quarta-feira, 13 de junho de 2007

Brasil / O que quer o MST?

Mais de 17 mil sem-terra realizam em Brasília, desde segunda-feira (11), o maior encontro da história da categoria - o 5º Congresso Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Coube a Marina dos Santos fazer o discurso de abertura, enfatizando os pilares históricos, as diretrizes e as perspectivas da entidade.

MST em Brasília: maior congresso sem-terra

"É necessário fortalecer nosso método de democracia e participação. Romper com o medo de falar, participar ativamente dos processos de tomadas de decisão", destacou Marina. "Garantir que as mulheres e os jovens assumam cada vez mais o comando de nossa organização, fortalecendo as instâncias de decisão, respeitando as decisões tomadas pelos coletivos e aprender com as lições de outras organizações que existiram antes de nós."

Não faltaram críticas ao governo Lula, especialmente à política macroeconômica. Segundo o MST, os sem-terra estão presenciando "o governo brasileiro, em seu segundo mandato, manter uma política econômica de continuidade, que segue à risca as regras neoliberais, com altas taxas de juros, manutenção do superávit primário, com uma política cambial, monetária e tributária de estimulo às exportações".

Confira abaixo, na íntegra, o discurso que abriu o 5º Congresso do MST

Boa noite companheiros e companheiras,

Em nome da direção nacional e das famílias do MST, saúdo os representantes das entidades que compõem a mesa, ao mesmo em tempo em que reconhecemos a importância da presença de cada um de vocês e de suas entidades para a luta dos trabalhadores no Brasil.

Cumprimento todas as entidades e organizações convidadas, a delegação internacional de mais de 28 países, em especial as organizações da Via Campesina dos diversos continentes, os amigos e amigas do MST, os parlamentares: senadores, deputados, prefeitos, vereadores.

Cumprimento com respeito toda a militância pela garra, dedicação, espírito de sacrifício e responsabilidade em preparar o nosso Congresso nas bases, nos estados e aqui no pátio do ginásio onde construíram a cidade dos Sem Terra.

E de forma muito carinhosa, cumprimento os quase 20 mil delegados, delegadas, os mais de mil Sem Terrinha, companheiros e companheiras, verdadeiros heróis dessa nação, presentes dos 24 estados onde nosso movimento está organizado.

Este Congresso foi transferido algumas vezes, por vários fatores. Com certeza, estamos realizando no momento mais oportuno da História e da correlação de forças na América Latina.

Oportuno, porque estamos presenciando em todo o mundo a intervenção do imperialismo através das guerras, da invasão em países para disputar os recursos naturais, dos organismos internacionais como o Banco Mundial, o Bird e o FMI.

Oportuno, porque vivenciamos no Brasil, através da estrutura do Estado burguês, a manutenção dos privilégios e a defesa dos interesses das elites, seja através do Legislativo, Executivo ou do Judiciário.

Oportuno, porque presenciamos o governo brasileiro, em seu segundo mandato, manter uma política econômica de continuidade, que segue à risca as regras neoliberais, com altas taxas de juros, manutenção do superávit primário, com uma política cambial, monetária e tributária de estimulo às exportações.

Um governo que faz reformas e projetos que beneficiam o capital financeiro internacional em detrimento dos direitos dos trabalhadores conquistados historicamente através da luta.

Assistimos serem priorizadas as transnacionais, incentivando a produção de monocultivos, a liberação e uso de transgênicos e agrotóxicos, a Reforma Agrária tratada como compensação social.

Oportuno, porque percebemos no Brasil uma nova fase do poder econômico no campo através do agronegócio, organizado pelo latifúndio atrasado e pelas empresas transnacionais, que querem assegurar o controle de nossa água, dos recursos naturais, da biodiversidade, das sementes e roubar a nossa Amazônia, construindo barragens e implementando a transposição do Rio São Francisco. E deixando para os brasileiros apenas o desemprego e a miséria.

Por isso, companheirada, nosso 5º Congresso tem que ser um marco na história da classe trabalhadora. Um marco contra o imperialismo, um marco contra as políticas neoliberais desse governo, um marco contra as transnacionais, um marco na luta por uma legislação que limite o tamanho máximo da propriedade, uma certeza na orientação de Florestan Fernandes: não se deixar cooptar, não se deixar esmagar, obter conquistas para o povo.

Um marco na luta e defesa da Reforma Agrária como forma de democratizar a terra, distribuir renda, produzir emprego e trabalho e combater o aquecimento global provocado pelo modelo de sociedade consumista, que não se preocupa com o término dos recursos naturais e suas conseqüências na vida da população. E, principalmente, um marco na construção das lutas pela manutenção e avanço dos direitos conquistados pela classe trabalhadora, na unidade, na formação de militantes e lideranças, na elevação do nível de consciência e cultural do povo, na defesa do meio ambiente.

