15 agosto 2013, ODiário.info
http://www.odiario.info
(Portugal)
Enric
Llopis
Entrevista
com Cláudio Katz
Esta entrevista traça uma larga perspectiva
sobre a América Latina, as diferentes dinâmicas e contradições dos processos
ali em curso, o peso da presença e da influência do imperialismo. Os processos
progressistas, para poderem prosseguir e consolidar-se terão, mais cedo ou mais
tarde, de enveredar por um caminho vinculado à tradição socialista.
O professor e economista Cláudio
Katz (Argentina, 1954) destaca-se por uma brilhante capacidade de síntese.
“Pode ser que venha da época, já de há muitos anos, em que colaborava na
imprensa económica”, ironiza. A partir dos inúmeros cursos ministrados,
construiu uma acertada aproximação analítica da realidade política e económica
da América Latina. Além de docente da Universidade de Buenos Aires, Cláudio
Katz é autor de numerosos trabalhos de investigação sobre o capitalismo
contemporâneo, a crise sistémica global e o impacto do neoliberalismo na
América Latina. Publicou “El porvenir del socialismo” (2004), “Las disyuntivas
de la izquierda en América Latina” (2008), “El rediseño de América Latina.
ALCA, MERCOSUR y ALBA” (2006) e, mais recentemente, “La economía marxista hoy.
Seis debates teóricos” (2009). Katz faz parte do colectivo argentino
Economistas de Esquerda (EDI, sigla em espanhol).
-- Em termos de riscos, como afecta
a América Latina a actual crise global?
A América Latina não é realmente um
epicentro da crise sistémica global. É uma das poucas regiões atingidas apenas
de maneira relativa. Penso que isto corresponde, em termos muito gerais, a uma
valorização das matérias-primas, produtos combustíveis e minerais que
a América
Latina exporta. Além disso, a crise financeira já nos atinge há uma década.
Estes dois factores outorgaram à América Latina uma margem, ainda que instável
e frágil, de recuperação de receitas fiscais provenientes da exportação e de
colocação em marcha de políticas assistencialistas. Trata-se porém de um alívio
momentâneo, que dependerá de como prossiga a crise global.
-- A Venezuela é actualmente uma
das grandes regiões onde se define a correlação de forças no continente. Como
observa a conjuntura aí após a morte de Chávez e a vitória eleitoral de Maduro?
-- Existe uma coisa muito evidente.
A direita vai tentar ascender ao governo, seja pela via eleitoral, seja
mediante provocações. É preciso considerar que se trata de uma direita
golpista, que ensaia diferentes vias. Temos de facto, nos últimos anos,
antecedentes de golpismo institucional em Honduras e no Paraguai. Na Venezuela,
temos de ver qual é a resposta do governo e do movimento popular. Oferecem-se
duas perspectivas: radicalizar o processo e enveredar pelo caminho da transição
para o socialismo; ou que o processo congele e regrida. Esperamos que se
imponha a primeira opção.
-- Desde o ano de 1959 que se
mantém, com todas as suas mudanças, a referência cubana. Qual a sua opinião
sobre a política de “directrizes” e o novo período de reformas económicas?
-- As reformas são uma necessidade
compreendida pelo povo cubano. De forma geral, são discutidas três vias. Temos
que analisar em que grau prevalecem ou combinam entre si: maior peso do
cooperativismo, mais peso da intervenção estatal na economia e maior espaço
para a pequena empresa privada. É um processo que, certamente, implica riscos e
possibilidade de aumento da desigualdade, porém Cuba não dispõe de outro
caminho para salvar as conquistas sociais. Agora, existem vários elementos
decisivos. Tudo dependerá da participação popular, o que promove uma maior
democratização e a capacidade para encontrar formas de introduzir “mercado” sem
regressar ao capitalismo.
-- Outro foco decisivo no
equilíbrio geopolítico latino-americano é a Colômbia, país que é comparado a
Israel quando se trata de avaliar o seu papel no continente. Que considerações
podem ser feitas em relação à presidência de Santos e ao processo de paz?
