11 maio
2016, Carta Maior http://cartamaior.com.br (Brasil)
Andrei Koerner
Se os juízes permitem que o jogo das forças políticas leve ao rompimento da regra, contribuem diretamente ao rompimento da ordem constitucional.
O período entre a tarde da terça-feira e o
início da tarde de quarta-feira, nesses dias 10 e 11 de maio de 2016 ficará
conhecido como o momento decisivo no qual o STF foi chamado a bloquear o golpe,
formatado num processo de impeachment, contra a presidenta Dilma
Roussef. Mas o STF se omitiu...
Aparentemente, na tramitação entre o ingresso do pedido, distribuição, exame pelo relator e julgamento da liminar não houve tempo para que o nosso tribunal supremo suspendesse ou anulasse a decisão da câmara e impedisse o inicio da sessão do Senado. Depois de contados os votos nesta casa, o fato estará consumado e só restará o registro resignado de que uma eventual decisão judicial não teria impedido o afastamento, dada a vantagem numérica dos apoiadores do golpe. Não teria? Não saberemos, mas do que temos certeza é que a omissão do tribunal nesta data ficará na nossa história política e constitucional ao lado decisões sobre Olga Benário, a autorização da cassação do PCB e o reconhecimento do golpe de 1964.
Não devemos nos enganar: ao se omitir, o STF não se acovardou, pois uma omissão como a de hoje não se deve ao fato de que os ministros foram coagidos e faltaram garantias, mas porque apoiam vergonhosamente o golpe. Para exercerem devidamente o seu papel de juízes constitucionais, os ministros do STF não precisariam de nenhuma garantia além das que
já dispõem: as prerrogativas
individuais, autonomia institucional e os recursos materiais fornecidos pelo
Estado, caso sejam, eventualmente, necessário para preservar sua segurança e
integridade física. Aparentemente, na tramitação entre o ingresso do pedido, distribuição, exame pelo relator e julgamento da liminar não houve tempo para que o nosso tribunal supremo suspendesse ou anulasse a decisão da câmara e impedisse o inicio da sessão do Senado. Depois de contados os votos nesta casa, o fato estará consumado e só restará o registro resignado de que uma eventual decisão judicial não teria impedido o afastamento, dada a vantagem numérica dos apoiadores do golpe. Não teria? Não saberemos, mas do que temos certeza é que a omissão do tribunal nesta data ficará na nossa história política e constitucional ao lado decisões sobre Olga Benário, a autorização da cassação do PCB e o reconhecimento do golpe de 1964.
Não devemos nos enganar: ao se omitir, o STF não se acovardou, pois uma omissão como a de hoje não se deve ao fato de que os ministros foram coagidos e faltaram garantias, mas porque apoiam vergonhosamente o golpe. Para exercerem devidamente o seu papel de juízes constitucionais, os ministros do STF não precisariam de nenhuma garantia além das que
A omissão de hoje equivale à negação do pedido, porque o significado e implicações de ambas são as mesmas: implicam a recusa, pelo juiz, da garantia constitucional dos direitos do acusado e dos direitos da minoria para que sejam preservadas as regras que asseguram sua convivência com a maioria. Os ministros do STF não precisam de nenhuma garantia para se omitir tal como não a necessitariam ao recusar o pedido de liminar da presidenta Dilma. Eles repetem suas omissões anteriores, e confirmam o que elas significam: a sua aliança com a farsa promovida pelas lideranças de oposição, a opinião produzida pela mídia e a máquina de constrangimentos movida pelos setores hegemônicos em nossa sociedade.
Não, os ministros do STF não se acovardaram, eles se omitiram porque se aliaram à máquina golpista. Provavelmente pactuaram entre si de que não decidiriam as ações judiciais referentes aos graves conflitos políticos atuais a fim de preservarem o prestígio da instituição e os seus cargos. Porém, macularam a instituição a que pertencem, e confirmam a história de uma corte suprema manca e tribunal constitucional de fancaria.
Talvez seja preciso esclarecer que a autocontenção judicial é coisa bem distinta da omissão oportunista. A autocontenção é quase a expressão do orgulho de juízes que limitam o campo das suas decisões à preservação de direitos fundamentais, não adotam interpretações extensivas – e muito menos oportunistas – das leis, e não contrariam as decisões da maioria sobre políticas públicas, a não ser que seja estritamente necessário para preservar os direitos individuais. No Brasil, a distinção entre direitos e políticas é menos nítida do que nos Estados Unidos porque lá os direitos sociais não são incluídos entre os direitos assegurados pela Constituição. De todo modo, é evidente que, quando estão em jogo os direitos civis, tal como o direito de defesa e o princípio de inocência, é imperativo que os juízes julguem a causa. E um juiz autocontido não deixará de fazê-lo, pelo contrário, exercerá suas atribuições em sua plenitude. Nesse tipo de caso, o juiz deve acolher ou não o pedido, isto é, julgar, de modo a evitar danos irreparáveis para os que têm seus direitos violados. A omissão oportunista faz coisa bastante distinta, pois joga com os prazos, recorre a formalidades, cria distinções casuísticas ou qualquer manobra para deixar de julgar e esperar confortavelmente que as engrenagens do poder social esmaguem os que com ela não se conformam.
