quinta-feira, 21 de agosto de 2014

"SANGUE NAS MÃOS AMERICANAS" – Richard Falk na Palestina

21 julho 2014, Resistir.info http://www.resistir.info (Portugal)

por C.J. Polychroniou*

Há 20 anos que Israel e os Estados Unidos trabalham para separar Gaza da Margem Ocidental, violando os Acordos de Oslo que tinham acabado de assinar, declarando-os uma unidade territorial indivisível. O último massacre em Gaza faz parte duma política imperialista israelense que, como me escreveu Noam Chomsky há alguns dias, procura "apoderar-se do que há de valioso 'na terra de Israel', reduzir a população a uma existência marginal (com a habitual exceção neocolonialista: um enclave para os setores ricos e ocidentalizados em Ramallah) e, se ela se for embora, tanto melhor". Mas Richard Falk, Albert G. Milbank, professor emérito de direito internacional na Universidade de Princeton, antigo relator especial das Nações Unidas para a Palestina Ocupada, e autor do recente livro Palestine: The Legitimacy of Hope , que será publicado em setembro pela Just World Press, sublinha nesta entrevista exclusiva que
Israel protesta sempre que os seus ataques contra os palestinos são provocados pelos próprios palestinos.

C.J. Polychroniou: Professor Falk, cá estamos de novo: Israel, uma das mais poderosas potências militares do mundo, desencadeou mais uma ofensiva terrestre na Faixa de Gaza com o pretexto bastante hipócrita de que foi o Hamas quem provocou o ataque a Gaza. Qual é o verdadeiro objetivo de Israel para atacar Gaza nesta altura?

Richard Falk: Creio que Israel "faz uma poda" periodicamente em Gaza, conforme um conselheiro de Sharon exprimiu o objetivo da política de Israel em relação a Gaza, há uns anos. Há fatores presentes no contexto deste ataque de Israel que podem explicar porquê agora. Os dois principais fatores, na minha opinião, foram a instituição mal aceite de um "governo de unidade" temporário, em 2 de junho, pelos líderes da Fatah e do Hamas, que prejudicaram a abordagem israelense de manter tão divididas quanto possível as autoridades governamentais na Margem Ocidental e em Gaza. O segundo elemento foi o forte incentivo de Israel, para enfraquecer o Hamas na Margem Ocidental a fim de Israel poder justificar a sua posição em abril para acabar com as negociações diretas com a Autoridade Palestina e avançar ainda mais para a incorporação da Margem Ocidental, ou a maior parte dela, em Israel e concretizar o sonho expansionista sionista para avançar para além das fronteiras de 1967.

O incidente, em 12 de junho – o sequestro de três colonos adolescentes da colónia Gush Etzion, perto de Jerusalém – forneceu ao governo de Netanyahu o pretexto de que precisava para montar uma campanha anti-Hamas que começou como uma suposta caçada aos perpetradores, com a detenção de 500 suspeitos de ligação ao Hamas e a imposição geral duma série de medidas opressivas, incluindo demolição de casas, cerco a aldeias palestinas, e violência a esmo que provocou a morte a seis palestinos. Como se verificou, o incidente foi manipulado da forma mais cínica pelo governo que fingiu andar à procura dos jovens sequestrados, quando sabia que eles já estavam mortos, usando a ansiedade e a cólera pública para incitar os cidadãos israelenses a justificar as táticas opressivas do governo e a criar uma atmosfera de vingança vigilante.

Depois de negar qualquer envolvimento no incidente do rapto, não é de surpreender que, em retaliação pelas provocações de Israel, o Hamas tenha começado a disparar mísseis contra aldeias israelenses. Israel utilizou a sua tremenda máquina de propaganda para contar ao mundo que o seu terceiro grande ataque militar a Gaza indefesa nos últimos cinco anos (2008-09, 2012, 2014) foi uma resposta defensiva a ataques de mísseis não provocados. Com uma inocência ridícula, Netanyahu disse a todo o mundo que Israel tivera que agir para proteger os seus cidadãos dos mísseis, sem mencionar, obviamente, a anterior razia anti-Hamas que incluiu terríveis calúnias racistas israelenses dirigidas contra os palestinos e ataques vingativos a crianças palestinas.

Porque é que fracassaram as negociações para um cessar-fogo no Cairo?

O cessar-fogo fracassou por várias razões. O Hamas foi excluído do processo conducente ao cessar-fogo proposto e só foi informado pelos media públicos. Além disso, foram ignoradas as condições do Hamas, previamente anunciadas, para aceitar um cessar-fogo: libertação dos palestinos, que tinham feito parte da troca do prisioneiro Gilad Shalit há três anos (em que foi libertado um único soldado israelense capturado, em troca da libertação acordada com Israel, de 1027 prisioneiros palestinos), e que foram detidos de novo nas últimas semanas, na repressão contra o Hamas; fim do bloqueio e abertura das passagens; fim da interferência no governo de unidade; reposição do cessar-fogo de 2012. Por outro lado, o Egito de Sisi dificilmente é um intermediário de confiança na perspetiva do Hamas. Como pano de fundo, está a brutal repressão da Irmandade Muçulmana no Egito e a hostilidade para com o Hamas, que o governo de Sisi considera como sua extensão.

