16 novembro 2013, ODiário.info
http://www.odiario.info (Portugal)
Os Editores
Um realizador norte-americano empreendeu a tarefa
de documentar a chacina anti-comunista levada a cabo na Indonésia em 1965. O
monstruoso massacre de um milhão de homens e mulheres, encorajado e saudado
pelo imperialismo, surge reencenado por um dos seus principais perpetradores,
pessoalmente responsável por mais de mil mortes. O filme foi estreado em
Espanha a 30 de Agosto. Esperemos que venha a ser visto em Portugal.
Um
realizador de cinema pede a um assassino que recrie, em filme, as torturas e
crimes que cometeu na vida real. Este, encantado com a oferta, dispõe-se a isso
com entusiamo e diligência. O resultado da experiência é uma alucinação
cinematográfica que adquire proporções épicas quando se descobre que o
criminoso é um dos líderes mais sanguinários dos esquadrões da morte na
Indonésia, bandos de carniceiros que, em 1965, acabaram com a vida de um milhão
de pessoas em menos de um ano. The Act of Killing, de Joshua Oppenheimer, é a
consequência desse assustador delírio de fama dos genocidas indonésios que, no
entanto, hoje vivem como heróis no seu país. O filme estreou em 30 de Agosto em
Espanha.
Werner
Herzog, um dos realizadores mais talentosos do cinema documental, revelou
publicamente o seu assombro perante The Act of Killing. “Não vi um filme tão
poderoso, surreal e aterrador em pelo menos uma década”, disse, acertando em
cheio nos cinco adjectivos e na ordem com que os empregou. Tão impressionante,
tão demente é a história deste filme, que a primeira reacção perante o mesmo é
de surpresa. Uma espécie de estupefacção que se transforma em perturbação e
confusão, antes de se transformar em espanto e, finalmente, em algo muito
parecido com a angústia física.
Os
Esquadrões da Morte
Anwar
Congo, um dos cabecilhas dos Esquadrões da Morte que actuaram na Indonésia
depois do golpe militar contra o Presidente Sukarno, é a estrela deste filme.
Este verdugo, responsável, de acordo com as suas palavras, pela tortura e assassinato,
com as suas próprias mãos, de mais de mil pessoas, encena perante a câmara os
crimes que cometeu, explica como perpetrava as suas agressões e vangloria-se de
se ter para isso inspirado em filmes de gângsteres que estreavam no cinema.
Assassino
do grande ecrã,
na sua juventude, ele e os seus amigos controlavam o mercado
negro dos bilhetes. O exército recrutou-os depois do golpe para os esquadrões
da morte porque sabia que odiavam os comunistas (que eram quem mais boicotava
os filmes dos EUA, as mais rentáveis nos cinemas) e já haviam demonstrado que
eram capazes de qualquer acto de violência. Hoje, quase cinquenta anos depois,
Anwar Congo é uma figura venerada na Indonésia.
Fundador
de uma poderosíssima organização paramilitar (Juventud de Pancasila), que
integra publicamente ministros do Governo, tratada com todas as honras. É a
imagem, o símbolo, de um país demente, que aplaude a corrupção e a violência.
Um país em que genocidas são convidados de luxo em programas de televisão, onde
se alongam sobre os seus projectos cinematográficos e sobre os seus aterradores
assassinatos reais. Um país onde boa parte da população continua a viver
completamente aterrorizada e que é apoiado pelo resto do planeta.
Palavra
de genocida
“Matar é
proibido, por isso todos os assassinos são castigados, a menos que matem em
grandes quantidades e ao som das trombetas”. As palavras, que são de Voltaire,
abrem este filme, em que se conjugam cenas de tiroteio pavorosas e em que
trabalham os criminosos, com imagens dos mesmos noutras situações e perante a
câmara, respondendo às perguntas da equipa de Oppenheimer.
“- Como é que exterminou os comunistas?”
“-
Matámo-los todos. Foi isso o que se passou.”
“Não
importa se acaba no ecrã gigante ou na televisão”, disse Anwar Congo, referindo-se
ao filme que estão a filmar e antes de acrescentar: “Temos de demonstrar que é
esta a história, que isto é o que somos, para que as pessoas no futuro se
lembrem.” Um esforço tardio depois de falar perante as câmaras deste
documentário, pois é absolutamente impossível esquecer o que contam, como
contam e, pior, como o comemoram.
Anwar
Congo dança vestido como um gangster do cinema, depois de mostrar o sítio onde
executava as torturas. “No princípio, espancávamo-los até à morte, mas havia
mesmo muito sangue (…). Quando limpávamos, o cheiro era terrível. Para evitar o
sangue, tínhamos um sistema”. Dito isto, uns passos de chá-chá-chá. Assustador.
“Matar
pessoas que não queriam morrer”
Testemunhos
como este ocorrem ao longo de todo o filme e não são apenas procedentes da
memória de Anwar Congo. Um editor de imprensa (“o meu trabalho era fazer com
que o público odiasse os comunistas”), um líder paramilitar local que faz
perante as câmaras uma ronda de extorsão exigindo dinheiro, o próprio vice-presidente
do país, outro verdugo da época, um membro do Parlamento de Sumatra do Norte ou
o subsecretário da Juventude e do Desporto trazem os seus contributos pessoais
ao documentário, observando uma das coisas mais surpreendentes, a absoluta
banalidade com que todos concebem o genocídio e a perfeita impunidade que
construíram em seu redor.
Anwar
Congo reconhece que torturou e matou cerca de mil pessoas com as suas próprias
mãos.