O tribunal constitucional foi criado como um substituto do poder constituinte para interpretar as normas constitucionais e resolver os conflitos a fim de manter o compromisso entre as forças políticas que permitiu a instituição da democracia constitucional. Este é o papel político atribuído por Kelsen ao tribunal constitucional: o de preservar a regra que torna possível a convivência entre maioria e minoria. As forças políticas podem, por meio de outras normas da constituição, atribuir outras funções para o tribunal constitucional, como a defesa de valores substantivos, a promoção de objetivos coletivos etc. Mas um tribunal constitucional só faz jus ao seu nome se exerce aquele papel fundamental, pois, sem a preservação da regra, a convivência torna-se impossível.
Não se trata, portanto, de defender a judicialização da política ou o ativismo judicial, mas de evidenciar as implicações mais elementares da forma de organização da democracia constitucional, que foi adotada em nosso país muito antes de 1988. Trata-se de defender que o tribunal decida de forma consequente com o papel constitucional que recebeu.
Em vários casos do passado o STF usou suas atribuições para preservar direitos, assegurar a política presidencial. Na Primeira República, recebeu pedidos de habeas corpus enviados por telegrama e, depois de 1964, o seu presidente concedeu uma ordem de habeas corpus por decisão liminar, um instrumento que não existia em lei. Para garantir as privatizações durante o governo Fernando Henrique, o STF reuniu-se em caráter de urgência e mantem plantão para decidir pedidos de liminar. Porém, noutras situações omitiu-se diante de situações criadas por decisões arbitrárias dos seus ministros, como quando o ministro Mendes contrariou as regras internas e extrapolou seus poderes para relaxar a prisão do banqueiro Dantas, suspendeu por um ano a decisão da ação de inconstitucionalidade do financiamento privado de campanha e suspendeu a nomeação do ex-presidente Lula há quase um mês, sem qualquer decisão do plenário. Em nenhum desses casos foi chamado à ordem pelo seu presidente, não foi criticado em público pelos seus colegas, não foi pressionado pela imprensa para ser impedido de atuar nos casos contra o governo.
No mandado de segurança apresentado pela presidenta Dilma, por que o presidente do STF deixou de examinar in límine e não chamou uma sessão extraordinária para julga-lo na manhã desta quarta-feira, dada a urgência e o caráter irreparável da situação criada? Por que o relator, Teori Zavaski, não tomou a decisão a tempo para que ela pudesse ser examinada pelo plenário antes do início da sessão do Senado? Aliás, por que ele demorou quase cinco meses para decidir sobre o afastamento do presidente da Câmara, Eduardo Cunha?
Se o tribunal supremo de uma democracia constitucional não serve para assegurar os direitos fundamentais e preservar as condições de convivência das forças políticas na democracia constitucional, para que serve, então? Para que os seus ministros usem o prestígio do cargo para promover os interesses de seus parentes? Para que condenem politicamente um réu mesmo quando têm dúvida sobre a sua culpa? Para que influenciem a opinião pública, ao expressar ilegalmente as suas opiniões pessoais sobre conflitos políticos que lhes serão submetidos a julgamento? Para oscilarem suas orientações doutrinárias segundo os interesses em jogo nos casos em que julgam? Sua omissão é retribuição ao Congresso pelos cinco anos adicionais no cargo? Por promessas de aumento ou de ampliação das verbas para o Judiciário?
Aos nossos juízes não falta qualificação pessoal para julgarem conflitos privados. Os ministros atuais seriam ótimos juízes numa monarquia constitucional do século XIX ou num regime parlamentar do início do século XX em que atuariam como agentes da reprodução do sistema, preservariam direitos mas não seriam chamados a decidir conflitos políticos. Essas situações seriam bem adequadas para o seu apego à pompa da instituição, aos rituais e liturgias do cargo, ao seu prestígio pessoal. Porém, nada disso serve na democracia constitucional, em que o conflito social foi institucionalizado e o tribunal tem o papel de manter a regra de convivência para preservar o sistema em equilíbrio dinâmico. Se os juízes permitem, por ação ou omissão, que o jogo das forças políticas leve ao rompimento da regra, eles pensam que preservam o prestígio da instituição e o equilíbrio das formas atuais de dominação social. No entanto, o que eles fazem, junto com as forças golpistas, é conduzir a ordem constitucional para o colapso.
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