29 março 2015, Redecastorphoto http://redecastorphoto.blogspot.com
(Brasil)
24/3/2015, Dmitry
Orlov*, Club Orlov
Traduzido pelo pessoal da Vila
Vudu
Era uma vez, há muito, muito tempo,
quanto todas as partes mais densamente ocupadas do mundo tinham uma coisa que
se chamava “feudalismo”. Era um modo de organizar hierarquicamente a sociedade.
Tipicamente, no topo ficava um soberano (rei, príncipe, imperador, faraó,
combinado com alguns altos sacerdotes). Abaixo do soberano havia vários
estratos de nobres, com títulos hereditários. Abaixo dos nobres vinham os
plebeus, que também herdavam o seu lugar na vida, fosse um pedaço de terra
sobre o qual se sangravam de tanto trabalhar, ou o direito de trabalhar em
algum tipo de oficina de produção ou comércio, no caso de artesãos e
mercadores. Todos aí eram fixados às respectivas posições por laços de
fidelidade, impostos e deveres consuetudinários: impostos e deveres
consuetudinários fluíam de baixo para cima na pirâmide social, e privilégios e
proteção, de cima para baixo.
Foi sistema notavelmente resiliente,
que se autoperpetuava, largamente baseado no uso da terra e de outros recursos
renováveis, todos, de fato, movidos a energia solar. A riqueza era basicamente
derivada da terra e dos vários usos da terra. Aí abaixo, está um organograma
simplificado da muito estimada ordem de uma sociedade medieval.
O feudalismo foi sistema de estado
essencialmente estável. As pressões propulacionais eram aliviadas principalmente
por emigração, guerra, pestes e, falhando todas as anteriores, fomes gerais
periódicas. Vez ou outra, guerras de conquista abriam novas vias temporárias
para que houvesse crescimento econômico, mas dado que terra e sol são finitos,
a coisa resultava, mesmo,
num jogo de soma zero.
Mas tudo isso mudou, quando o
feudalismo foi substituído pelo capitalismo. O que tornou possível a mudança
foi a exploração de recursos não renováveis, o mais importante dos quais foi a
energia a extrair da queima de hidrocarbometos fossilizados: primeiro, turfa;
depois, carvão; depois petróleo e gás natural. De repente, a capacidade
produtiva separou-se da disponibilidade de terra e luz solar, e pode ser quase,
embora não, multiplicada ao infinito, bastando para isso, simplesmente, queimar
mais e mais hicrocarbonetos. O uso de energia, indústria e população, tudo
isso, começou a crescer exponencialmente.
Um novo sistema de relações
econômicas foi criado, baseado no dinheiro que se pode criar à vontade, sob a
forma de dívida, que pode ser paga com juros usando os produtos da sempre
crescente produção futura. Comparado ao sistema estável prévio, a mudança levou
a uma nova premissa: que o futuro sempre será maior e mais rico –,
suficientemente rico para sempre devolver principal e juros.
Com esse novo arranjo capitalista,
as velhas relações e os costumes feudais caíram em desuso, substituídos por
um novo sistema no qual os cada vez mais ricos proprietários de capitão
armaram-se contra um trabalho cada vez mais miserável e despossuído. O
movimento sindical e a negociação coletiva permitiu que o trabalho ainda se
aguentasse por algum tempo, mas depois, por inúmeros fatores (como a automação
e a globalização) minaram o movimento trabalhista, deixando os proprietários de
capital com a alavancagem que pediram a Deus, contra uma população excedente de
ex-trabalhadores industriais.
Enquanto isso, os donos do capital
formaram a própria pseudo aristocracia deles, mas sem os títulos nem dos
deveres e privilégios hereditários. Toda a nova ordem predatória deles
baseava-se numa única coisa: valor líquido. O número de cifrões de dólares a
pessoa tem associada ao próprio nome, é o que basta para determinar a posição
dela em sociedade.
Mas eventualmente, quase todas as
fontes locais aproveitáveis de energia baseada em hidrocarbonetos foram
exauridas, e tiveram de ser substituídas por outras, mais distantes, mais
difíceis e mais caras de produzir. Só isso já consumiu gorda mordida do
crescimento econômico, porque a cada ano que passava mais e mais crescimento
tinha de ser ceifado para produzir a energia necessária só para manter (e nem
pensar em crescer!) o sistema. Ao mesmo tempo, a indústria produziu enorme
quantidade de produtos colaterais indesejáveis: poluição e degradação
ambientais, desestabilização do clima e outras externalidades. Eventualmente,
elas passaram a deixar-se ver em prêmios mais altos de seguro e para remediar
danos por desastres naturais e provocados pelo homem, o que acrescentou mais um
amortecedor sobre o crescimento econômico.
