19 maio 2016, Revista Consultório Jurídico http://www.conjur.com.br
(Brasil)
Por Ricardo Lodi Ribeiro e Nina Pencak
No início do dia 12 de maio de 2016, com base no artigo 86 da
Constituição, sacramentou-se, com mais de dois terços dos integrantes do
Congresso, a abertura do processo de impeachment da presidente Dilma
Rousseff.
O encerramento da votação no Senado Federal significou, nos termos da
Constituição, a admissibilidade do pedido de impeachment, que, por se
tratar de requerimento embasado em suposto crime de responsabilidade, passará a
tramitar na Câmara Alta, sob presidência do presidente do STF.
Ocorre que, com o afastamento da presidente Dilma e, ato contínuo,
assunção do cargo pelo vice-presidente Michel Temer, instaurou-se, no país,
momento político e jurídico sem qualquer precedente.
Hoje, é possível afirmar que temos dois presidentes: Michel Temer,
eleito como vice, que se convencionou chamar de presidente em exercício ou
presidente interino, e Dilma Rousseff, presidente afastada por, no máximo, 180
dias.
Diferente da postura de Itamar Franco, que iniciou, oficialmente, a
escolha de seus eventuais ministros quando assumiu a Presidência provisoriamente
no período de afastamento de Collor, Temer, após a primeira fase da
admissibilidade do julgamento de Dilma, ocorrida na Câmara, já se reunia com
partidos de oposição e
com conhecidos nomes políticos a fim de compor seus
ministérios, como amplamente noticiado.
Essa postura do vice, apesar de dentro da normalidade do ponto de vista
jurídico, por ser um tanto quanto precipitada, causou perplexidade, posto que
somente a primeira fase da admissibilidade do pedido havia se
encerrado. E, nesse momento, relembramos, ao menos, dois atos praticados
por Temer, não reprováveis juridicamente, porém, cuja lembrança é necessária
para entender o panorama político criado pelo então vice-presidente:
i) em 7/12/2015, cinco dias após a autorização para abertura do processo
de impeachment na Câmara por Eduardo Cunha, há a divulgação de carta à
Dilma Rousseff, enumerando os momentos em que se sentiu desprestigiado e
apontando episódios em que teria restado clara a desconfiança de Dilma em
relação ao PMDB, tornando público o distanciamento — para não falar em ruptura
— do vice em relação à presidente;
ii) em 11/4/2016, seis dias antes da votação da admissibilidade do
pedido de impeachment pela Câmara, Temer envia a aliados gravação de 14
minutos em que fala dos rumos do país, assumindo que a votação da Câmara teria
decidido pela admissibilidade do pedido, em discurso que seria feito caso essa
situação se concretizasse. Nessa fala, o vice-presidente já apresenta prévia de
seu programa de governo caso chegasse à Presidência, mencionando tópicos como
reforma tributária, revisão do pacto federativo, mudança nas leis trabalhistas
e reforma previdenciária.
Após destacar fatos relevantes para delimitação das circunstâncias
políticas anteriores à admissibilidade do processo de impeachment,
passaremos à análise dos dispositivos constitucionais que devem pautar a
atuação do vice-presidente na condição de presidente em exercício, durante os
180 dias de afastamento da presidente.
Em primeiro lugar, as atribuições do vice estão dispostas nos
artigo 78 e 79 da Constituição, com destaque para o caput do
último:
“Art. 79. Substituirá o Presidente, no caso de impedimento, e
suceder-lhe-á, no de vaga, o Vice-Presidente (...)”.
Verifica-se que o artigo 79 dispõe sobre duas situações distintas
em que o vice passa a ocupar o cargo de presidente: i) impedimento, em que o
vice substitui o presidente; e ii) vacância, em que o vice o sucede.
Ao tratar das duas hipóteses, José Afonso da Silva as diferencia da
seguinte forma:
“‘Impedimento’ é qualquer causa que obsta ao exercício de cargo ou
função pública. Esse obstáculo pode ser de fato ou de direito. (...)
A suspensão também é um impedimento jurídico. Assim, quando o presidente
fica suspenso de suas funções, por recebimento da denúncia nos crimes comuns ou
instauração do processo de crime de responsabilidade, tem-se uma causa que o
impede de exercer aquelas mesmas funções (art. 85, §1º). (...)
