no Equador, quando o presidente
Rafael Correa decidiu pela anulação de 70% da dívida que emperrava o
investimento público. “Pela primeira vez na história inverteu-se a equação: os
gastos sociais superaram os gastos com a dívida”, lembra em entrevista à Carta
Maior.
O sistema
De acordo com Fattorelli, o significado maior de auditar uma dívida pública é
desmascarar o que ela chama de “sistema da dívida”. “É um negócio altamente
rentável e que beneficia um pequeno segmento social localizado nos mercados
financeiros”, descreve.
Funciona assim: sem transparência e com enormes privilégios (legais,
financeiros, políticos) aos bancos e agências de risco, o Estado pega dinheiro
emprestado de instituições financeiras públicas ou privadas. O valor emprestado
cresce brutalmente em função de juros elevadíssimos. E a dívida vai se tornando
meramente contábil - isto é, jogo de juros sobre juros. Segundo Fattorelli, “o
endividamento público se converte numa maneira de desvio de recursos públicos
em larga escala”.
Segundo o Tesouro Nacional, em 2013 o governo federal gastou R$ 718 bilhões com
juros e amortizações da dívida interna e externa, o que representou 40,3% do
orçamento federal (o valor gasto em educação, por exemplo, é de 3,4%, em
transporte 1%).
Mas não é a corrupção que afasta nosso dinheiro dos lugares em que ele deveria
ser investido?
Pois bem. O mensalão, considerado à época o maior caso de corrupção do país,
comprovou R$140 milhões desviados. No ano de 2005, a dívida pública consumia
mais de dez mensalões por dia.
O caso grego
A
manipulação da taxa de risco levou o governo grego a aceitar acordos muito
prejudiciais com o FMI e a União Europeia. Endividada e fragilizada, a outrora
obediente Grécia se viu invadida por instituições financeiras internacionais,
grandes corporações e, por consequência, pela agenda neoliberal:
desmantelamento dos direitos sociais e privatização das empresas públicas mais
lucrativas.
“Esse mecanismo de pressão da Troika (comitê de bancos, FMI e Banco Central
Europeu) contra os países – que por sua vez têm que negociar de maneira isolada
– demonstra uma grande assimetria entre as partes, um claro indício de
ilegitimidade”, denuncia Fattorelli. E lembra que o FMI é uma agência
especializada da ONU, como a OIT e a FAO. Deveria, portanto, atuar segundo os objetivos
da Carta da ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos - e não segundo
os interesses do mercado financeiro.
Ainda segundo Fattorelli, o caso grego constitui um forte exemplo do dano
provocado pelo Sistema da Dívida às mulheres. “No início da crise”, relembra,
“o desemprego em massa de mulheres foi utilizado para expandir ainda mais os
cortes de gastos exigidos pelo programa de austeridade fiscal imposto pela
Troika: serviços de creches, assistência social e até certos serviços de saúde
deixaram de ser prestados pelo Estado”. A justificativa? Ora, se as mulheres
estavam em casa, elas assumiriam tais serviços.
O exemplo equatoriano
O
Equador, com auxílio de Maria Lúcia, provou a eficiência da ferramenta de
auditoria. Em 2007 o presidente Rafael Correa criou uma comissão para realizar
auditoria da dívida interna e externa equatoriana, nomeando diversos membros
nacionais e 6 internacionais. Maria Lúcia representou o Brasil. O resultado,
segundo ela, foi impressionante: “permitiu a anulação de 70% da dívida externa
em títulos. Os recursos liberados têm sido investidos principalmente em saúde e
educação”.
A auditoria equatoriana consistiu em tornar transparentes os números da dívida;
verificar quais foram os mecanismos e operações que geraram dívidas desde a sua
origem; quem se beneficiou dos recursos; em que esses foram aplicados;
verificar se foram cumpridas as normas legais e administrativas existentes;
quais os impactos sociais, ambientais etc. Após o exame, e diante das evidentes
ilegalidades, ilegitimidades e mesmo fraudes comprovadas, só restou a Rafael
Correa “dar o calote” numa dívida irreal.
O mais repisado argumento contra a auditoria da dívida é bastante simples:
partindo do pressuposto que a auditoria é um calote ao sistema financeiro, o
mesmo sistema financeiro fecharia o acesso ao crédito dos países caloteiros.
Conforme argumenta Fattorelli, o Equador mostra o oposto: o risco-país caiu e o
acesso ao crédito passou a custar menos.
A partir do gráfico abaixo, também cabe observar que a partir de 2011 os gastos
com a dívida voltam a crescer, o que mostra que o país não ficou isolado e
continuou acessando crédito. Prova irrefutável de que é possível parar de
entregar vastos recursos públicos aos rentistas sem convulsão social - resta esperar
que outros governos ouçam Maria Lúcia Fattorelli de forma tão generosa quanto
ouvem os chicago boys.
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