terça-feira, 12 de agosto de 2014

CRESCE O PETROYUAN (E A LENTA EROSÃO DA HEGEMONIA DO DÓLAR NORTE-AMERICANO)

7 agosto2014, Redecastorphoto http://redecastorphoto.blogspot.com.br

4 agosto 2014, *Flynt Leverett e Hillary Mann LeverettWorld Financial Review

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Por 70 anos, um dos pilares mais criticamente determinantes do poder norte-americano tem sido a posição do dólar como mais importante moeda do mundo. Nos últimos 40 anos, um dos pilares do primado do dólar tem sido o papel dominante das notas verdes nos mercados internacionais de energia. Hoje, a China está alavancando seu crescimento como potência econômica, e como o mais importante mercado em desenvolvimento para exportadores de hidrocarboneto no Golfo Persa e na ex-URSS, para circunscrever a dominação do dólar na energia global – com ramificações potencialmente profundas para a posição estratégica dos EUA.

Desde a IIª Guerra Mundial, a supremacia geopolítica dos EUA repousa não só na força militar, mas também na posição do dólar como principal moeda de negócios e de reserva do mundo. Economicamente, a primazia do dólar extrai “senhoriagem” – a diferença entre o custo de imprimir dinheiro e seu valor – de outros países e minimiza a taxa de risco cambial das empresas norte-americanas. Mas sua real importância é estratégica: a primazia do dólar permite que os EUA cubram seus déficits crônicos em conta corrente e fiscal, emitindo mais de sua própria moeda
– precisamente como Washington financiou a projeção de poder militar por mais de meio século.

Desde os anos 1970s, um pilar da primazia do dólar tem sido o papel das notas verdes como moeda dominante na qual se fazem os preços de petróleo e gás, e na qual as vendas de hidrocarbonetos são faturadas e pagas. Isso ajuda a manter alta a demanda mundial do dólar. Isso também alimenta a acumulação de excedentes em dólares pelos produtores de energia, o que reforça a posição do dólar como primeiro ativo de reserva do mundo, e que pode assim ser “reciclado” na economia dos EUA para cobrir os déficits norte-americanos.

Muitos assumem que a proeminência do dólar nos mercados de energia deriva de seu estado mais amplo como principal moeda de transações e de reserva do mundo. Mas o papel do dólar nesses mercados não é natural, nem é função de sua dominância mais ampla. Na verdade, foi concebido e construído por políticos norte-americanos depois do colapso da ordem monetária de Bretton Woods no início dos anos 1970s, o que pôs fim à versão inicial da primazia do dólar (“hegemonia 1.0 do dólar”). Ligar o dólar ao mercado internacional de petróleo foi chave para criar uma nova versão da primazia do dólar (“hegemonia 2.0 do dólar”) – e, por extensão, para financiar mais 40 anos da hegemonia dos EUA.

Ouro e hegemonia 1.0 do dólar
A primazia do dólar foi “sacramentada” pela primeira vez na conferência de Bretton Woods de 1944, onde os aliados não comunistas dos EUA aceitaram a proposição de Washington para uma ordem monetária internacional pós-guerra. A delegação britânica – chefiada por Lord Keynes – e virtualmente todos os demais países participantes, exceto os EUA, prefeririam criam uma nova moeda multilateral através do nascente Fundo Monetário Internacional (FMI) como principal fonte de liquidez global. Mas isso poria abaixo as ambições norte-americanas, que queriam uma ordem monetária centrada no dólar. Apesar de praticamente todos os participantes preferirem a opção multilateral, o poder relativo vastamente superior dos EUA garantiu que, no final, sua preferência predominasse. Assim, sob o padrão ouro de troca de Bretton Woods, o dólar foi ligado ao ouro e as demais moedas foram ligadas ao dólar, gerando a forma principal de liquidez internacional.