Israel teria desencadeado um ataque se o novo governo egípcio não estivesse também disposto a ver o Hamas destruído?

Isso é um assunto muito polémico. Israel iniciou um grande ataque a Gaza em novembro de 2012, quando o presidente era Mohamed Morsi, apesar da sua afinidade com a Irmandade Muçulmana e depois aceitou um cessar-fogo sob os auspícios diplomáticos do Cairo. Claro que ter o general Abdel Fattah el-Sisi como presidente do Egito é uma evolução favorável do ponto de vista de Israel. Sisi destruiu substancialmente a enorme rede de túneis de que o Hamas dependia para receber os abastecimentos necessários assim como para cobrar os impostos indispensáveis para administrar Gaza. Nos últimos meses, o Egito tem vindo a cooperar com Israel e com os Estados Unidos, inclusive na relação para controlar a passagem através da fronteira de Rafah para o Egito, que é a única via de fuga disponível para a população de Gaza, incluindo os que precisam de assistência médica só disponível no Cairo. Creio que o ataque de Israel ocorreu nesta altura principalmente por razões da política de estado de Israel e teria ocorrido independentemente das atitudes da liderança no Cairo.

Com 1,8 milhão de pessoas encurraladas numa zona de guerra superpovoada, devia ser óbvio que os ataques dos jatos israelenses constituem uma flagrante violação do direito humanitário internacional. No entanto, mais uma vez, Israel é autorizado a avançar com os assassínios porque beneficia do apoio diplomático dos EUA, assim como do apoio militar e financeiro dos EUA. Nessa medida, isso não torna os Estados Unidos um cúmplice nos crimes contra a humanidade, ao lado de Israel?

Concordo que os Estados Unidos, pelas razões que citou, são verdadeiros cúmplices no que se refere à natureza criminosa do ataque de Israel. Se este tipo de cumplicidade envolve uma culpa legal, assim como uma cumplicidade política e moral, é uma questão em aberto. Os Estados Unidos, tanto quanto se sabe, não estão diretamente envolvidos no planeamento e execução desta "agressão" contra Gaza e da "punição coletiva" contra a sua população. Dar apoio militar ou fornecer equipamento militar a um governo estrangeiro, por si só, não constitui uma relação suficiente com o ataque para satisfazer os testes legais de cumplicidade.

O que é claro é que o apoio diplomático, continuado e incondicional, dado pelos EUA a Israel, incluindo a proteção de Israel contra uma censura formal na ONU, e o fracasso em desencorajar a prática de crimes de guerra, resulta em muito sangue nas mãos americanas. Ativistas que se opõem a esta política americana estão atualmente mais empenhados em mobilizar as igrejas e as universidades para abandonarem as empresas que fazem negócios com os colonatos ou facilitam o militarismo israelense, e há crescentes apelos nacionais e internacionais para um embargo de armamento a Israel, o que teria apenas uma força simbólica, dada a robusta indústria de armas de Israel, que está a fornecer armas a muitos países, com o grotesco argumento de vendas de que são testadas "no terreno", ou seja, usadas em Gaza.

O Hamas já enfrentou anteriormente uma situação semelhante mas, sempre que entra em confronto militar com Israel, parece surgir mais forte do antes. Devemos esperar que desta vez seja diferente?

Neste momento é difícil dizer. O que o confronto revelou foi que o Hamas e outras milícias em Gaza têm um fornecimento considerável de mísseis de longo alcance capazes de atingir qualquer cidade em Israel, incluindo Jerusalém e Tel Aviv. Também parece que a confiança de Israel nos ataques aéreos e bombardeamentos navais não foi capaz de limitar o número de mísseis que foram disparados. É verdade que, apesar de terem lançado mais de 1000 mísseis, nenhum israelense foi morto por um míssil palestino (segundo parece, o único israelense que morreu até agora foi atingido por um morteiro disparado de Gaza, quando estava a fugir para um abrigo, uma opção que os habitantes de Gaza não têm) [segundo uma entrevista feita em 19 de julho]. Simultaneamente, os efeitos psicológicos e políticos de terem sido incapazes de fazer parar o lançamento de mísseis prejudicou o prestígio de Israel e pode levar a prosseguir em objetivos mais ambiciosos do que destruir túneis de Gaza para Israel, o objetivo declarado da Operação Margem Protetora, o nome de código que Israel deu à sua operação militar. A alta proporção de civis entre as baixas palestinas (75 a 80 por cento) também sugere que o Hamas está mais sofisticado quanto à proteção dos seus militantes contra o poder de fogo israelense, em comparação com os resultados dos dois ataques precedentes.

Claro que, na medida em que Israel está politicamente mais fraco, o Hamas surge mais forte, resistindo ao violento ataque israelense, demonstrando resistência nas circunstâncias mais difíceis e montando uma teimosa resistência que frustra os anunciados objetivos da guerra de Israel.

