24 de Agosto de 2013, Brasil 247
http://www.brasil247.com (Brasil)
Membro
do núcleo de estudos cubanos da Universidade de Brasília, o jornalista Hélio
Doyle, que conhece como poucos a realidade do país, expõe argumentos técnicos
sobre a vinda de profissionais de saúde; ele diz, por exemplo, que eles já
atuaram em regiões remotas do País no passado, sem que houvesse qualquer
gritaria; como Cuba é um país socialista, a contratação é feita diretamente junto
ao Estado, que tem a preocupação de preservar baixos índices de desigualdade;
dos 78 mil doutores cubanos, que têm uma das melhores relações médico/paciente
do mundo, 30 mil atuam no exterior o índice de deserção é baixíssimo
247 - Profundo
conhecedor da realidade de Cuba e membro do núcleo de estudos cubanos da
Universidade de Brasília, o jornalista Hélio Doyle produziu diversas análises
técnicas, e sem ranço ideológico, sobre a importação de 4 mil profissionais
pelo governo brasileiro.
Os textos foram cedidos ao 247 e
permitem uma maior compreensão sobre um tema que tem gerado tanto debate. Leia
abaixo seus artigos:
O QUE NÃO SE DIZ SOBRE OS
MÉDICOS CUBANOS
A grande imprensa brasileira, que
nos últimos anos exacerbou, por incompetência e ideologia, a superficialidade
que sempre a caracterizou, tem sido coerente ao tratar da vinda de quatro mil
médicos cubanos: limita-se a noticiar o fato e reproduzir as críticas das
associações corporativas de médicos e dos políticos oposicionistas. Mantém-se
fiel à superficialidade que é sua marca, acrescida de forte conteúdo ideológico
conservador e de direita.
Não conta, por exemplo, que médicos
cubanos já trabalharam no Brasil, atendendo a comunidades pobres e distantes
nos estados de Tocantins, Roraima e Amapá. Não houve nenhuma reclamação quanto
à qualidade desse atendimento e nenhum problema com o conhecimento restrito da
língua portuguesa. Os médicos cubanos tiveram de deixar o Brasil por pressão do
corporativismo médico brasileiro – liderado por doutores que gostam de
trabalhar em clínicas privadas e nas grandes cidades.
A grande imprensa não conta também
que há mais de 30 mil médicos cubanos trabalhando em 69 países da América
Latina, da África, da Ásia e da Oceania, lidando com pessoas que falam inglês,
francês, português e dialetos locais. Só no Haiti, onde a população fala
francês e o dialeto creole, há 1.200 médicos cubanos – que sustentam o sistema
de saúde daquele país e, como profissionais com alto nível de educação formal,
aprendem rapidamente línguas estrangeiras.
O professor John Kirk, da
Universidade Dalhousie, no Canadá, estudou a participação de equipes de saúde
de Cuba em vários países e é dele a frase seguinte: “A contribuição de Cuba,
como ocorre agora no Haiti, é o maior segredo do mundo. Eles são pouco
mencionados, mesmo fazendo muito do trabalho pesado”. Segredo porque a imprensa
internacional – especialmente a estadunidense — não gosta de falar do assunto.
Kirk contesta o argumento de que os
médicos cubanos que atendem as comunidades pobres em vários países não são
eficientes por não dominar as últimas tecnologias médicas: “A abordagem
high-tech para as necessidades de saúde em Londres e Toronto é irrelevante para
milhões de pessoas no Terceiro Mundo que estão vivendo na pobreza. É fácil ficar
de fora e criticar a qualidade, mas se você está vivendo em algum lugar sem
médicos, ficaria feliz quando chegasse algum”.
O problema dos que contestam a
vinda de médicos estrangeiros e, em especial dos cubanos, é que as pessoas que
passam anos ou toda a vida sem ver um médico ficarão muito felizes quando
receberem a atenção que os corporativistas do Brasil lhes negam e tentam
impedir.
SOCIALISMO E GUERRA FRIA
Duas informações referentes à vinda
de médicos cubanos para o Brasil e que podem ser úteis aos que querem ir além
do que diz a grande imprensa:
- Cuba é um país socialista e por
isso, gostemos ou não, as coisas não funcionam exatamente como em um país
capitalista. Como é um país socialista, há a preocupação de manter baixos os
índices de desigualdade econômica e social. Por isso nenhuma empresa ou governo
estrangeiro contrata trabalhadores cubanos diretamente, em Cuba ou no exterior
(nesse caso quando a contratação é resultado de um acordo entre estados). Todos
são contratados por empresas estatais que recebem do contratante estrangeiro e
pagam os salários aos trabalhadores, sem grande discrepância em relação ao que
recebem os que trabalham em empresas ou organismos cubanos. Os médicos que
trabalham no exterior recebem mais do que os que trabalham em Cuba. Mas algo
como nem muito que seja um desincentivo aos que ficam, nem tão pouco que não
incentive os que saem.
