domingo, 3 de junho de 2007

Brasil / O Senado e as razões de fundo da campanha anti-chavista

Por José Reinaldo Carvalho*

Falemos sério. A história brasileira está repleta de exemplos em que a direita mimetizou os comportamentos de seus êmulos de ultramar ou do norte, de modo que o comportamento servil dessa direita não se limita a uma papagaiada. Vai além, muito além, se se tratar de compará-la à miríade de exemplares que possuímos em nossa fauna.

Não restam dúvidas de que o Senado da República é uma instituição respeitável, merecedora da consideração das demais instituições nacionais, da opinião pública, como de parlamentos e governos de outros países. (Embora, muito embora, diga-se entre parêntesis, não se saiba ao certo a função que teria um Senado numa democracia avançada e sejamos obrigados a lembrar que uma das principais medidas sugeridas pelo líder comunista João Amazonas para a reforma política que a Constituinte de 1987-1988 era a instituição do Congresso Unicameral, o que implicaria a extinção do Senado, tal como se afigurava e ainda se afigura hoje. A proposta consta de um livro de grande circulação à época nos meios políticos – “As Propostas do PCdoB para a Assembléia Constituinte” - e foi objeto de respeitáveis debates entre o então presidente do PCdoB e o relator da nova Carta Magna, o senador Afonso Arinos. A proposta foi submetida à apreciação do grupo de constituintes que se reunia freqüentemente na residência do então deputado constituinte do PCdoB e ex-líder de sua bancada, Haroldo Lima. Na condição de um dos redatores do citado opúsculo, testemunhei os debates e constatei com que respeito e seriedade, mesmo quando havia discordâncias, eram consideradas esta e outras propostas apresentadas pelo velho comunista).

O parêntesis é apenas para que, com o respeito que o Senado nos merece, não sejamos levados ao erro de sacralizar a câmara revisora, tradicional reduto do conservadorismo brasileiro. Feitas as honras devidas à Câmara Alta do Congresso Nacional, observo que a nota mais forçada, na justa reação do presidente Chávez à impertinência do Senado brasileiro, foi a metafórica referência ao que em sua opinião seria mais fácil, se a revogação da justa medida do seu governo de não renovar a concessão da RCTV ou a restauração do Império colonial português no Brasil. Não restam dúvidas de que o colonialismo português jamais será restaurado no Brasil, de modo que, no caso em tela, estamos diante de duas impossibilidades.

Mas vamos ao que mais interessa. Menos dúvidas quedam, para quem faz leitura política correta dos fatos, de que não reside na forma pela qual se expressou o presidente Chávez - líder revolucionário, comandante da Revolução Bolivariana, estadista da integração latino-americana, hoje o mais destacado dirigente, ao lado de Fidel, da luta pela libertação nacional e social no continente - a razão de fundo da luta política que se estabeleceu objetiva e subjetivamente, tendo como estopim o caso RCTV, entre o governo da República Bolivariana da Venezuela, de um lado e, de outro, uma heterodoxa frente que reúne o imperialismo norte-americano, Bush à cabeça, a direita venezuelana, os governos da União Européia, a mídia serviçal do capital financeiro internacional em todo o mundo, a brasileira inclusive, e infelizmente alguns políticos brasileiros, a maioria dos quais detentores de mandato no Senado – Eduardo Azeredo (PSDB), Heráclito Fortes (DEM), José Sarney (PMDB), Renan Calheiros (PMDB), Eduardo Suplicy (PT), Aloísio Mercadante (PT) - além do presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia (PT) e políticos de expressão bem menor, como o medíocre suplente de senador Roberto Freire (PPS), dirigente de um minúsculo partido surgido nos anos 90 como resultado da renegação ao comunismo.

Falemos sério. A história brasileira está repleta de exemplos em que a direita mimetizou os comportamentos de seus êmulos de ultramar ou do norte, de modo que o comportamento servil dessa direita não se limita a uma papagaiada. Vai além, muito além, se se tratar de compará-la à miríade de exemplares que possuímos em nossa fauna.