E, sobretudo um marco na construção de um instrumento de luta que provoque o reascenso do movimento de massas e possibilite um projeto político, popular, revolucionário, que resolva os problemas sociais do povo brasileiro, da América Latina e do mundo.

No amanhã, certamente nosso 5º Congresso será considerado um dos maiores eventos de camponeses do Brasil e do mundo. Este reconhecimento não será somente pelo número de trabalhadores que reunimos, mas pela qualidade de lutas, porque nesses quase 30 anos de nossa longa marcha de enfrentamento e resistência ao latifúndio e ao capital, conquistamos e construímos muito, superamos desafios. Nossa força reside no numero de pessoas organizadas, aprendemos que um povo organizado é como uma muralha invencível.

Nossa luta cresceu e se multiplicou, nossa organização se espalhou e se enraizou por todo o Brasil, projetamos nossas propostas e nossas idéias por toda a América Latina e em várias partes do mundo, onde conquistamos amizades, fortalecemos a utopia coletiva de um mundo mais justo. Cultivamos a solidariedade entre nós e com todos os povos em luta nos 4 continentes.

Chegamos onde nem imaginávamos chegar no início de nossa organização, construindo a Escola Nacional Florestan Fernandes, fazendo florescer escolas nos acampamentos e assentamentos espalhados pelo nosso país, empreendendo a luta maior contra a ignorância, derrubando as cercas do latifúndio do conhecimento. Temos nossa campanha nacional em andamento "Todos e Todas Sem Terra estudando".

Os frutos desse incentivo ao estudo é a própria realização desse Congresso. Vejam: no passado, tínhamos que contratar os artistas; hoje, temos a capacidade de pintar nosso próprio painel.

Ainda temos muito o que fazer, enfrentar muitos desafios, mas já podemos nos honrar em ter e estar formando nossos próprios médicos, pedagogos, agrônomos, advogados, administradores e a militância num alto grau de consciência política e ideológica. Aprendemos que ninguém é imprescindível, e que quem conduz a organização de massa é o coletivo.

Em toda nossa história de enfrentamentos difíceis, sofremos muitas baixas. As armas da ganância e a violência do latifúndio, a cobiça sem fim dos exploradores, a prepotência das oligarquias, a ação criminosa e assassina dos jagunços e policiais a seu serviço, nos tiraram muitas vidas, de muitos que poderiam estar aqui conosco hoje.

Os que caíram se tornaram nossos guias na construção do futuro; cultivamos sua memória com todo nosso afeto e respeito, seu sangue nos fortalece e nos dá a certeza do triunfo que virá, como cantamos em nosso Hino.

No entanto, pior que a morte física, o desafio que nos provoca e convoca a cerrar fileiras para enfrentá-lo e derrotá-lo definitivamente, é o desafio da fragilidade ideológica de companheiros e companheiras de luta. Nossos inimigos sabem que, mais eficaz do que a morte para nos derrotar, seria a morte de nossos valores, a morte da crença na nossa profunda solidariedade, da nossa dedicação integral na construção de um novo mundo para nossos filhos e filhas e para as próximas gerações. Não tenhamos dúvidas, podem nos tirar tudo, menos os valores socialistas e humanistas.

O capitalismo e sua ideologia de culto ao egoísmo e ao dinheiro, de veneração da propriedade privada, da concentração da terra, de exploração do homem pelo homem, sabe se infiltrar nos corações e mentes.

Ninguém é imune nem às grandes referências que temos na luta. É neste momento que começa a derrota, companheirada, e onde podemos nos enfraquecer coletivamente. Por isso, precisamos reforçar nossa firmeza ideológica.

É fundamental compreendermos profundamente, com a cabeça e o coração, as razões maiores de nossa luta. Que saibamos assumir por inteiro nossos sonhos e valores humanos, cultivando nosso espírito para estar sempre à altura dos desafios, para enfrentá-los e vencê-los, não deixando nenhuma brecha para o vírus do capitalismo. Do ponto de vista humanista e socialista, o MST já é patrimônio da humanidade, por isso temos que cuidar.

Nosso 5º Congresso também tem que ser um marco para continuarmos vencendo esses desafios, precisa ser um marco no fortalecimento do método revolucionário de direção. Precisamos fortalecer o espírito de pertença, como Oziel Alves, jovem de 17 anos que entregou sua vida defendendo nossos princípios e a Reforma Agrária.

É necessário fortalecer nosso método de democracia e participação. Romper com o medo de falar, participar ativamente dos processos de tomadas de decisão. Garantir que as mulheres e os jovens assumam cada vez mais o comando de nossa organização, fortalecendo as instâncias de decisão, respeitando as decisões tomadas pelos coletivos e aprender com as lições de outras organizações que existiram antes de nós.

