10 julho 2013, Teoria e Debate
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Teoria
e Debate, Edição 114
Não
faz sentido pensar os partidos como os únicos e legítimos representantes do
interesse público, principalmente num país de fraca cultura partidária. Mas ao
que parece eles ainda são necessários e podem ser úteis para o Brasil, desde
que o povo deles se aproprie, fazendo convergir a “vida das ruas” com a das
instituições políticas nacionais.
Nas manifestações de rua que
pipocaram desde o mês de junho por todas as grandes cidades brasileiras viu-se
um fenômeno interessante, mas longe de ser novo: o desejo da extinção dos
partidos políticos. Chamaram a atenção, nesse sentido, os atos de agressão a
militantes partidários, como também gritos e faixas com os seguintes dizeres:
“O Brasil é meu partido” ou “O povo, unido, não precisa de partido”,
entre
outros. Mesmo entre a “classe política” houve quem ecoasse no Parlamento as
“vozes da rua”: Cristovam Buarque, senador eleito pelo Partido Democrático Trabalhista
(PDT), afirmou na plenária que “talvez seja a hora para dizer: estão abolidos
todos os partidos”.
Em primeiro lugar, é preciso
reconhecer que essas manifestações confirmam pesquisas de opinião feitas há
anos no país, e que indicam que o número daqueles que desejam uma “democracia
sem partidos” não é menosprezável: 45% dos entrevistados. Os partidos
políticos, ao lado do Congresso, aparecem recorrentemente como um dos campeões
em matéria de desconfiança pública: em torno de dois terços da população
brasileira não confia neles1. Em
pesquisa da Fundação Perseu Abramo sobre reforma política realizada
em maio de 2013, 61,5% afirmam não confiar nos partidos políticos e 33,5%
confiam até certo ponto. Tudo isso ajuda a explicar os historicamente reduzidos
índices de identificação e de filiação partidária dos brasileiros. Eis o resumo
da ópera: não confiam neles, não se identificam com eles, não se associam
a eles e, em alguns casos, desejam e propõem abertamente sua extinção.
Remontando à nossa história, é bom
lembrar que já tivemos por aqui diversas soluções “antipartidos”. A Proclamação
da República eliminou os partidos do período monárquico, assim como a Revolução
de 1930 fez com os da República Velha, sempre criando “novos” e,
hipoteticamente, melhores partidos. Não havia se passado uma década sequer
quando Getúlio Vargas extinguiu todos os partidos (sem criar, nesse caso,
outros), uma das medidas da ditadura então estabelecida. Findado o Estado Novo,
o país viveu sua primeira experiência pluripartidária, de 1945 a 1964. No
entanto, novamente o furor contra os partidos brasileiros se fez presente. Com
o Ato Institucional no 2, em 1965, o presidente imposto manu
militari, Castelo Branco, extinguiu os partidos então existentes e
criou apenas duas agremiações partidárias para o país: o Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), que congregava os setores de oposição ao governo, e a Aliança
Renovadora Nacional (Arena), no papel de partido de situação, conhecidos,
respectivamente, como “partido do sim” e “partido do sim, senhor”, dada a
reduzida margem de qualquer oposição no sistema político da época. É bom não
esquecer também que os partidos de esquerda – tenha-se em mente, por exemplo, a
representativa história do Partido Comunista Brasileiro (PCB) – foram alvo de
recorrente legislação e de políticas “antipartidos” na história brasileira.
Como se vê, muitas medidas foram
tomadas por aqui, ao longo de apenas pouco mais de um século de República, para
reformular, extinguir, proibir ou renovar o sistema partidário, supostamente,
sempre carcomido pela corrupção, pelo fisiologismo, tomados como falseadores da
representação política.
É curioso lembrar que, há muito no
país, o problema partidário vem sendo investigado. Oliveira Vianna, por
exemplo, um dos pensadores mais interessantes que já tivemos, em
Instituições Políticas Brasileiras, publicado em 1949, afirma
que, apesar de ser um regime idealmente melhor que os outros, a democracia não
deveria ser aplicada ao Brasil, uma vez que o povo não teria capacidade para a
vida livre. Os partidos aqui, segundo ele, não fazem sentido, pois
não temos opinião pública organizada a ser representada por eles. E conclui que
não nascemos para a democracia liberal ou para a democracia participativa,
sendo mais realista adotar um modelo de “democracia autoritária”, utilizando-se
de expressão cunhada por Joseph Goebbels, dirigente nazista que também apoiou a
supressão dos outros partidos políticos e a implantação do totalitarismo na
Alemanha nos anos 1930-1940.
Se a história é, como diziam os
romanos, “mestra da vida”, ela nos sugere que o sonho de realização de uma
democracia sem a mediação dos partidos políticos redunda, via de regra, em
governos autoritários ou mesmo totalitários, em suma, perseguição política,
supressão de liberdades individuais etc. Mas condenar o desejo antipartidos
como autoritário não é suficiente, como alguns analistas fizeram sobre as
recentes manifestações. É preciso compreender também o porquê de sua
existência.
Em primeiro lugar, cumpre destacar
que a história brasileira comprova a tradicional fragilidade de nossas
instituições partidárias, que, como se viu, vez por outra são extintas,
reconfiguradas ou recriadas por decreto. Os partidos por aqui, em geral, não
têm tempo suficiente para decantar e enraizar-se na cultura política do povo
brasileiro, são instituições de vida curta.