-- Com Santos o país continua em
estado de militarização e de perseguição do movimento popular. Quanto ao
processo de diálogo, se a finalidade é a paz, parece-me positivo. Porém, outra
coisa é o processo de conversações converter-se, como aconteceu na década de
80, em cobertura para uma nova agressão. Na altura, após a legalização da União
Patriótica, iniciaram o seu extermínio. Outra questão é que a paz deve chegar
juntamente com a reforma agrária, como defende a insurgência. O que é realmente
difícil é alcançar a paz, a reforma agrária e, ao mesmo tempo, derrotar as
intenções belicistas. Basta lembrar que na Colômbia estão instaladas seis bases
militares norte-americanas e que o país assinou um acordo com a OTAN. Em resumo,
existem grandes expectativas na América Latina e na sociedade colombiana de que
a paz seja alcançada. As populações desejam-na, mas o mesmo não sucede com os
grupos paramilitares, a direita e o partido republicano estadunidense.
-- Considera que a intervenção
militar norte-americana diminuiu na América Latina para se concentrar noutros
cenários?
-- Não é certo que os Estados
Unidos já não se interessem pelo nosso continente, ainda que se diga estarem a
dar prioridade ao mundo árabe ou às negociações com a China. A América Latina
continua sendo um território estratégico para os Estados Unidos, no plano
militar e como fornecedora de recursos naturais. Actualmente, estão a adaptar a
sua estratégia militar global com menor investimento em tropas (modelo Iraque)
e maiores doses de tecnologia e operações de inteligência (por exemplo, com os
assassinatos selectivos de inimigos que Obama aponta, os ataques com aviões não
tripulados ou “drones” ou com a espionagem). Em definitivo, os Estados Unidos
são o “xerife” global do capitalismo e estão a ajustar o seu papel. No que
respeita à América Latina, mantêm um jogo diplomático de tolerância e outro
subterrâneo e de militarização, como ficou expresso no golpe de Honduras, na
continuidade do bloqueio e das provocações contra Cuba e na permanência das
bases militares na Colômbia. Sempre com os argumentos da luta contra o
terrorismo e o narcotráfico.
- É a influência norte-americana
que determina a configuração dos blocos em conflito?
-- De facto é assim. Existe um
primeiro bloco político e economicamente neoliberal que se concretiza, por
exemplo, nos Tratados de Livre Comércio (TLC) e com governos direitistas. É o
eixo do Pacífico, onde os Estados Unidos têm como associados o México, a
Colômbia, o Chile, o Peru e vários países da América Central. Insisto: trata-se
de um eixo de continuidade do neoliberalismo ortodoxo, da abertura comercial,
das desregulamentações e das privatizações, tudo isso com efeitos devastadores
sobre a população. Entre os países citados e os Estados Unidos produz-se uma
relação de dependência política e militar. Porém, também de associação
económica entre as classes privilegiadas destes países e o “amigo”
norte-americano.
-- Distingue um segundo bloco…
-- É o bloco que é caracterizado
por um regionalismo capitalista mais autónomo dos Estados Unidos. Basicamente,
trata-se do MERCOSUL, de países como o Brasil e a Argentina. Eles implementam
políticas externas mais soberanas que as dos países do primeiro bloco, promovem
certas concessões sociais, promovem uma maior contemporização com os movimentos
populares, tentam impulsionar uma economia mais regionalizada. Defini-lo-ia
como um projecto burguês local, das classes dominantes sul-americanas, que se
mostra muito inconsistente, pois depende em grande medida da exportação de
produtos básicos. E porque depende das indecisões do Brasil, que possui uma
linha tendente para a economia latino-americana e outra mais forte subordinada
à economia mundial. Todo este projecto é extremamente vulnerável.
-- E, finalmente, o bloco da ALBA.
-- Este é um projecto com elementos
anti-imperialistas, que pretende a redistribuição dos rendimentos, as reformas
radicais e, potencialmente, uma transição para o socialismo. É o perfil mais
interessante a partir de uma perspectiva socialista, com países como a
Venezuela, a Bolívia, Cuba e Equador.
-- Como avalia, por outro lado, os
recentes protestos populares que ocorreram no Brasil?
