domingo, 3 de junho de 2007

G-8 insiste em "solução de mercado" para problemas globais

Por Flávio Aguiar, enviado especial da Carta Maior a Berlim

Conheça o Draft for Summit Declarations, documento divulgado pelo governo alemão que reúne os pressupostos inamovíveis do G-8 sobre a agenda global contemporânea, do aquecimento global ao desenvolvimento da África.

Na mídia alemã, começa a aparecer com alguma insistência uma palavra incômoda sobre a próxima reunião do G-8 (o grupo dos sete países mais industrializados do mundo, EUA, Reino Unido, Franca, Japão, Canadá, Itália e Alemanha, mais a Rússia): “Schiffbruch”, que quer dizer “Naufrágio”. A marola da palavra atinge também o próprio governo alemão, liderado por Angela Merkel, da União Democrata Cristã (CDU).
Depois das eleições, Merkel organizou um governo de coalizão como o SPD, o partido social-democrata. Um fracasso na reunião do G-8, que o governo alemão preside neste ano, certamente terá efeitos negativos sobre a coalizão e sua perspectiva de continuidade.

O governo alemão investiu muito nesta próxima reunião, cujas preliminares se abrem neste fim de semana, mas que começa para valer a partir do próximo dia 6, quando começam a chegar os chefes de Estado. O próprio presidente Lula, convidado, deverá comparecer, tendo reuniões marcadas para o dia 7 em Berlim, inclusive com o primeiro ministro Putin, da Rússia, e outros no dia 8, em Heiligendamm, cidade portuária no mar Báltico, onde se reúne o G-8.

Em fevereiro deste ano, o governo alemão distribuiu uma minuta do que seria uma possível declaração deste encontro de 2007. Na página do G8 Research Group, da Universidade de Toronto, é possível obter acesso a este documento.

Chamado de “Draft for Summit Declarations”, esse documento tem por tema geral o da pauta do G-8, “Crescimento e responsabilidade”. É uma peça de considerável tamanho e também de considerável esforço lógico e retórico, tentando reunir os pressupostos inamovíveis do G-8 com temas da agenda global contemporânea, como aquecimento global, o desenvolvimento da África, a geração de emprego, o desenvolvimento e a transferência de tecnologia.

Entretanto, o documento não consegue trazer argumentos substantivos para demonstrar a necessária ligação (no seu entendimento) entre as premissas das atuais políticas econômicas nos países do grupo com a solução dos problemas levantados. Torna-se assim mais uma ladainha de princípios e uma enumeração de problemas, esperando que a contigüidade entre elas sirva de argumento.

O documento começa fazendo o elogio do livre mercado e da livre competição para produzir ajustes estáveis e crescimento econômico contínuo. Este é o seu “Fiat Lux”, o “No princípio era o Mercado”. A seguir o documento faz alguns elogios a ajustes nos Estados Unidos (apoio à poupança nacional, reduzindo o déficit orçamentário até chegar ao equilíbrio em 2012), à Europa (aumento na demanda interna e melhora no mercado de trabalho, obediência a políticas econômicas “prudentes”, que colhem os dividendos das “reformas estruturais” anteriormente feitas), ao Japão (reformas estruturais no setor financeiro) e à Rússia (crescem os investimentos e as importações).

O documento também exorta a China a fortalecer o seu setor financeiro, a abrir-se para uma flexibilização cambial, e a voltar-se para o mercado interno (será uma advertência diante do risco da China devastar economias com seus produtos baratos, inclusive nos do G-8?). Também assinala a necessidade dos países produtores de petróleo usarem os excedentes para diversificar suas economias.

Entretanto, o documento assinala que sobre este quadro promissor paira uma ameaça: o risco do aumento do “protecionismo”. Porém esse risco não vem qualificado, não se sabe se é o dos países pequenos contra os grandes ou o destes contra aqueles, que é (este último) a realidade corrente.

Depois deste início, vem nova acentuação de princípios. O G-8 deve afirmar seu compromisso com a liberdade de investimentos, e com a promoção de um ambiente aberto a essa liberdade seja onde for, tanto nos países industrializados como nos recém industrializados, caso do Brasil, China, Índia, África do Sul e México, pelo menos. Esse ideal de liberdade de investimentos e descrito como o melhor para os países em desenvolvimento. O G-8 deverá reforçar as molduras liberais de investimento, bem como lutar contra o que possa se levantar contra elas, a saber, e aqui aparece novamente o vilão, o protecionismo.
De fato, neste ponto o documento não é claro, deixando a questão numa certa obscuridade, o que levanta a leitura de que ele se refira a novos protecionismos, não aos que consagraram as políticas de desenvolvimento dos países mais ricos do mundo, todas elas baseadas historicamente nalgum tipo de proteção a seus produtos, inclusive aqueles implementados a mão armada nas nações colonizadas. O mundo do G-8 é um estranho mundo, onde aparentemente só há futuro, e o passado fica encoberto sob uma retórica cinza e nebulosa.