- O governo dos Estados Unidos tem
um programa especial para atrair médicos cubanos que trabalham no exterior.
Eles são procurados por funcionários estadunidenses e lhes são oferecidas
inúmeras vantagens para “desertar”, como visto de entrada, passagem gratuita,
permissão de trabalho e dispensa de formalidades para exercer a atividade. Os
que atuam na América Latina são os mais procurados e uma condição para serem
aceitos no programa é que critiquem o sistema político cubano e digam que os
médicos no exterior são oprimidos e mantidos quase como escravos. Os que
aceitam as ofertas dos Estados Unidos, os que emigram para outros países ou
ficam no país que os recebe depois de terminado o contrato representam cerca de
3% dos efetivos. No Brasil, mantida essa média, pode-se esperar que até
120 dos quatro mil médicos cubanos “desertem”.
UM SISTEMA IRREAL
A citação a seguir é do New
England Journal of Medicine: “O sistema de saúde cubano parece irreal. Há
muitos médicos. Todo mundo tem um médico de família. Tudo é gratuito,
totalmente gratuito. Apesar do fato de que Cuba dispõe de recursos limitados,
seu sistema de saúde resolveu problemas que o nosso [dos EUA] não conseguiu
resolver ainda. Cuba dispõe agora do dobro de médicos por habitante do que os
EUA”.
Menções elogiosas ao sistema de
saúde cubano e a seus profissionais são frequentes em publicações
especializadas e ditas por autoridades médicas e organizações internacionais,
como a Organização Mundial de Saúde, a Organização Panamericana de Saúde e o
Unicef. Mas mesmo assim, querendo negar a realidade, médicos e políticos
brasileiros insistem em negar o óbvio, chegando ao absurdo de dizer que nossa
população está correndo riscos ao ser atendida pelos cubanos.
Para começar, os indicadores de
saúde em Cuba são os melhores da América Latina e estão à frente dos de muitos
países desenvolvidos. A mortalidade infantil, por exemplo (4,8 por mil), é menor
do que a dos Estados Unidos. Aliás, para os que gostam de dizer que Cuba estava
melhor antes da revolução de 1959, naquela época era de 60 por mil. A
expectativa de vida dos cubanos é também elevada: 78,8 anos.
Outro aliás quanto aos saudosistas:
em 1959, Cuba tinha seis mil médicos, sendo que três mil correram para os
Estados Unidos quando viram que não haveria mais lugar para o sistema privado
de saúde e que os doutores elitistas e da elite perderiam seus privilégios.
Hoje tem 78 mil médicos, um para cada 150 habitantes, uma das melhores médias
do mundo. Isso permite a Cuba manter mais de 30 mil médicos no exterior. Desde
1962, médicos cubanos já estiveram trabalhando em 102 países.
Em 2012 formaram-se em Cuba 5.315
médicos cubanos em 25 faculdades públicas e 5.694 estrangeiros, que estudam de
graça na Escola Latino-americana de Medicina (Elam). A Elam recebe estudantes
de 116 países, inclusive dos Estados Unidos, e já formou 24 mil estrangeiros.
Os médicos cubanos se formam após
seis anos de graduação, incluindo um de internato, e mais três ou quatro anos
de especialização. Os generalistas, que atendem no sistema Médico da Família
(um médico e um enfermeiro para 150 a 200 famílias, e que moram na comunidade
que atendem) são preparados para atuar em clínica geral, pediatria,
ginecologia-obstetrícia e fazer pequenas cirurgias.
Dos quatro mil médicos que vêm para
o Brasil, todos têm especialização em medicina de família, 42% já trabalharam
em pelo menos dois países e 84% têm mais de 16 anos de atividade. Grande parte
já atuou em países de língua portuguesa, na África e em Timor-Leste. Foi em
Timor, a propósito, que ocorreu o fato seguinte: o embaixador estadunidense
exigiu do então presidente Xanana Gusmão que expulsasse os médicos cubanos.
Xanana perguntou quantos médicos dos Estados Unidos havia no Timor-Leste e
quantos o país mandaria para substituir os mais de duzentos cubanos que estavam
lá. Diante da resposta, de que havia apenas um, que atendia os diplomatas
norte-americanos, e que não viria mais nenhum, Xanana, simplesmente, disse que
os cubanos ficariam. E estão lá até hoje. Falando português.