O crescimento da população também
tem seu preço. Vocês sabem, populações maiores traduzem-se em maiores centros
populacionais, e resultados de pesquisas mostram que, quanto maior a cidade,
maior o consumo per capita de energia. Diferente do que se vê
com organismos biológicos (quanto maior o animal, mais lento o
seu metabolismo), a intensidade da atividade necessária para
sustentar um centro populacional aumenta conforme aumente a população. Observe
que em grandes cidades, as pessoas falam mais depressa, andam mais depressa e
em geral vivem e operam mais intensamente em agendas mais apertadas, só para se
manterem vivas. Toda essa atividade frenética rouba energia que se poderia usar
para construir um futuro maior e mais rico. Sim, o futuro pode ser (por
enquanto) cada vez mais populoso, mas a forma de colônia humana que cresce mais
depressa em todo o planeta é a favela urbana – sem serviços sociais, sem água e
esgotos, fértil em crimes e criminosos e, de modo geral, sem qualquer
segurança.
O que isso significa é que o
crescimento é negócio autolimitado. E observem que já alcançamos aqueles
limites e, em alguns casos, já os ultrapassamos, e muito. As malfadadas
práticas, mais recentes, de fraturamento hidráulicos do depósitos de xisto e de
extração de petróleo por vapor, de terras betuminosas, são indicativas de o
quanto as fontes de combustíveis fósseis estão-se esgotando rapidamente. A
desestabilização climática está produzindo tempestades cada vez mais violentas
e secas cada vez mais severas (a Califórnia só tem água para mais um ano);
prevê-se que países inteiros desaparecerão por causa da subida do nível dos
oceanos, estações de monções fora de hora e inundações das plantações por águas
de degelo. A poluição também já alcançou limites inimagináveis em muitas áreas:
o ar é irrespirável em Paris, como em Pequim, a ponto de atividades industriais
serem proibidas, apenas para que as pessoas consigam respirar. A radiatividade
dos núcleos fundidos dos reatores nucleares em Fukushima no Japão já está sendo
detectada em peixes apanhados do outro lado do Oceano Pacífico.
Todos esses problemas estão causando
efeito estranhíssimo que se constata no dinheiro. Na fase anterior, de
crescimento do capitalismo, foi criado o dinheiro para fazer avançar o consumo
e, com isso, estimular o crescimento econômico. Mas há uns poucos anos,
alcançou-se um limite nos EUA, que, naquele momento ainda estavam no epicentro
da atividade econômica global (antes de serem eclipsados pela China), quando uma
unidade da nova dívida produzia menos que uma unidade de crescimento econômico.
Com isso, se tornou impossível avançar, mesmo com juros sobre dinheiro futuro.
Se, antes, o dinheiro havia sido
emprestado para produzir crescimento, naquele momento o dinheiro passava a ter
de ser emprestado, em quantidades cada vez maiores, simplesmente para evitar o
colapso financeiro e industrial. Consequentemente, as taxas de juros sobre
novas dívidas foram reduzidas até chegarem a zero, algo que viria a ser
conhecido como ZIRP, sigla em inglês para Zero Interest Rate Policy [Política
de Taxa de Juros Zero]. Para tornar as coisas ainda mais suaves, os bancos
centrais passaram a aceitar em depósito o dinheiro que emprestaram a juros
zero, o que sempre garantia um pequenino lucro, permitindo aos bancos lucrar
sem fazer absolutamente coisa alguma.
Não surpreendentemente, fazer
absolutamente nada mostrou-se atividade absolutamente inefetiva, e por todo o
planeta economias começaram a encolher. Muitos países recorreram ao truque de
mascarar as próprias estatísticas para apresentar quadro mais rosado, mas se há
estatística que nunca mente é a que afere a energia consumida. É indicador que
sempre permite medir o nível geral da atividade econômica; e está caindo em
todo o mundo. Resultado disso, uma super oferta de petróleo, e preço muito,
muito mais barato que antes. Outro indicador que jamais mente é o Índice Báltico Seco [ing. Baltic
Dry Index], que traça o nível de atividade nos embarques; e que também
desabou.
Assim aconteceu que a política ZIRP preparou
o estágio para o desenvolvimento seguinte, muito mais estranho, inusual: as
taxas de juros começaram a ficar negativas, tantos nos empréstimos como nos
depósitos. Adeus políticas de taxas de juros zero, bom-dia políticas de taxas
de juros abaixo de zero!
Os bancos centrais em todo o mundo
estão começando a fazer empréstimos ‘cobrando’ juros negativos. É absoluta
verdade: alguns bancos centrais, atualmente, PAGAM algumas instituições
financeiras para que tomem dinheiro emprestado! Ao mesmo tempo, as taxas de
juro sobre depósitos bancários também se tornaram negativas: manter o seu
dinheiro num banco agora é privilégio pelo qual se tem de pagar.
Mas as taxas de juros não são
negativas, é claro, para todos. Acesso a dinheiro grátis é um privilégio e os
privilegiados, claro, são os banqueiros e os empresários que eles financiam. Os
que têm de tomar emprestado para financiar moradias são menos privilegiados; os
que tomam emprestado para pagar pela própria educação, são ainda menos
privilegiados. Os que absolutamente não contam com nenhum privilégio,
privilégio zero, são os que são obrigados a comprar comida com cartão de
crédito, ou tomam empréstimos que cobram juros diários, para pagar aluguel.
