1 novembro 2013, Le Monde Diplomatique http://www.diplomatique.org.br
(Brasil)
ESTILINGUE CONTRA PAÍSES AFRICANOS
Em reunião
de cúpula extraordinária, os países da União Africana pediram a suspensão das
ações no Tribunal Penal Internacional contra chefes de Estado em exercício.
Eles desafiam um dos princípios da corte, ao mesmo tempo que revelam as
contradições inerentes da justiça internacional
por Francesca Maria Benvenuto*
Dez anos
de luta contra a impunidade”, proclama orgulhosamente o site do Tribunal Penal
Internacional (TPI). Desde sua entrada em vigor, em 2002, esse tribunal de novo
tipo julga pessoas acusadas de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes
de guerra e ainda crimes de agressão externa contra um país soberano. Uma vez
que o Estatuto de Roma, que fundou o TPI, denuncia um forte grau de impunidade,
a nova jurisdição foi pensada em ruptura com o direito penal internacional
clássico julgado ineficaz.
Contrariamente aos tribunais penais para a
ex-Iugoslávia (TPIY)1 e para Ruanda (TPIR), cujas intervenções foram
limitadas a um território e a um período determinados, o TPI pode julgar
qualquer infração que
tenha acontecido após sua fundação. Basta que uma destas
duas condições seja observada: o indivíduo suspeito é originário de um dos 122
Estados-membros – dos 193 membros da ONU – ou os crimes cometidos aconteceram
no território de um Estado-membro. Essa última cláusula permite estender a
competência a países que não aceitaram a jurisdição do TPI. O suspeito não pode
mais se exonerar de sua responsabilidade ao levantar o escudo de sua função
oficial: o statusde chefe de Estado ou de membro do governo, como o de
um diplomata, não protege das investigações. Desse modo, desde 9 de setembro de
2013, o tribunal julga o vice-presidente em exercício do Quênia, William Ruto,
por violências consecutivas à eleição presidencial de 2007. Ele chegou a emitir
em 2009 um mandado de prisão contra o presidente do Sudão Omar al-Bachir pelos
abusos cometidos na região de Darfur.
O
tribunal pode ser solicitado por um Estado, pelo Conselho de Segurança da ONU
ou agir diretamente pela iniciativa de seu procurador (ação motu proprio),
que atualmente é a gambiana Fatou Bensouda, que acaba de suceder ao argentino
Luis Moreno Ocampo (2003-2013). Complementar das justiças nacionais, ela só
intervém quando o prosseguimento dos processos se torna impossível no país em
questão, por causa da má vontade do governo ou da ineficácia do sistema judiciário.
Concebida como uma “concessão à soberania do Estado”,2 essa
complementaridade carrega, no entanto, uma “discriminação” em relação aos
países fracamente administrados, em particular os mais pobres. Sem dúvida, não
é por acaso que os dezoito casos tratados até agora dizem respeito a conflitos
africanos. O presidente em exercício da União Africana, o etíope Haile Mariam
Desalegn, acusou o tribunal de organizar uma verdadeira “perseguição racial”
durante o encerramento do último encontro da organização, em 31 de maio de
2013.
Cortejar os governos
Assim,
apesar do interesse das inovações inscritas em seu estatuto, o TPI não escapa
da crítica. Ele estaria dividido entre dois mundos: o político e o jurídico.
Acordo internacional clássico, o Estatuto de Roma diz respeito apenas aos
países que o aceitaram. Três membros permanentes do Conselho de Segurança, os
Estados Unidos, a Rússia e a China, até agora não o ratificaram. Washington
teme o questionamento de seus soldados empregados em operações de manutenção da
paz. Moscou e Pequim temem pelos processos ligados à Chechênia e ao Tibete. Por
motivos semelhantes em relação à Palestina, Israel também não reconheceu o TPI.
O Departamento de Estado norte-americano fez alguns de seus aliados,
principalmente na África, assinar acordos de não extradição de seus cidadãos
para o TPI caso estes fossem implicados em crimes cometidos no território dos
Estados-membros.3
O
tribunal se encontra, então, dividido entre seu estatuto de jurisdição penal
supranacional e os compromissos políticos que o fundaram. Ele permanece
dependente da cooperação efetiva dos Estados, principalmente para fazer que os
mandatos de prisão emitidos por seu procurador sejam executados, pois não
dispõe de uma polícia nem de um exército próprios. Apesar da Resolução n.
1.556/2004 do Conselho de Segurança a respeito de Darfur, o governo do Sudão
sempre se recusou a colaborar.4 Além disso, o Quênia e o Chade –
refletindo um amplo consenso no continente africano – acolheram o presidente
Al-Bachir em seu território sem incomodá-lo.