OS LIMITES DO
CORPORATIVISMO
1 – Sindicatos de trabalhadores
existem para defender os interesses das categorias profissionais que
representam. São corporativistas por definição.
2 – É natural que esses interesses
conflitem com os de seus empregadores, especialmente em questões ligadas à
remuneração e condições de trabalho.
3 – Muitas vezes os interesses de
uma categoria batem de frente com interesses de outras categorias, e aí cada
sindicato defende seus representados, o que também é natural.
4 – Outras vezes os interesses de
uma categoria colidem com interesses do país e da sociedade. Essa é uma questão
complicada: quem tem legitimidade para definir os interesses nacionais é a
população, que só é consultada quando elege seus governantes e representantes.
E esses governantes e representantes têm, muitas vezes, sua legitimidade
contestada.
A contradição entre interesses
corporativos e interesses nacionais e da sociedade, assim, só pode ser
resolvida pelos que têm legitimidade para expressar esses interesses nacionais
e da sociedade em seu conjunto.
Nos últimos dias, tivemos três bons
exemplos de como os interesses corporativos colidem com os da sociedade. São três
causas que podem interessar às categorias profissionais, mas violam a
legislação e ferem os direitos humanos e sociais:
- O sindicato dos servidores no
Legislativo defendeu que funcionários da Câmara e do Senado recebam
remunerações que superam o teto salarial que deve vigorar para todos.
- O sindicato dos aeroviários
defendeu a tripulação que criou absurdos e desnecessários constrangimentos a
uma criança de três anos e a sua família, por causa de uma doença não
infecciosa.
- Os sindicatos de médicos são
contra o trabalho de médicos estrangeiros no Brasil, mesmo não havendo médicos
brasileiros interessados no trabalho que eles vão fazer.
O corporativismo é inevitável, e os
interesses corporativos devem ser discutidos e considerados. Não podem é prevalecer
quando contrariam interesses e direitos da sociedade: o teto salarial dos
servidores tem de ser respeitado, ninguém pode ser submetido a constrangimentos
por causa de uma doença e as pessoas têm o direito de receber assistência
médica, seja de um brasileiro ou de um estrangeiro.
SISTEMA CUBANO DÁ “DE
LAVADA”
As frases a seguir são de um médico
cubano radicado no Brasil desde 2000. Insuspeito, pois abandonou Cuba.
Formou-se lá e se especializou em epidemiologia e administração da saúde.
Trabalhou por dois anos em Angola e veio para Santa Catarina em um acordo da
prefeitura de Irati com o governo de Cuba. Dois anos depois resolveu
ficar no Brasil, onde vive com a mulher e quatro filhos. Critica o sistema de
pagamento aos médicos, dizendo que ficava com 50% do que era pago pela
prefeitura. Mesmo tendo “desertado”, não entra na onda dos médicos brasileiros
e dos oposionistas de direita que atacam a vinda dos cubanos.
O que o médico cubano
Alejandro Santiago Benítez Marín, 51 anos, disse ao portal G1:
“Em dois meses, eu já entendia
perfeitamente tudo (diferenças culturais, língua). Fazer medicina é igual em
todo o lugar, só muda o endereço”.
“Eu não sou contra que eles venham,
não. Os médicos cubanos são muito bons, nossa medicina é a melhor do mundo. Só
não concordo com a forma como o governo quer pagar, repassando o dinheiro para
Cuba e Cuba vai decidir a quantia que vai repassar. Isso não tem cabimento”.
“Há médicos cubanos fazendo
um excelente trabalho no Norte e Nordeste. O Conselho Federal de Medicina tem
nos ofendido sem necessidade desde o início, chamando-nos de curandeiros,
feiticeiros. Eu sou incapaz de ofender um médico brasileiro, mesmo conhecendo
médicos brasileiros que cometem erros, a imprensa publica sempre. Tem médico
ruim e bom tanto no Brasil quanto em Cuba. Não temos culpa do que está
acontecendo no Brasil e que os médicos de fora têm que vir”.
“Em Cuba é bem mais fácil o
atendimento, não tem esta fila que há hoje no SUS, em que há a demora de três
meses para a realização de exames simples, como ultrassonografia ou
ressonância. Em Cuba este exame é feito no mesmo dia ou na mesma semana. Esta
demora faz o diagnóstico médico ter que esperar”.
“O sistema cubano dá ‘de
lavada’ no SUS, tanto no atendimento normal quanto de emergência. A
especialização nossa é muito boa, tanto que Cuba exporta médicos para mais de
70 países”.
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