O G-8 deveria, então, concordar com o papel central dos mercados livres e abertos a todo o tipo de investimento, como base do crescimento econômico, da prosperidade e do aumento de emprego. Aqui vem o que seja talvez o maior esforço do documento, que e o de pregar a nivelação do tratamento dos investidores. Todos deveriam ter tratamento absolutamente igual, sejam investidores de países ricos em países pobres ou vice versa, o que, na verdade, consagra a desigualdade, pois não e igualitário tratar desiguais como iguais, convenhamos.

Quanto à transferência de tecnologia, o documento assinala que ela é desejável, desde que orientada pelo e para o mercado, ou seja, sem a intervenção de políticas ou de pressão por parte dos Estados. Ela é fundamental, diz textualmente o documento, como catalisadora da globalização.

A partir desse ponto, o documento faz um longo elogio dos atuais fóruns internacionais de diálogo e negociação, como a OCDE, a Organização Mundial do Comércio e a Unctad, cuja próxima reunião de cúpula esta prevista para meados de 2008.

A partir daí o documento registra uma série de temas e pautas que devem ser abordados, desde que aqueles princípios acima descritos sejam obedecidos. O primeiro deles é o de que livres mercados necessitam da inclusão social e da aceitação política de todos os atores, inclusive, em menção explícita, das mulheres. Depois vem a lista de investimento em proteção social, justiça, equanimidade, solidariedade, mas, ressalva o texto, desde que combinados com um sentido de responsabilidade, e de accountability, ou seja, traduzindo por minha conta, adequação fiscal. Seguem ainda o uso sustentável da água, do solo e o aumento da eficiência no uso de energia.

Ainda no capítulo da tecnologia, há uma forte acentuação do respeito à propriedade intelectual, contra a pirataria e a cópia, como um elemento chave para promover a efetividade dos incentivos de mercado às inovações. Enfaticamente, o documento assinala que o respeito à proteção da propriedade intelectual é a espinha dorsal da inovação tecnológica. Quem lê o documento desavisadamente pensa no inventor de fundo de quintal ou no pesquisador universitário, quando o que está em jogo são as reservas de mercado para as grandes corporações nos terrenos complexos da saúde, da informática e comunicações e da energia.

Quanto às mudanças climáticas, o documento chega a algumas precisões, estabelecendo a meta de grandes reduções no consumo de energia fóssil, nas emissões de dióxido de carbono, e no desmatamento, campo onde o Brasil e elogiado. Com isso, espera-se chegar a uma meta de aquecimento global de apenas 2 graus Celsius nas próximas décadas. Fala também em se reduzir o consumo de energia em 20% em relação a 2005, até 2020, com base no aumento da eficiência, na construção de residências sustentáveis, no desenvolvimento de fontes alternativas.

Há uma parte específica sobre a África, falando em conjugar democracia e desenvolvimento, e ainda quanto à necessidade de se incluir na agenda global uma mesa de negociação comum entre os países do G-8 e o Brasil, a China, a Índia, a África do Sul e o México.

Diz também que um dos itens necessários e o da regulamentação dos hedge funds, coisa que vem sendo citada com insistência como uma das possibilidades de naufrágio na reunião do G-8, pois quase ninguém acredita que isso vá além da retórica a respeito.

Essa é uma proposta ainda em aberto, cuja agenda vem sendo elogiada por economistas conservadores, como o professor Jagdish Bhagwati, da Universidade de Columbia, em entrevista ao jornal Die Welt em 31 de maio, mas parcialmente posta em dúvida como superada pelos acontecimentos, como pelo próprio membro do governo alemão de coalizão, Franz Muntefering, Ministro do Trabalho e das Questões Sociais, do SPD.

Também não se sabe ainda qual será a reação e quais serão as propostas dos demais membros do G-8, embora certamente não se espere nenhuma grande guinada nos princípios afirmados. Como tal o documento, até agora, fixa um compromisso retórico entre um ideário econômico estritamente liberal e ortodoxo, e temas da atualidade que expõem o risco de uma devastação planetária sem precedentes, ponto a que se chegou exatamente devido àquele ideário econômico dominante. (Agência Carta Maior / 3 junho 2007)

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