O impedimento é, assim, uma situação temporária, de fato ou de direito,
que não permite ao titular cumprir os deveres e responsabilidades de seu cargo
ou função. Por isso se lhe dá substituto.
O impeachment é ato de cassação do mandato do presidente da
República. É, pois, impedimento definitivo, que tem como consequência a
vacância do cargo. A hipótese, pois, já não é substituição, mas de sucessão”[1].
Assim, a primeira conclusão a que se chega é a de que o vice só sucede o
presidente na vacância do cargo, que, no caso do processo de impeachment,
ocorre com a aplicação da sanção de perda do cargo ao final do julgamento.
Michel Temer, portanto, está substituindo a presidente Dilma Rousseff durante o
afastamento que pode durar até 180 dias.
Passando à análise do artigo 86, parágrafo 1º, II e parágrafo 2º,
da Constituição, que trata do rito do processo de impeachment, no caso
de crime de responsabilidade, observa-se que:
“Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois
terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o
Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado
Federal, nos crimes de responsabilidade.
§ 1º O Presidente ficará suspenso de suas funções:
(...)
II - nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo
Senado Federal.
§ 2º Se, decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não
estiver concluído, cessará o afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular
prosseguimento do processo (...)”.
Desse modo, após o reconhecimento da denúncia pelo Congresso, inicia-se
o seu julgamento, com fase de contraditório e produção de provas.
O constituinte previu no parágrafo 2º, do artigo 86 da
Constituição, o afastamento por até 180 dias do réu do cargo de presidente.
Como visto, o afastamento temporário não configura vacância do cargo, mas
impedimento, porque, nesse estágio do processo de impeachment, não houve
condenação, somente indícios de que o réu teria cometido crime de
responsabilidade. Trata-se, contudo, de mera plausibilidade de ação ilícita que
justifica o início da fase de julgamento do processo de impeachment, de
modo que não ocorre a sucessão do presidente afastado pelo vice-presidente.
Como observado, o vice-presidente substitui o presidente no exercício do cargo,
sendo daí que decorre a utilização da expressão “presidente em exercício” ou
“presidente interino”.
E o papel ocupado pelo vice durante o período de 180 dias é inerente a
essa condição provisória, pois, antes do julgamento final do mérito do
processo, não há qualquer decisão condenatória. Quando o processo é admitido
pelo Senado, é forçoso que se reconheça, em interpretação teleológica do
artigo 86, parágrafo 2º, da Constituição, que o presidente é afastado do
cargo, pois se verificou a fumaça do bom Direito em que se baseou o pedido de impeachment.
Havendo, portanto, um juízo político prévio que reconheceu a verossimilhança
das alegações, afasta-se o presidente, assumindo o vice, sob espécie de
condição suspensiva, já que assume a função que só se torna definitiva após o
julgamento do processo no Senado, no caso de condenação do presidente eleito
por crime de responsabilidade.
Tanto é precário o exercício da Presidência pelo vice no período de
afastamento, que o constituinte, no parágrafo 2º, do artigo 86 prevê a
possibilidade de retorno do presidente afastado caso o julgamento se prolongue
por mais tempo do que o referido prazo.
Da leitura do artigo 86 da Constituição, portanto, verifica-se que o
constituinte, em claro exercício de ponderação, em sede de juízo preliminar
sobre o mérito do processo de impeachment, decidiu: considerando a verossimilhança
do direito em que se fundamentou o pedido, pelo afastamento, por 180 dias, em
caráter cautelar do presidente, após a admissibilidade do processo de impeachment;
tendo em vista o alto grau de irreversibilidade desse afastamento, pelo
retorno do presidente eleito para o cargo, ainda que o julgamento não tenha
sido concluído.
ii.
A partir dessas duas premissas, conclui-se que, durante o afastamento do
presidente, o vice assume precariamente, com o fim de substituição, podendo,
apenas, tomar medidas de urgência, sem alterações na ordem vigente e no
programa de governo do presidente eleito.
Isso porque, entender que o vice, em exercício precário da Presidência,
possui competência para colocar em prática reformas institucionais, econômicas
e sociais e/ou romper com os programas instaurados pelo presidente afastado, é
assumir que o constituinte permitiu a ocorrência de gravíssimo periculum in
mora in reverso.