Diante de
tais dificuldades, o procurador deve, portanto, cortejar os governos: sua
cooperação é a condição sine qua nondo processo, que só poderá acontecer
se o acusado estiver presente, pois não foi previsto processo na ausência deste.
Certa prudência diplomática influencia as escolhas da acusação. Para obter o
apoio das chancelarias, ela renuncia por vezes à prerrogativa que garante
melhor sua própria independência: a possibilidade de iniciar investigações motu
proprio.Esse poder, inédito na ordem internacional, foi muito pouco
utilizado. Quatro dos casos sobre os quais o tribunal se interessa hoje – em
Uganda, na República Democrática do Congo, na República Centro-Africana e no
Mali – foram apresentados ao TPI pelos governos implicados. O procurador só
agiu motu proprio duas vezes: no Quênia e na Costa do Marfim, durante o
conflito entre Laurent Gbagbo e seu concorrente, Alassane Ouattara, em 2012.
Para complicar ainda mais a missão do procurador, Uhuru Muigai Kenyatta,
acusado de crimes contra a humanidade, foi eleito presidente do Quênia em 9 de
abril de 2013 enquanto era objeto de um mandado de prisão do TPI e deveria ser
julgado a partir de 12 de novembro.
Mas o que
reduz ainda mais a margem de manobra do tribunal é o ius vitae ac necis
(“direito de vida e de morte”) que o Conselho de Segurança detém sobre ele.
Agindo em virtude do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, ele pode
suspender a intervenção ou, ao contrário, estender a jurisdição do TPI a
Estados não membros (por meio de um referral [orientação]). Esse foi o
caso do Sudão em 2003 e da Líbia de Muamar Kadafi em 2011. A Resolução n.
1.422, de julho de 2002, suspendeu as investigações do procurador sobre as
operações realizadas na Bósnia-Herzegovina – país que assinou o Estatuto de
Roma – pelos capacetes azuis da ONU, principalmente norte-americanos. A ação do
conselho se revela então eminentemente política: no caso do Quênia e do Sudão,
a União Africana estima que as medidas adotadas são contraproducentes e ameaçam
os processos de paz nos territórios referidos.5 No dia 5 de
setembro, o Parlamento de Nairóbi pedia ao governo que renunciasse à sua adesão
à jurisdição internacional, cuja ação ameaçava, segundo ele, a “estabilidade e
a segurança” do Quênia.
Os
critérios de seleção dos casos também suscitam críticas. De fato, o procurador
investiga apenas os crimes que ele considera, de modo discricionário, os mais
graves (número de vítimas, duração, campo territorial). Ele também leva em
consideração o nível hierárquico dos responsáveis potenciais. Esses critérios,
muito vagos, conduziram a escolhas contestáveis. Assim, ele renunciou a iniciar
investigações sobre a guerra conduzida a partir de 2003 no Iraque porque, “os
crimes cometidos aparecem de forma isolada e não vão ao encontro do critério de
gravidade”.6 Evidentemente, as investigações só poderiam ser feitas
sobre os cidadãos dos países que reconhecem o TPI, como o Reino Unido.
Em 2009,
o procurador também não deu prosseguimento às acusações feitas contra Israel
pela Palestina. Moreno Ocampo estimou que cabia “aos órgãos competentes da ONU
ou à Assembleia dos Estados-membros decidir, em direito, se a Palestina
constitui ou não um Estado para fins de adesão ao Estatuto de Roma e, por
consequência, de exercício da competência do tribunal”.7 Assim, ele
se resguardava prudentemente das dificuldades encontradas pela Palestina em se
ver reconhecida como Estado soberano pela “comunidade internacional”.8
Por sua
vez, a Anistia Internacional critica a parcialidade dos processos realizados na
Costa do Marfim: o antigo presidente Gbagbo e sua esposa Simone são
investigados, enquanto o outro ator do conflito pós-eleitoral, Ouattara, o
atual presidente, não foi incomodado. A associação denuncia a “lei dos
vencedores”.9 Segundo o procurador, os crimes cometidos pelo antigo
chefe de Estado seriam de uma “gravidade” particular, justificando a diligência
da justiça internacional.
A última
censura dirigida ao TPI é de ordem simbólica. A fórmula “luta contra a
impunidade” poderia dissimular uma justiça “feita sob medida para os
poderosos”.10 O sistema penal internacional corre, então, o risco de
se tornar um instrumento de legitimação legal, mas também moral, para os países
que podem escapar ao TPI. A invocação de grandes valores com definição
obrigatoriamente ampla pode favorecer a politização das escolhas e abrir o
caminho para uma justiça com geometria variável, esquecida de seu dever de
imparcialidade.