“Quantas
pessoas matou?”, pergunta a Anwar Congo, com um sorriso deslumbrante, uma
apresentadora da TVRI, televisão pública da Indonésia. “Umas mil”, responde
ele, também sorridente. Assustador e, ao mesmo tempo, lógico. No fundo, Anwar
Congo e os seus colegas torturadores estão aqui a fazer publicidade, promovendo
o filme que rodaram descrevendo os seus assassinatos.
A
aberração chegou aqui ao seu ponto culminante. Passaram quase duas horas desde
que começou o filme e o espectador assistiu ao grotesco espectáculo da
fanfarronice de uns assassinos em massa. Durante todo esse tempo, ter-se-á
interrogado, seguramente várias vezes, “como é possível viver com isto e nem
sequer se arrepender?”. A resposta é que provavelmente não é possível.
“Sei que
os meus pesadelos são causados pelo que fiz, matar gente que não queria
morrer”, disse num momento do documentário Anwar Congo, cada vez mais afectado
pelo processo de filmagem e a quem a câmara de Oppenheimer também grava
enquanto interpreta o papel de vítima numa das suas recriações. É um momento
chave para o genocida e para o filme, este em que o assassino se põe no lugar
das suas vítimas. É uma sequência que leva ao final deste documento. E aqui as
turbulências emocionais por que passou o espectador são tantas e tão profundas
que é muito difícil dizer se esse homem (em que agora algo mudou) está
arrependido ou se o que sente é asco perante o mar de sangue provocado, ou se
realmente não queria entender e agora, por fim, entendeu o que significa o acto
de matar.
“Uma técnica de rodagem para tentar compreender”
Vencedor de muitos prémios, este filme foi concebido depois de três anos em que o realizador Joshua Oppenheimer se dedicou a filmar os sobreviventes dos massacres de 1965 e 1966. Durante esse tempo, a equipa de filmagem foi ameaçada, perseguida e avisada para que deixasse o país. No entanto, “os assassinos estavam mais que dispostos a ajudar-nos e, quando os filmámos gabando-se dos seus crimes contra a humanidade, não encontrámos nenhuma oposição. Abriram-nos todas as portas”. E então, no que Oppenheimer chamava essa estranha situação”, teve início um novo começo do filme.
Vencedor de muitos prémios, este filme foi concebido depois de três anos em que o realizador Joshua Oppenheimer se dedicou a filmar os sobreviventes dos massacres de 1965 e 1966. Durante esse tempo, a equipa de filmagem foi ameaçada, perseguida e avisada para que deixasse o país. No entanto, “os assassinos estavam mais que dispostos a ajudar-nos e, quando os filmámos gabando-se dos seus crimes contra a humanidade, não encontrámos nenhuma oposição. Abriram-nos todas as portas”. E então, no que Oppenheimer chamava essa estranha situação”, teve início um novo começo do filme.
Propuseram
aos gângsteres filmarem o seu próprio filme, fazendo de si mesmos e de vítimas.
“Os protagonistas sentiam-se seguros explorando as suas memórias e sentimentos
mais profundos, e o seu humor mais negro. Eu sentia-me seguro interrogando-os
continuamente sobre o que fizeram, sem temer que me prendessem ou batessem”.
“Desenvolvi
uma técnica de filmagem através da qual tentei compreender por que razão a
extrema violência, que muitos consideramos impensável, é não apenas possível,
como se exerce como uma rotina. Tentei compreender o vazio ético que torna
possível que os responsáveis pelo genocídio sejam homenageados na televisão
pública com aplausos e sorrisos”, diz o realizador. “É assim que tentamos
trazer luz sobre um dos capítulos mais escuros da história da humanidade, tanto
local como global, e mostrar os custos reais da cegueira, do oportunismo e da
incapacidade de controlar a ganância e a ânsia de poder numa sociedade mundial
cada vez mais unificada. Em última análise, esta não é uma história sobre a
Indonésia, é uma história sobre todos nós.”
O Golpe
Militar de 1965
Em 1965, o Governo Indonésio foi derrubado pelos militares. Sukarno, o primeiro presidente da Indonésia, fundador do movimento não alinhado e líder da revolução nacional contra o colonialismo holandês, foi destituído e substituído pelo General Suharto. O Partido Comunista Indonésio (PKI), que havia apoiado firmemente o Presidente o Presidente Sukarno, que não era comunista, foi proibido de imediato. Na véspera do golpe, o PKI era o maior partido comunista do mundo fora de um país comunista.
Em 1965, o Governo Indonésio foi derrubado pelos militares. Sukarno, o primeiro presidente da Indonésia, fundador do movimento não alinhado e líder da revolução nacional contra o colonialismo holandês, foi destituído e substituído pelo General Suharto. O Partido Comunista Indonésio (PKI), que havia apoiado firmemente o Presidente o Presidente Sukarno, que não era comunista, foi proibido de imediato. Na véspera do golpe, o PKI era o maior partido comunista do mundo fora de um país comunista.
Depois do
golpe militar de 1965, qualquer pessoa poderia ser acusada de ser comunista:
sindicalistas, agricultores sem terras, intelectuais, chineses… “Em menos de um
ano e com a ajuda directa de certos governos ocidentais, mais de um milhão
destes comunistas foram assassinados”, assegura a equipa de The Act of Killing.
Os EUA
aplaudiram o massacre, que consideraram “uma grandiosa vitória sobre o
comunismo”. A revista Time informava que era uma das melhores notícias para o
Ocidente em anos, na Ásia”, enquanto o The New York Times escrevia: “Um raio de
luz na Ásia”.
Tradução de André Rodrigues
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