Israel tornou-se num estado "fundamentalista", traindo todos os sonhos e aspirações que levaram à sua fundação inicial?

Penso que Israel se foi movendo definitivamente na direção duma compreensão maximalista do projeto sionista, que atualmente pretende claramente o exercício de um controlo de soberania permanente sobre a "Judeia e a Samaria", o que o mundo ocidental conhece como "a Margem Ocidental". O novo presidente de Israel, Reuven Rivlin, que em breve substituirá Shimon Peres, pertence à ala direita do Partido Likud de Netanyahu. É um defensor declarado de um Israel alargado que reclama toda a Palestina bíblica e repudia toda a diplomacia associada ao estabelecimento da paz na base de um estado palestino, na verdade, uma abordagem de um único estado em que os palestinos serão uma minoria permanente. Além disso, o Israel de hoje desviou-se muito para a direita; muitos israelenses evoluíram para uma mentalidade consumista e o conflito com a Palestina, exceto durante crises como a atual, tem colocado sérias ameaças nos últimos anos à estabilidade e serenidade do país. Também, por causa das altas taxas de fertilidade e da importância do movimento colonizador, o judaísmo religioso tem vindo a desempenhar um papel maior, e injeta um certo extremismo religioso e intolerância étnica na vida política e social de Israel.

A solução dois-estados, há muito proposta pelos defensores da causa palestina, incluindo o falecido Edward Said, parece ser um beco sem saída – pelo menos aos meus olhos. Concorda com esta afirmação e, se sim, qual é a alternativa para garantir uma paz duradoura entre israelenses e palestinos?

Vou esclarecer a posição de Edward Said: Durante algum tempo, no final dos anos 80, ele foi a favor, tal como a OLP, da solução dois-estados mas, nos últimos anos da sua vida, aprovou veementemente um estado único, binacional e laico como a única solução praticável que permitia que os dois povos vivessem juntos em paz e com dignidade. Said rejeitou a ideia de um estado étnico para cada povo e achava que a exigência sionista de ter um estado judeu na Palestina histórica nunca resultaria numa paz justa e sustentável que reconhecesse os direitos palestinos sob o direito internacional, incluindo o direito ao regresso e a igualdade para a minoria palestina que vive em Israel.

Subscrevo a última declaração de Said e creio que a escala e a determinação dos colonos é tal que torna impossível a sua remoção politicamente. Por essa razão, opus-me ao tipo de negociações diretas que o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, tanto pressionou há um ano, criando falsas expetativas e pressões artificiais. Presentemente, não existem pré-condições políticas para dois estados com iguais direitos de soberania, vivendo lado a lado definitivamente e provavelmente nunca existiram. Negociar com esse sentimento de futilidade é fazer o jogo de Israel de conversações infindáveis, enquanto as gruas de construção nos colonatos continuam o seu trabalho ilegal a um ritmo acelerado. O tempo nunca jogou a favor dos palestinos. As suas perspetivas territoriais têm sido permanentemente reduzidas e chegaram agora praticamente a zero. Recorde que o plano de partição da ONU em 1947 pareceu injusto aos palestinos, quando lhes ofereceram apenas 45 por cento da Palestina, e que depois foi reduzido a 22 por cento na sequência do resultado da guerra de 1948, com a expulsão dos palestinos, e ainda mais pelos "factos no terreno" (colonatos, muro, estradas só para colonos) paulatinamente criados a partir de 1967.

A melhor esperança do movimento nacional palestino nesta altura é avançar através de um governo de unidade, envolvendo também a comunidade de 7 milhões de refugiados e exilados, trabalhando em conjunto com o movimento global de solidariedade que está a crescer rapidamente. Por outras palavras, as perspetivas palestinas no futuro dependerão da mobilização contínua da sociedade civil global para apoiar ações coercivas não violentas a uma escala mundial. A campanha BDS ( 
Boycott, Divestment, and Sanctions ) tem vindo a crescer recentemente a um ritmo rápido, em que se tornam mais relevantes as analogias com a luta anti-apartheid que derrubou um regime racista na África do Sul contra todas as expectativas. Esta mudança na tática palestina na direção do que eu tenho chamado de "guerra de legitimidade" parece reforçada na sua plausibilidade pela crescente indignação global perante a tática de Israel, principalmente pelo seu desprezo insensível pela inocência civil dos palestinos. 
21/julho/2014

Tradução de Margarida Ferreira.


*Investigador associado no Instituto de Economia Levy de Bard College e colunista dum jornal nacional diário grego. Os seus principais interesses de investigação são a integração económica europeia, a globalização, a economia política dos Estados Unidos e a desconstrução do projeto político-económico do neoliberalismo. Ensinou durante muitos anos em universidades nos Estados Unidos e na Europa e é colaborador regular para Truthout assim como membro do Public Intellectual Project da Truthout. Publicou vários livros e os seus artigos têm aparecido numa série de jornais e revistas. Muitas das suas publicações têm sido traduzidas em diversas línguas estrangeiras, incluindo o grego, o espanhol, o português e o italiano. 

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