Vermelho/30 janeiro 2008
A Bolívia constituinte de Evo Morales e Álvaro García Linera concentra o conjunto dos processos de transformação democrática que atravessam e revolucionam a América do Sul, seus movimentos sociais e as experiências dos “novos governos” de Brasil, Argentina, Equador e Venezuela.
Por Antonio Negri e Giuseppe Cocco *
Em meados dos anos 90, quando as lutas históricas em defesa dos "recursos naturais" (gás, minérios etc.) pareciam varridas pela derrota da marcha dos mineiros pela vida, um novo e potente ciclo de movimentos as renovava, generalizando as lutas, para que incluíssem os temas da água e dos serviços públicos. Isso levou ao desastre as políticas neoliberais.
Os novos movimentos, dos quais Evo é a expressão, não só renovaram as lutas a favor do controle público do fogo, do ar, da água e da terra, dando nova força aos tradicionais projetos de "independência" nacional e desenvolvimento, mas foram eles mesmos fato inovador, que mostrou sujeitos de tipo novo, em particular, a multiplicidade das comunidades indígenas.
A reivindicação do controle público sobre recursos naturais se articulou assim com a redefinição das próprias características do Estado em direção a um Estado pós-nacional, fundado na multiplicidade dos sujeitos. Ainda mais interessante, tudo isso visa também uma gestão democrática das empresas públicas: democracia e desenvolvimento devem andar juntos.
Depois da retórica neoliberal sobre a função democrática da propriedade e da empresa, estamos, na Bolívia, na situação de poder experimentar uma revolução democrática da economia.
O processo constituinte é a conseqüência de tudo isso: construção da cidadania dos índios e construção dos direitos pelos movimentos indígenas.
Na Bolívia, diferentemente da Venezuela e de modo mais eficaz, os movimentos são diretamente o motor do processo de transformação do Estado. O caráter inovador da revolução boliviana está no fato de o poder constituinte se inserir no sistema das fontes do direito. Ele não é apenas um momento constitutivo (puramente inicial) da legitimidade constitucional, mas fonte continuamente produtiva do direito. Disso derivam transformações fundamentais propostas pela nova carta constitucional: a descentralização do Estado, as autonomias, o Estado plurinacional, a multiplicidade das instâncias de poder etc.
Por isso, o enfrentamento contra o bloco do biopoder se concentra na Constituinte. Ao mesmo tempo, o enfrentamento tem duas dimensões: de um lado, o retorno do tradicional racismo neocolonial; de outro, o uso "separatista" pelo bloco do biopoder da abertura democrática representada pela proposta das autonomias.
O separatismo reintroduz assim a privatização dos recursos naturais (é exatamente sobre a renda dos hidrocarbonetos que se concentra o conflito). A chantagem separatista se dá, pois, sobre duas questões estratégicas: a relação entre multiplicidade e comum; e a relação entre poder constituinte boliviano e transformação latino-americana mais em geral. A Carta aprovada pela Assembléia Constituinte, a relação que nela se estabelece entre ingresso fiscal e direitos universais de cidadania – em particular com a Renda Dignidade – é resposta clara: a singularidade das autonomias só poderá se desenvolver a partir da construção do comum.
No que diz respeito às questões da transformação continental, a resposta se define dentro do próprio processo sul-americano de integração.
Primeiro, as contradições internas às relações com Brasil, Argentina e Chile se desenvolvem no marco do apoio diplomático dos novos governos desses países ao processo constituinte boliviano e do isolamento continental do separatismo quase fascista dos departamentos da "media-luna" (liderados por Santa Cruz).
Em segundo lugar, outro terreno importante – que, pela novidade, exige cuidado e prudência – é o das decisões de Petrobras e BNDES de multiplicar os investimentos na Bolívia.
O que temos aí é realmente uma bela novidade: algumas multinacionais não estão mais na contramão do processo de libertação. Uma boa notícia, enfim, depois das muitas notícias ruins que as multinacionais latino-americanas sempre nos deram.
Mas é preciso que a novidade continue como surgiu. Esses investimentos proporcionam, por enquanto, as bases materiais para o desenvolvimento do projeto democrático boliviano, dando-lhe os meios que permitem negociar e evitar a guerra civil. O Estado plurinacional é também pós-soberano: mergulhado nas dinâmicas horizontais da interdependência.
* Antonio Negri, filósofo italiano, é professor titular aposentado da Universidade de Pádua (Itália) e professor de filosofia do Colégio Internacional de Paris (França).
* Giuseppe Cocco, cientista político, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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