Havia, contudo, uma contradição fatal na visão baseada-em-dólar, de Washington. O único modo pelo qual os EUA podiam distribuir dólares suficientes para atender à liquidez em todo o mundo era manter déficits em conta corrente sempre abertos. Com a Europa Ocidental e o Japão recuperados e reconquistando competitividade, aqueles déficits cresceram. Lançado na própria sempre crescente demanda por dólares nos EUA – para financiar o consumo crescente, a expansão do estado de bem-estar e a projeção global do próprio poder – e a oferta de dinheiro dos EUA rapidamente ultrapassou as reservas em ouro dos EUA. A partir dos anos 1950s, Washington trabalhava para persuadir ou coagir possuidores estrangeiros de dólares a não trocar as notas por ouro. Mas a insolvência só poderia ser mantida semiocultado por pouco tempo: em agosto de 1971, o presidente Nixon suspendeu a convertibilidade dólar-ouro, pondo fim ao fim ao padrão ouro de troca; em 1973, as taxas fixas também se foram.

Esses eventos levantaram questões de base sobre a firmeza, no longo prazo, de uma ordem monetária baseada no dólar. Para preservar seu papel como provedor chefe de liquidez internacional, os EUA teriam de continuar a manter déficits em conta corrente. Mas esses déficits cresciam como balões, porque o movimento de Washington de abandonar Bretton Woods entrecruzara-se com dois outros importantíssimos desenvolvimentos: os EUA tornaram-se importadores líquidos de petróleo no início dos anos 1970s; e o acesso ao controle do mercado de energia por membros chaves da Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP) em 1973-1974 causou aumento de 500% nos preços do petróleo, o que aumentou muito o estresse sobre a balança de pagamentos dos EUA. Com o elo entre o dólar e o ouro já rompido e as taxas de câmbio já não fixas, a prospectiva de déficits cada vez maiores nos EUA agravou as preocupações sobre o valor de longo termo do dólar.
Essas preocupações tiveram especial ressonância para os principais produtores de petróleo. O petróleo que ia para mercados internacionais recebia preço em dólar, pelo menos desde os anos 1920s – mas, por décadas, a libra esterlina foi usada pelo menos tão frequentemente quanto o dólar, para pagamentos de compras internacionais de petróleo, mesmo depois de o dólar ter substituído a libra como principal moeda de comércio e de reservas do mundo. Desde que a libra andasse presa ao dólar, e o dólar fosse “bom como ouro”, era processo economicamente viável. Mas depois que Washington abandonou a convertibilidade dólar-ouro e o mundo mudou-se de taxas fixas de câmbio, para taxas flutuantes, o regime de moeda para o comércio do petróleo estava muito vulnerável. Com o fim da convertibilidade dólar-ouro, os maiores aliados dos EUA no Golfo Persa – o Xá do Irã, o Kuwait e a Arábia Saudita – passaram a apoiar uma mudança no sistema de preços da OPEP de preços denominados em dólares, para passar a denominá-los numa cesta de moedas.

Nesse ambiente, vários dos aliados europeus dos EUA reviveram a ideia (introduzida por Keynes em Bretton Woods) de prover liquidez internacional na forma de uma moeda que o FMI lançaria e que seria governada multilateralmente – os chamados “Special Drawing Rights [NT] (SDRs).

Depois que os preços do petróleo, sempre em ascensão, estrangularam suas contas correntes, Arábia Saudita e outros aliados árabes dos EUA no Golfo forçaram a OPEP para que começasse a faturar em SDRs. Também endossaram propostas europeias para reciclar os excedentes em petrodólares através do IMF, para encorajar que crescesse e emergisse como o principal provedor de liquidez internacional pós-Bretton Woods. Significaria que Washington não poderia continuar a imprimir quantos dólares bem entendesse para apoiar consumo crescente, gastos públicos sempre crescentes e projeção global constante de poder. Para impedir que isso acontecesse, políticos norte-americanos tiveram de encontrar  meios novos para incentivar estrangeiros a continuar mantendo excedentes cada vez maiores do que, então, já eram dólares impressos em ar.

Ouro e hegemonia 2.0 do dólar
Para tanto, os governos dos EUA a partir de meados da década dos 1970s, conceberam duas estratégias. Uma foi maximizar a demanda por dólares como moeda transacional. A outra foi inverter as restrições de Bretton Woods aos fluxos de capitais transnacionais; com a liberalização financeira, os EUA puderam alavancar o escopo e a profundidade de seus mercados de capital, e ele pôde cobrir seus déficits crônicos de conta corrente e fiscal, atraindo capitais estrangeiros a custo relativamente baixo. Criar laços fortes entre as vendas de hidrocarbonetos e o dólar provou-se crítico nos dois fronts.