Todas as funções que emprestar
dinheiro desempenhou um dia nas economias capitalistas foram abandonadas.
Antigamente, a ideia era que se podia obter acesso ao capital baseado num bom
plano de negócio, e que isso permitia que o empreendedorismo florescesse e que
se formassem muitos novos negócios. Uma vez que qualquer pessoa (não só alguns
privilegiados) podiam tomar um empréstimo e começar um negócio, significava que
o sucesso econômico, sim, pelo menos em certa medida, dependia de talento e
méritos. Mas agora a formação de negócios está andando para trás, com muito
mais empresas que desaparecem do mundo, do que novas empresas; e a mobilidade
social já se converteu, em vasta proporção, em coisa do passado.
O que resta hoje é uma sociedade
muito rigidamente estratificada, com privilégios distribuídos conforme riqueza
herdada: os do topo são pagos para emprestar, e surfam uma onda de dinheiro gratuito;
os de baixo são empurrados cada vez mais para a servidão das dívidas e da
miséria.
A política das taxas de juro abaixo
de zero garante o suporte para um novo feudalismo? Com certeza não conseguirá
reverter o deslizar ladeira abaixo, porque os fatores que estão impondo limites
ao crescimento não são suscetíveis de manipulação financeira, uma vez que são,
pela própria natureza, fatores físicos. Claro: não há dinheiro grátis no mundo
que consiga fazer renascer novas quantidades de recursos naturais. O dinheiro
grátis pode, isso sim, congelar a hierarquia social em torno dos possuidores de
capital – mas só por algum tempo – não
para sempre.
Para todos os lados onde se olhe, a
economia em processo terminal de encolhimento acaba por levar a revolta
popular, guerra e bancarrota, o que leva o dinheiro a parar de funcionar, em
vários sentidos. Em geral há desvalorização, falência de bancos, incapacidade
para financiar importações e cancelamento de aposentadorias no setor público. O
desejo de sobreviver leva as pessoas a focarem-se em obter acesso direto aos
recursos físicos, distribuindo-os, no máximo entre amigos e familiares.
Por sua vez, isso faz com que os
mecanismos de mercado se tornem extremamente opacos e distorcidos, e em muitos
casos parem completamente de operar. Sob essas circunstâncias, o número de
cifrões de dólar que o sujeito tenha associados ao próprio nome passa a ser
critério muito controverso, e deve-se esperar que a hierarquia social entre os
donos do capital emborque e torne-se instável. Poucos dentre eles têm os
talentos necessários para converter-se em senhores-da-guerra, e esses depenam
os demais e os varrem do mundo. Mas principalmente, numa situação na qual as
instituições faliram, na qual fábricas e outras empresas já não funcionam, e
onde propriedades imobiliárias já foram saqueadas ou invadidas e ocupadas por
saqueadores, torna-se muito difícil calcular o valor líquido de cada um. Assim
sendo, o organograma da sociedade pós-capitalista será mais ou menos o seguinte
(onde “#REF!” é o que o Excel escreve quando encontra, numa fórmula, alguma
referência a célula não inválida).
Termo bom, bastante preciso, para
esse estado de coisas, é “anarquia”. Se algum novo nível (baixo) de
subsistência do estado for alcançado, o processo aristocrático de formação pode
recomeçar do zero. Mas, a menos que, por algum sortilégio ou magia, se encontre
nova fonte de combustíveis fósseis baratos, o novo processo terá de prosseguir
pelas linhas tradicionais, feudais.
*Dmitry Orlov é
um engenheiro russo-americano e escritor sobre temas relacionados ao declínio
econômico, ecológico e político dos Estados Unidos. Orlov acredita que o
colapso será o resultado dos orçamentos militares, enormes déficits do governo
e um sistema político que não responde e declínio da produção de petróleo.
Orlov nasceu em Leningrado (agora São Petersburgo) e se mudou para os Estados
Unidos com 12 anos. Tem bacharelado em Engenharia de Computação e Mestrado em
Lingüística Aplicada. Foi testemunha ocular do colapso da União Soviética
durante os ano 1980-90. Entre 2005 e 2006 escreveu uma série de artigos sobre o
colapso da União Soviética publicada em Peak
Oil. Em 2006 publicou o Manifesto
Orlov on-line, “A
Nova Era da Vela”. Em 2007, ele e sua esposa venderam seu
apartamento em Boston e compraram um veleiro, equipado com painéis solares e
seis meses de fornecimento de gás propano e capaz de armazenar grande
quantidade de produtos alimentícios. Chamou “cápsula de sobrevivência”.
Continua a escrever regularmente no seu blog “Clube Orlov” e no EnergyBulletin.Net
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