Além disso, para saber reagir
adequadamente ao sonho da “democracia sem partidos” expresso nas ruas é forçoso
ser capaz de responder satisfatoriamente à questão: partidos para quê? Como e
com qual finalidade eles surgiram?
O republicano Maquiavel (que, diga-se de passagem, viveu num tempo que desconhecia partidos políticos) nos dá uma dica para compreender a razão de ser dessas instituições2. Diz ele que o corpo político, isto é, toda e qualquer comunidade humana, é inevitavelmente “partido” ou dividido entre grupos que têm interesses diferentes. O conflito, portanto, é inerente à vida em sociedade, já que os diferentes grupos sociais não visam do mesmo modo ao poder político: alguns querem dominar (o que ele chamava de “os grandes”), outros apenas não querem ser dominados (“o povo”). Os partidos seriam, nessa chave de compreensão, um modo particular de institucionalizar e canalizar os conflitos inevitáveis que perpassam a vida pública, a fim de que não levem à destruição do corpo político.
Historicamente, o nascimento dos primeiros
partidos políticos está associado ao surgimento dos governos representativos do
Ocidente, isto é, governos em que os indivíduos elegem representantes que atuam
em seu nome. Isso se deu com menor relevância nas oligarquias do século 19 (nas
quais o povo era numericamente uma minoria) e com maior centralidade ainda nas
democracias modernas (nas quais a maioria da população adulta tem plenos
direitos políticos).
A Inglaterra – país notório pela solidez de seu sistema partidário – teve seus primeiros partidos criados a partir do Reform Act, de 1832, que permitiu aos comerciantes e industriais participar dos negócios públicos. Nesse contexto claramente oligárquico, falava-se em “partidos de notáveis”, isto é, instituições de representação de elites. No final do século 19, com a reivindicação do direito político aos trabalhadores e a organização dos primeiros partidos socialistas, os partidos vieram então a assumir uma forma diferente, marcada pela “organização difusa e estável com corpo de funcionários pagos especialmente para desenvolver uma atividade política e um programa político-partidário”3. Trata-se, então, de um segundo tipo de partidos, os “partidos de organização de massa”, dado o grau de vinculação dos políticos às organizações sociais que controlavam fortemente a atuação de seus parlamentares. Mas a adoção do sufrágio universal (o direito de voto para todos) modificou completamente toda a vida política, dando origem a um terceiro tipo de partidos, os “eleitorais de massa”, que não são dirigidos a um grupo social específico e visam não à organização política desses grupos, mas, basicamente, à vitória nas eleições. Neles, o debate político e a disciplina partidário-ideológica não são o centro da vida partidária, mas sim a conquista de cargos de poder e de influência para disputar mais cargos de poder. Diferentemente dos “partidos de notáveis” – que não necessitavam de grandes recursos para fazer a campanha eleitoral, dado o eleitorado diminuto – e dos “partidos de organização de massa”, que faziam com que os militantes e filiados financiassem as atividades dos partidos. Os novos partidos, que surgem no início do século 20, têm de lidar com novas condições sociais, como a necessidade de captar muitos recursos financeiros para sobreviver eleitoralmente, tendo de conviver com um eleitorado não só maior, mas muito mais heterogêneo que, não obstante, faz questão de ser inteiramente representado pelos candidatos.
Em resumo, como sugere o caso
inglês, o desenvolvimento histórico dos partidos, no intervalo que compreende
do século 19 ao 21, está associado à própria democratização do poder político.
Com a crescente ampliação da comunidade política, os partidos tiveram de se
reinventar, tornando-se diferentes e mais complexos, para continuar a ser uma
das instituições mais fundamentais dos sistemas políticos contemporâneos. Mas
será que eles conseguiram? Ou devemos desejar viver sem
partidos?
É certo que não faz sentido pensar
os partidos como os únicos e legítimos representantes
do interesse público, principalmente num país como o Brasil, de fraca cultura
partidária. Os movimentos sociais, muitos deles protagonistas das recentes
passeatas, podem e devem representar na cena pública causas fundamentais da
vida moderna, como a melhoria do transporte público, por exemplo. Assim, o
sonho de uma “democracia sem partidos” expressa no
imaginário popular um legítimo desejo de uma vida
política mais afim aos anseios do povo brasileiro. No entanto, é evidente
também que devemos encará-lo criticamente e refletir acerca dos modos
efetivamente existentes de realização da política moderna sem os partidos
políticos, para que ele não se transforme em um pesadelo já vivenciado diversas
vezes na história do país. Ao que parece, os partidos ainda são necessários e,
mais, podem ser úteis para o Brasil, desde que o povo deles se aproprie,
fazendo convergir a “vida das ruas” com a das instituições políticas nacionais.
*Marcelo Sevaybricker Moreira é doutorando em Ciência Política (DCP-UFMG) e professor substituto do Cefet-MG e da PUC Minas
*Marcelo Sevaybricker Moreira é doutorando em Ciência Política (DCP-UFMG) e professor substituto do Cefet-MG e da PUC Minas
Notas
1. Moisés, José
Álvaro; Carneiro, Gabriela. “Democracia, desconfiança política e insatisfação
com o regime – O caso do Brasil”. Opinião Pública, Campinas, vol. 14, no 1,
2008, p. 1-42.1
2. Maquiavel,
Nicolau. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
3. Oppo, Anna.
“Partidos políticos”. In Bobbio, Norberto et al. (orgs.). Dicionário de
Política. 2 vols. Brasília: Ed. UnB, 1998, p. 900-905.
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