Por Michael Löwy*, no Blog da Boitempo
"Vamos dar nome aos bois. O
que aconteceu no Brasil, com a destituição da presidente eleita Dilma Rousseff,
foi um golpe de Estado. Golpe de Estado pseudolegal, ‘constitucional’,
‘institucional’, parlamentar ou o que se preferir. Mas golpe de Estado”, diz o
sociólogo em artigo publicado nesta terça-feira (17). Confira:
Vamos dar nome aos bois. O que
aconteceu no Brasil, com a destituição da presidente eleita Dilma Rousseff, foi
um golpe de Estado. Golpe de Estado pseudolegal, "constitucional”,
"institucional”, parlamentar ou o que se preferir. Mas golpe de Estado.
Parlamentares – deputados e senadores – profundamente envolvidos em casos de
corrupção (fala-se em 60%) instituíram um processo de destituição contra a presidente
pretextando irregularidades contábeis, "pedaladas fiscais”, para cobrir
déficits nas contas públicas – uma prática corriqueira em todos os governos
anteriores! Não há dúvida de que vários quadros do PT estão envolvidos no
escândalo de corrupção da Petrobras, mas Dilma não… Na verdade, os deputados de
direita que conduziram a campanha contra a presidente são uns dos mais
comprometidos nesse caso, começando pelo presidente da Câmara dos Deputados,
Eduardo Cunha (recentemente suspenso), acusado de corrupção, lavagem de
dinheiro, evasão fiscal etc.
A prática do golpe de Estado
legal parece ser a nova estratégia das oligarquias latino-americanas. Testada
em Honduras e no Paraguai (países que a imprensa costuma chamar de
"República das Bananas”), ela se mostrou eficaz e lucrativa para eliminar
presidentes (muito moderadamente) de esquerda. Agora foi aplicada num país que
tem o tamanho de um continente…
Podemos fazer muitas críticas a
Dilma: ela não cumpriu as promessas de campanha e faz enormes concessões a
banqueiros, industriais, latifundiários. Há um ano a esquerda política e social
cobra uma mudança de política econômica e social. Mas a oligarquia de direito
divino do Brasil – a elite capitalista financeira, industrial e agrícola – não
se contenta mais com concessões: ela quer o poder todo. Não quer mais negociar,
mas sim governar diretamente, com seus homens de confiança, e anular as poucas
conquistas sociais dos últimos anos.
Citando Hegel, Marx escreveu no
18 de Brumário de Luís Bonaparte que os acontecimentos históricos se repetem
duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como farsa. Isso se aplica
perfeitamente ao Brasil. O golpe de Estado militar de abril de 1964 foi uma
tragédia que mergulhou o Brasil em vinte anos de ditadura militar, com centenas
de mortos e milhares de torturados. O golpe de Estado parlamentar de maio de
2016 é uma farsa, um caso tragicômico, em que se vê uma cambada de
parlamentares reacionários e notoriamente corruptos derrubar uma presidente
democraticamente eleita por 54 milhões de brasileiros, em nome de
"irregularidades contábeis”. O principal componente dessa aliança de
partidos de direita é o bloco parlamentar (não partidário) conhecido como
"a bancada BBB”: "Bala” (deputados ligados à Polícia Militar, aos
esquadrões da morte e às milícias privadas), "Boi” (grandes proprietários
de terra, criadores de gado) e "Bíblia” (neopentecostais integristas,
homofóbicos e misóginos). Entre os partidários mais empolgados com a
destituição de Dilma destaca-se o deputado Jair Bolsonaro, que dedicou seu voto
aos oficiais da ditadura militar e nomeadamente ao coronel Ustra, um torturador
notório. Uma das vítimas de Ustra foi Dilma Rousseff, que no início dos anos
1970 era militante de um grupo de resistência armada, e também meu amigo Luiz
Eduardo Merlino, jornalista e revolucionário, morto em 1971 sob tortura, aos 21
anos de idade.
O novo presidente, Michel Temer,
entronizado por seus acólitos, está envolvido em vários casos suspeitos, mas
ainda não é alvo de investigação. Uma pesquisa recente perguntou aos
brasileiros se eles votariam em Temer para presidente da República: 2%
responderam que sim…
Em 1964, grandes manifestações
"da família com Deus pela liberdade” prepararam o terreno para o golpe
contra o presidente João Goulart; dessa vez, multidões "patrióticas” –
influenciada pela imprensa submissa – se mobilizaram para exigir a destituição
de Dilma, em alguns casos chegando a pedir o retorno dos militares… Formadas
essencialmente por brancos (os brasileiros são em maioria negros ou mestiços)
de classe média, essas multidões foram convencidas pela mídia de que, nesse
caso, o que está em jogo é "o combate à corrupção”.
O que a tragédia de 1964 e a
farsa de 2016 têm em comum é o ódio à democracia. Os dois episódios revelam o
profundo desprezo que as classes dominantes brasileiras têm pela democracia e
pela vontade popular.
O golpe de Estado "legal”
vai transcorrer sem grandes obstáculos, como em Honduras e no Paraguai? Isso
ainda não é certo… As classes populares, os movimentos sociais e a juventude
rebelde ainda não deram a última palavra.
*Sociólogo, é nascido no Brasil,
formado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde
1969. Diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche
Scientifique (CNRS). Homenageado, em 1994, com a medalha de prata do CNRS em
Ciências Sociais, é autor de Walter Benjamin: aviso de incêndio (2005), Lucien
Goldmann ou a dialética da totalidade (2009), A teoria da revolução no jovem
Marx (2012) e organizador de Revoluções (2009) e Capitalismo como religião
(2013), de Walter Benjamin, além de coordenar, junto com Leandro Konder, a
coleção Marxismo e literatura da Boitempo
Artigo enviado pelo autor
diretamente ao Blog da Boitempo. A tradução, a partir do original em francês, é
de Mariana Echalar
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