Além
disso, a busca da exemplaridade aumenta as expectativas. Para além da repressão
dos crimes e da punição dos culpados, a justiça internacional se torna ao mesmo
tempo um instrumento de prevenção, um remédio para a guerra, a arma da
segurança global e o meio de fazer justiça às vítimas assim como lhes dar uma
justa reparação. Outra inovação do Estatuto de Roma: a vítima participa
ativamente da administração da justiça, enquanto, diante dos tribunais ad
hoc, ela é apenas uma simples testemunha, frequentemente instrumentalizada
pela acusação. Sua contribuição não é limitada às fronteiras probatórias do
testemunho. Por isso, o processo penal internacional escorrega para o percurso
terapêutico. De acordo com alguns juristas, a justiça seria uma “etapa na
necessária reconstrução da vítima”,11 e o novo posto obtido no
processo, uma “primeira resposta pertinente aos seus múltiplos traumas”.12
Essas interpretações levam ao risco de nos afastar de qualquer racionalidade
jurídica. Elas trazem um grave erro hermenêutico ao confundir o direito de
acesso à justiça com o direito de “obter justiça”, endossando uma visão
“justicialista” das instâncias internacionais.
A vítima
pode até mesmo, por vezes, constituir um elemento perturbador do processo, pois
sua emotividade pode prejudicar a serenidade dos debates. Diante do TPI, ela
pode apresentar elementos probatórios para justificar o dano sofrido, mas
também para estabelecer a culpa do acusado, cumprindo o papel de procurador
privado oficioso. A defesa deve então enfrentar dois acusadores. O simbolismo
que se instaura no coração do TPI, completamente em favor das vítimas, esquece
assim a figura do acusado e desequilibra o jogo processual.
Se as
expectativas são muito grandes, as decepções finais também o serão: o TPI
começa a ser confrontado aos “moinhos de vento” criados pelo simbolismo. É
necessário, por conseguinte, reduzir os objetivos simbólicos, pois, como lembra
Tzvetan Todorov, “o objetivo da justiça deve continuar sendo apenas a justiça”.13
*Francesca Maria Benvenuto Advogada e doutora em Direito
Penal Internacional pela Seconda Università degli Studi di Napoli (Itália).
1
Ler Jean-Arnault Dérens, “Justice borgne dans les Balkans” [Justiça caolha nos
Bálcãs], Le Monde Diplomatique, maio 2013.
2
Nacer Eddine Ghozali, La Justice pénale internationale à l’épreuve de la
raison d’État: l’exemple de la Cour pénale internationale [A justiça penal
internacional à prova da razão de Estado: o exemplo do Tribunal Penal
Internacional], Pedone, Paris, 2000.
3
Ler Anne-Cécile Robert, “Justice internationale, politique et droits” [Justiça
internacional, política e direitos], Le Monde Diplomatique,maio 2003.
4
Cf. Nicolas Burniat e Betsy Apple, “Génocide au Darfour: défis et possibilités
d’action” [Genocídio em Darfur: desafios e possibilidades de ação], Le
Journal de la Coalition pour la Cour pénale internationale, n.37,
Haia, nov. 2008-abr. 2009.
5
Cf. Jean-Baptiste Vilmer, “L’Afrique face à la justice pénale internationale”
[A África diante da justiça penal internacional], Le Monde, 12 jul.
2011.
6
Luis Moreno Ocampo, “The International Criminal Court in motion” [O Tribunal
Penal Internacional em ação]. In: The emerging
practice of the International Criminal Court[A prática emergente do
Tribunal Penal Internacional],Brill, Amsterdã, 2009.
7
“Update sur la situation en Palestine” [Update sobre a situação na
Palestina], Gabinete do Procurador, Haia, 3 abr. 2012.
8
Para outros exemplos relacionados ao critério de gravidade, ver o relatório do
Gabinete do Procurador relativo aos exames preliminares, 13 dez. 2011.
9
“Côte d’Ivoire: la loi des vainqueurs. La situation des droits humains deux ans
après la crise postélectorale” [Costa do Marfim: a lei dos vencedores. A
situação dos direitos humanos dois anos depois da crise pós-eleitoral], Anistia
Internacional, Londres, 2013.
10
Danilo Zolo, La giustizia dei vincitori [A justiça dos vencedores],
Laterza, Roma, 2006.
11
Nicole Guedj, “Non, je ne suis pas inutile” [Não, eu não sou inútil], Le
Monde, 30 set. 2004.
12
Julian Fernandez, “Variations sur la victime et la justice pénale
internationale” [Variações sobre a vítima e a justiça penal internacional], Amnis
– Revue de civilisation contemporaine Europes/Amériques, jun. 2006.
Disponível em: .
13
Tzvetan Todorov, “Les limites de la justice” [Os limites da justiça]. In: Crimes
internationaux, juridictions internationales. Valeur, politique et droit [Crimes
internacionais, jurisdições internacionais. Valor, política e direito], Presses
Universitaires de France, Paris, 2002.
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