Soa estranha, desafinada, fora de tom, mormente quando o presidente do Senado é alvo de campanha de desestabilização por parte da mesma mídia anti-Chávez, pela qual se pretende atingir não só a sua pessoa, mas a própria base de sustentação do governo Lula, a sua declaração de que “Chávez está na contramão da democracia”. Como não deixa de ser estridente o discurso do ex-presidente José Sarney, cujo governo se notabilizou pelo uso político das concessões de canais de TV e estações de Rádio como instrumento para consolidar sua base política, bradando contra “o ataque à liberdade de expressão” supostamente perpetrado pelo governo de Chávez. Como soa ofensivo, uma violação mesma do decoro, qualificar o presidente de uma nação amiga de “aprendiz de ditador”, segundo a chula expressão do apagado representante piauiense e da direita peefelista travestida de democrata, o senador Heráclito Fortes. Tudo isso mostra que o problema não reside em “arroubos”, “bravatas” , “retórica inflamada” etc.

A histeria anti-chavista desatada em torno da não renovação da concessão à RCTV não se justifica, mesmo segundo a ótica do direito burguês. Foi uma medida absolutamente constitucional e legal. Politicamente, foi também um legítimo ato de defesa em face de condutas abusivas e ilegais de um meio de comunicação a serviço de interesses alheios aos do país e do povo. Remeto o leitor ao dossiê publicado pelo governo venezuelano sobre a RCTV.

O problema de fundo reside na natureza do processo em curso na Venezuela, em flagrante contraste com os ditames do imperialismo norte-americano e as expectativas da direita, esteja ela nos Estados Unidos, na União Européia, na Venezuela, no Brasil ou alhures. Ouvindo alguns discursos de gente que se elege por legendas de esquerda, constato que muitos não entenderam ou se recusam a entender, que desde o levantamento cívico-militar de 4 de fevereiro de 1992 (que a falsa esquerda chamou de golpe), está em curso no país vizinho uma profunda revolução de caráter democrático, popular e antiimperialista, que tomou fôlego e ganhou novos contornos com a eleição de Hugo Chávez Frias à Presidência da República em 1998 e a subseqüente proclamação da República Bolivariana. Hoje, com o amadurecimento do processo, a Revolução venezuelana empreende novo passo e, à moda inventiva dos próceres nacionais Simon Rodriguez e Simon Bolívar, proclama seu caráter socialista.

O caminho que conduzirá ao socialismo na Venezuela não está pavimentado. Será sem dúvida pontilhado de confrontações políticas, econômicas, sociais e culturais com as forças da direita e o imperialismo, de modo que o episódio da não renovação da concessão à RCTV é apenas um – e não o mais radical – entre muitos que tendem a ocorrer doravante. Acostumemo-nos a isso. Por óbvio, o sistema político será inteiramente distinto do apodrecido sistema democrático-burguês, terá nova conformação institucional, novos métodos de governo e participação popular, nos quais não cabem anacrônicas e hipócritas concepções de “liberdade de expressão”, em que só se expressam com inteira liberdade os representantes da plutocracia nacional associada à dominação imperialista. O que assusta os tradicionais e os neoconservadores, de matriz liberal ou originários da esquerda, é que o comando da Revolução já demonstrou que não se afastará do caminho para a construção do novo sistema político e da nova sociedade. O mesmo ocorre na própria Venezuela, onde há um punhado de ex-esquerdistas, ex-guerrilheiros e ex-comunistas integrando as hostes da contra-revolução. São os que mais vociferam em entrevistas aos veículos da grande mídia “livre” e nos artigos que assinam nos periódicos criados com vultosos financiamentos do patronato pró-imperialista. Essa gente põe-se em desespero quando constata com o amargor dos vencidos que o comando revolucionário do país decidiu enfrentar as pressões de Bush e seus aliados e levar adiante o programa de transformações sociais e políticas.

Um dos componentes do socialismo do século 21 é a união, organização e mobilização do povo para a luta antiimperialista, o que pressupõe o confronto, se este se impuser. As forças internacionais não têm outra escolha. Ou convivem com o fenômeno, mesmo a contragosto, ou se envolvem em campanhas, conspirações e aventuras golpistas, suportando as suas conseqüências, bem entendido. Esta é a lógica de ferro do desenvolvimento histórico.

Ao Brasil e ao povo brasileiro deveria interessar o avanço do processo revolucionário venezuelano. E nosso país deveria ser o primeiro a se opor ao intervencionismo externo no país de Bolívar. Mesmo com horizontes políticos limitados, distante que está do socialismo e da luta antiimperialista, o governo Lula, com sua política externa independente que prioriza a integração sul-americana, colherá mais benefícios da existência de uma Venezuela revolucionária, do que do caos ou do retrocesso político no país vizinho. (Vermelho / 2 junho 2007)
* Jornalista e especialista em Política Internacional.

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