Para criar tais laços, Washington efetivamente extorquiu seus aliados árabes do Golfo, condicionando silenciosamente as garantias dos EUA à segurança deles à disposição deles para ajudar a financiar os EUA. Traindo promessas feitas aos seus parceiros europeus e japoneses, o governo Ford empurrou clandestinamente a Arábia Saudita e outros produtores árabes do Golfo a reciclar partes substanciais de seus excedentes dos petrodólares dentro da economia dos EUA através de intermediários privados (a maioria dos quais norte-americanos), não através do FMI. O governo Ford também reforçou o apoio do Golfo às finanças apertadas de Washington, em vários acordos secretos com Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, pelos quais os bancos centrais desses países compravam grandes volumes de papéis do Tesouro dos EUA fora dos processos de leilões normais.

Esses procedimentos ajudaram Washington a impedir que o FMI suplantasse os EUA como principal provedor de liquidez internacional; também deram impulso inicial e crucialmente importante para inflar as ambições de Washington de conseguir financiar os déficits dos EUA reciclando os excedentes de estrangeiros em dólares, via o mercado privado de capital e em vendas de papéis do governo dos EUA.

Poucos anos depois, o governo Carter concluiu mais um acordo secreto com os sauditas, pelo qual, desta vez, Riad comprometia-se a exercer sua influência para garantir que a OPEP continuaria a precificar o petróleo, em dólares. O compromisso da OPEP com o dólar como moeda de faturamento das vendas internacionais de petróleo foi chave para que o dólar se implantasse ainda mais firmemente como moeda reinante na compra e venda no mercado internacional de petróleo. Quando o sistema de preços administrados pela OPEP entrou em colapso em meados dos anos 1980s, o governo Reagan encorajou a universalização do faturamento em dólares para vendas de petróleo transfronteiras em novos negócios de petróleo em Londres e New York. A universalização quase absoluta na precificação do petróleo – e, depois, também do gás – sempre em dólares, reforçou a possibilidade de as vendas de hidrocarbonetos seriam não só denominadas em dólares, mas também pagas em dólares – gerando crescente apoio mundial à demanda por dólares.

Em resumo, essas barganhas foram instrumentais para criar a “hegemonia 2.0 do dólar”. E foram mantidas, apesar de surtos periódicos de insatisfação do Golfo Árabe contra a política dos EUA para o Oriente Médio; apesar, mais fundamentalmente, do distanciamento entre os EUA e outros grandes produtores do Golfo (o Iraque de Saddam Hussein e a República Islâmica do Irã); e de um rompante de interesse pelo “petroeuro”, no início dos anos 2000s. Os sauditas, especialmente, defenderam vigorosamente que o petróleo continuasse a ser precificado exclusivamente em dólares.

Enquanto Arábia Saudita e outros grandes produtores de energia aceitam agora em outras grandes moedas o pagamento pelo petróleo que exportam, a maior fatia das vendas mundiais de petróleo continua a ser paga em dólares o que perpetua o status do dólar como principal moeda mundial de negócios. Arábia Saudita e outros produtores árabes do Golfo suplementaram o apoio que dão ao nexo petróleo-dólar, fazendo grandes compras de armamento avançado dos EUA; muitos também ancoraram suas respectivas moedas ao dólar – compromisso que altos funcionários sauditas descrevem como “estratégico”. Em momento em que o volume de dólares nas reservas globais já caiu, os árabes do Golfo a reciclar seus petrodólares ajudam a manter o mesmo dólar ainda como principal moeda de reserva.

O desafio chinês
Seja como for, história e cautela lógica ensinam que o que hoje é prática geral não é lei gravada em pedra. Com a ascensão do PETROYUAN, já se constata que, sim, há movimento na direção de um regime de moeda menos dólar-cêntrico nos mercados internacionais de energia – com implicações potencialmente muito sérias para a posição mais ampla do dólar.

A China já emergiu como ator principal no cenário da energia global, e já embarcou numa extensiva campanha para internacionalizar sua moeda.Fatia crescente do comércio exterior da China já está sendo denominado e pago em renminbi; e cresce o lançamento de instrumentos financeiros denominados em renminbi. A China está conduzindo um processo distendido de liberalização da “conta-capital” essencial para a plena internacionalização do renminbi , e está permitindo mais flexibilidade na taxa de câmbio para o yuan. O Banco do Povo da China [orig. People’s Bank of China (PBOC)] já tem acordos de swap com mais de 30 outros bancos centrais – o que significa que o renminbi já funciona efetivamente como uma moeda de reserva.