-- Considero que foi uma grata
surpresa a irrupção popular no Brasil. Há muitas décadas que não víamos este
tipo de mobilizações de sectores das classes médias e trabalhadoras. O que fica
demonstrado com isso é a insatisfação que existe perante as escassas reformas
sociais introduzidas por Lula e Dilma Rousseff. Gostaria porém de enfatizar um
ponto. É um movimento ao qual se somou, finalmente, a classe trabalhadora com
greves muito importantes. Na minha opinião, o processo é algo que ilustra o
amadurecimento político dos jovens brasileiros. O facto de reclamarem escolas e
hospitais em lugar de campos de futebol é sintoma desse amadurecimento
ideológico.
- Noutros países, como a Bolívia e
o Equador, os protestos populares levaram a conflitos com os governos de
esquerda.
- E isso é algo que exprime uma
contradição real e objectiva entre, por um lado, a defesa legítima dos recursos
naturais frente ao extrativismo por parte dos movimentos sociais e, por outro
lado, a necessidade que os governos de países muito pobres têm em obter
recursos básicos para o seu desenvolvimento. Defendo que a solução está em
compatibilizar as explorações de minerais e combustíveis, porém respeitando, em
maior medida, o meio ambiente, além de escutar as reivindicações de todos os
agentes que participam destes processos (sobretudo os dos movimentos sociais).
Por outras palavras, parece-me terem errado ao chamar “neoliberal” a Evo
Morales, tal como é errado acusarem os movimentos sociais de “agentes da CIA”.
São olhares cegos sobre o problema. Apostaria num ponto intermédio, no diálogo.
Por um lado, pelo respeito pela vontade popular, mas também pela necessidade
destes países se financiarem com recursos naturais.
-- Passam este ano 40 anos sobre a
morte de Allende. Como observa, grosso modo, a situação da esquerda chilena?
-- A morte de Allende e a liquidação
do governo da Unidade Popular representaram uma derrota histórica para a
esquerda, da qual custou a recuperar. Entretanto, gostaria de destacar a
batalha dos universitários contra a privatização da educação, num país onde a
educação é pura mercadoria. Esta continuidade das mobilizações estudantis
coloca o Chile em sintonia com o restante da América Latina. Além disso, diria
que os estudantes não questionam apenas Piñera, mas também contestam a política
de Bachelet, que manteve sem modificações o regime neoliberal das
privatizações.
-- O papel dos Estados Unidos, o
conflito entre blocos alinhados política e economicamente, as dinâmicas
internas dos estados… Entretanto, nos últimos anos irrompeu com força um novo
actor: os meios de comunicação…
-- Na última década, os meios de
comunicação substituíram os partidos de direita na América Latina. São eles que
ditam a agenda e as linhas imediatas de acção das classes dominantes. Mais
ainda, são eles os inimigos declarados de qualquer processo de democratização
que os inclua. Ultimamente vem ocorrendo algo muito interessante: o
questionamento da hegemonia mediática e o começo da democratização da
informação com leis que limitam a ditadura dos media. Entretanto, não é tão
simples como isso. Neste ponto, existe uma grande batalha cultural para
demonstrar como os media deformam a realidade e constroem um mundo virtual para
reproduzir o capitalismo. Parece-me que o mais positivo é que, pela primeira
vez, está a ser maciçamente questionada essa tirania. Por exemplo, no Equador e
na Venezuela, foram implantadas leis antimonopólios ou que limitam a
propriedade dos media nas mãos de um grupo empresarial.
-- Por último, quais são os grandes
desafios que América Latina irá enfrentar a curto e médio prazo?
-- O primeiro desafio é de carácter
geopolítico. É de como impedir uma nova depredação dos nossos recursos
naturais, após 500 anos de integração no sistema económico global. O segundo
grande desafio é de como continuar as nossas experiências de luta social, que
converteram a região em referência para os movimentos sociais de todo o mundo.
Porque não só temos lutado, como também temos conseguido vitórias traduzidas em
conquistas sociais e políticas. O desafio agora é aprofundar esse caminho e
vinculá-lo à tradição socialista.
Fonte:http://canarias-semanal.org/not/9680/_si_el_proceso_venezolano_no_se_radicaliza_puede_involuciona
Tradução: Partido Comunista
Brasileiro (PCB)
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