Precisamos avançar em organizar o lugar da infância no MST, pensá-las como sujeitos de direito, como vivem nos assentamentos, como estudam e como a comunidade vai assumir o processo de formação dos Sem Terrinha. Através da educação, nas cirandas e nas escolas, acontece a formação destes pequenos: é o que os fará desde cedo formar consciência de pertença à organização da classe trabalhadora. O futuro do MST depende do que fazemos hoje com nossas crianças. Nos ensinou Mao Tse Tung: "se temos um projeto para um ano, semeamos cereais. Se temos projetos para dois anos, plantamos árvores, mas se nosso projeto é para a vida toda, devemos educar e formar as pessoas".

Precisamos, sobretudo, cuidar e valorizar o nosso maior patrimônio, que é a nossa militância. Esta militância, mesmo com todas as dificuldades e problemas, faz o MST acontecer, cuida e constrói a base de sustentação do Movimento, que é a unidade, a disciplina e a participação.

Portanto, quanto mais numerosos formos, homens e mulheres do Brasil e do mundo, mais brilhante, mais irreversível e mais fecunda será a conquista. Quanto mais qualidades humanas, mais humanos valores tiverem nossas ações, nossas atitudes e nossa revolucionária ação coletiva, tanto maior e tanto mais próxima estará a nossa vitória.

No entanto, a luta dos trabalhadores é internacional, não faremos a revolução isoladamente, é a soma de todas as lutas e o acúmulo de forças que nos fará vencer. Por isso, as vitórias eleitorais ocorridas em vários países da América Latina significam o início da derrota do projeto das elites e dos organismos internacionais que pregam o ajuste fiscal e a diminuição do papel do Estado. A eleição destes governos é de fundamental importância para a reorganização política, social e econômica destes países.

Aos movimentos sociais, cabe o papel de fortalecer suas organizações e a luta, para que estas vitórias eleitorais tornem-se acúmulo para a classe trabalhadora. E que na disputa de projeto com a burguesia não se perca o rumo das mudanças necessárias a serem feitas, não perdendo sua autonomia política frente aos partidos e os governos.

Em que pesem estas vitórias eleitorais, não podemos deixar de falar do papel nefasto que a mídia conservadora tem cumprido em todos os países. Com medo de perder poder, manipula as informações na tentativa de construir hegemonia em torno de seu projeto de sociedade. Por isso, demonstramos toda nossa solidariedade ao governo e ao povo da Venezuela pela coragem na luta pela democratização dos meios de comunicação, sem a qual nunca teremos verdadeiras democracias na América Latina.

No Brasil, a mídia é tão servil que todos os dias tenta criminalizar os movimentos; mas não consegue, porque os movimentos sociais estão enraizados no conjunto da sociedade.

Não conhece nossa organização, nosso modelo de agricultura baseado nos princípios da agroecologia, nossa forma de produção. Não reconhece nossa organização, nosso projeto de educação e participação. Nos chamam de revolucionários como forma de nos enquadrar em um mero recurso de linguagem, como se o modelo de sociedade que defendemos significasse atraso e retrocesso na chamada modernidade.

Nós não devemos ter medo de ser chamados de revolucionários, porque graças à nossa luta e organização estamos vendo milhares de pessoas que antes passavam fome, hoje se alimentarem com fartura todos os dias. Estamos vendo centenas de pessoas que eram analfabetas, que nunca tiveram a oportunidade de sentar num banco de escola, hoje lendo, escrevendo, e muitos de nós freqüentando a universidade.

Estamos vendo pessoas que já estavam em um grande nível de degradação social, hoje com os valores do amor, da solidariedade, da cooperação, do cuidado. Gente com dignidade. Tudo isso é revolucionário!

Continuemos lutando e cantando, como diz o poeta: só é cantador quem traz no peito o cheiro e a cor de sua terra, a marca de sangue de seus mortos e a certeza de luta de seus vivos!

Por isso, em nome dos grandes lutadores e ideólogos do socialismo no mundo como Karl Marx e Rosa Luxemburgo

- Em nome dos lutadores do socialismo e da revolução na América Latina, como Che Guevara e Aidê Santamaria.

- Em nome dos grandes estudiosos, pensadores e socialistas brasileiros como Josué de Castro, Madre Cristina, e Paulo Freire.

- Em nome dos poetas, negros e revolucionários brasileiros como Maria Carolina de Jesus e Mario Lago.

- Em nome daqueles que plantaram a nossa semente como as Ligas Camponesas, Contestado e Canudos.

- Em nome dos mártires da luta pela terra como Ir. Doroty e Teixerinha.

- Em nome de todos os movimentos que compõem a Via Campesina Brasil,

- E em nome da direção Nacional e das famílias do MST, com muito amor, com muita alegria e com muita esperança da construção da Reforma Agrária: por justiça social e soberania popular, declaro aberto o 5º Congresso nacional do MST!

Marina dos Santos

Brasília, 11 de junho de 2007

(Vermelho / 13 Junho 2007)

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