Os políticos chineses apreciam as “vantagens da liderança” [orig. “advantages of incumbency” (NTs)] de que o dólar goza; o objetivo deles não é que renminbistomem o lugar dos dólares, mas posicionar o Yuan ao lado das verdes como moeda de negócios e de reserva. Além dos benefícios econômicos (por exemplo, reduzir os custos cambiais das empresas chinesas), Pequim quer – por razões estratégicas – reduzir ainda mais o crescimento de suas gigantescas reservas em dólar. A China está vendo a tendência crescente de os EUA excluírem países do sistema financeiro dos EUA, como ferramenta de política exterior, e não quer ver Washington tentar ganhar alavancagem por essa via; a internacionalização dorenminbi pode mitigar essa vulnerabilidade. Mais amplamente, Pequim compreende a importância, para o poder dos EUA, de o dólar ser dominante; contendo a dominância do dólar, a China pode conter o excessivo unilateralismo dos EUA.

Há muito tempo a China já incorporou instrumentos financeiros aos seus esforços para ganhar acesso a petróleo estrangeiro. Agora, Pequim quer que os principais produtores de energia aceitem renminbi como moeda de negócios – inclusive no pagamento das compras chinesas de petróleo – e que incorporem o renminbi nas reservas de seus respectivos bancos centrais. Há boas razões para que os produtores sejam receptivos à ideia.

A China é e assim continuará, em todo um vasto futuro que se pode antever, o principal mercado em expansão para produtores de hidrocarbonetos no Golfo Pérsico e na ex-URSS. Expectativas muito difundidas de que o Yuan se valorizará no longo prazo tornam a ideia de acumular reservas em renminbi ideia “óbvia”, em termos de diversificação do portfólio. E com os EUA já vistos cada vez mais frequentemente como potência em declínio relativo, a China é vista como principal potência em ascensão. Até para os estados árabes do Golfo, que há tanto tempo só confiam em Washington para lhes garantir a própria segurança, os fatos já sugerem que seja imperativo, no campo estratégico, criar laços mais próximos com Pequim. Para a Rússia, a deterioração das relações com os EUA obrigam a gerar cooperação mais profunda com a China, contra EUA que ambas as capitais, Moscou e Pequim, veem potência em declínio lento, mas sempre hiperativa e dada a reações desproporcionais.

Por muitos anos, a China pagou suas importações de petróleo iraniano com renminbi; em 2012, o Banco do Povo da China e o Banco Central dos Emirados Árabes Unidos fizeram acordo de swap de moeda no valor de US$ 5,5 bilhões, -- preparando o cenário para que as importações chinesas de petróleo possam ser pagas a Abu Dahbi em renminbi – importante expansão do uso do petroyuan no Golfo Pérsico. O negócio de gás entre China e Rússia, de US$ 400 bilhões, concluído esse ano, incluiu cláusulas bem claras de que os russos aceitarão que os chineses paguem em renminbi pelo gás que comprarem; se o acordo for integralmente implementado, significará que o renminbi passa a ter papel muito considerável nas transações internacionais de gás.

Olhando à frente, o uso do renminbi para pagar por compras internacionais de petróleo e gás com certeza aumentará, o que fará declinar mais rapidamente a influência dos EUA em regiões chaves da produção de energia. Marginalmente, o mesmo processo irá tornando mais difícil para Washington financiar o que China e outras potências emergentes veem como políticas abertamente intervencionistas – perspectiva que a classe política nos EUA ainda sequer começou a ponderar com seriedade.


*Flynt Leverett e Hillary Mann Leverett são autores de Going to Tehran: America Must Accept the Islamic Republic of Iran (New York: Metropolitan, 2013), que acaba de sair em brochura, com novo pósfácio. Ambos tiveram carreiras importantes no governo dos EUA, antes de abandonarem os cargos que tinham no Conselho de Segurança Nacional, em março de 2003, por não concordarem com a política para o Oriente Médio e a “guerra ao terror”. Hoje, lecionam relações internacionais, ele na Penn State University, ela na American University.

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