Em outras palavras, o constituinte definiu que o melhor cenário seria
aquele em que, durante o julgamento, o presidente permanecesse afastado, tendo
em vista que se encontra impossibilitado de exercer plenamente as atribuições
constitucionais descritas no artigo 84, vez que se tornou réu e precisa
produzir os elementos necessários à sua defesa. Afirmar que a previsão de
afastamento implica em presunção de culpa pelo constituinte é admitir que há
contradição na Constituição de 1988, que confere status de direito fundamental
à presunção de inocência, no artigo 5º, LVII.
Portanto, deve-se reconhecer que o constituinte não conferiu plenos poderes
presidenciais ao vice durante o período de afastamento, pelo seguinte: i) o
vice-presidente não foi eleito para ocupar a função do presidente da República;
ii) seria, no mínimo, leviano por parte do constituinte assumir periculum in
mora in reverso de tamanha monta, aos custos da sociedade brasileira, já
que a previsão constitucional é clara no sentido de afastamento temporário;
iii) não menos importante, o constituinte não previu que o vice presidente não
estaria alinhado com o presidente, de modo a não dar continuidade ao programa
de governo até então praticado e iniciar seu próprio mandato, como ocorre
atualmente.
Ressalta-se o último tópico acima: era imprevisível, quando da
elaboração do artigo 86, que o vice não estaria alinhado com o governo.
Quanto à imprevisibilidade de um cenário de ruptura política entre o
vice e a presidente, que ficou claro, é necessário que se reconheça que era
impossível ao constituinte cogitar essa hipótese quando impôs que o vice
assumiria no período de afastamento, antes de sentença condenatória, e mudaria
radicalmente os rumos dos programas até então praticados. O constituinte
delineou o rito do impeachment contando que o vice assumiria de forma
precária, no período de afastamento da presidente, dando, ao menos nesse
primeiro momento, continuidade ao programa em andamento. Deve-se reconhecer que
é contrária à vontade do constituinte, e, por óbvio, à própria Constituição,
qualquer alteração significativa na ordem social, econômica e institucional
vigente, devendo o presidente em exercício se ater à tomada de medidas
emergenciais.
Dessa forma, a série de mudanças propostas ou já implementadas por Temer
que rompem com o programa de governo da presidente Dilma são, no presente
momento, inconstitucionais. Exemplifica-se: redução no número de ministérios,
com extinção de pastas de relevância ímpar para as políticas públicas
consagradas pelos eleitores, como Cultura, Ciência e Tecnologia,
Desenvolvimento Agrário, Direitos Humanos e Previdência Social; redução da
autonomia da Controladoria-Geral da União com a sua transformação em
ministério; implementação de reformas tributárias e previdenciárias; venda de
participação da União nos Correios e na Casa da Moeda; flexibilização nas
regras sobre privatizações; redução de direitos trabalhistas, distribuição de
cargos para partidos de oposição ao da presidente afastada; alteração de
programas sociais; a anulação de atos praticados pela presidente durante o
regular exercício mandato, no período entre a autorização da Câmara e antes da abertura
do processo pelo Senado, dentre outras.
Ou seja, desde o primeiro dia no exercício da Presidência, Michel Temer
se comporta não só como presidente efetivo, mas como líder de um movimento que
subverte todas as políticas públicas que avalizou nas eleições.
Trata-se de rompimento com o programa de governo em andamento para a
adoção de ideias que fragilizam o Estado Social e que, por isso, nunca foram
levadas aos eleitores pelos principais candidatos ao pleito de 2014. Essas
modificações bruscas na formulação de políticas públicas em nosso país criam um
cenário político, social e econômico irreversível, contribuindo para que a
presidente afastada não retorne para o seu cargo e, caso retorne, encontre um
país impossível de se governar.
Não cabe, ainda, o argumento de que o vice-presidente também foi eleito
democraticamente, possuindo, portanto, competência para conduzir o país,
atualmente, sem qualquer parâmetro. O constituinte de 1988 abandonou o modelo
vigente na Constituição de 1946 que permitia que o vice fosse eleito por chapa
diferente daquela do presidente. Se aquele modelo admitia a independência
programática entre o presidente e o vice, gerando a possibilidade de crises
institucionais, como a verificada em 1961 com a renúncia do presidente Jânio Quadros
e o veto militar à posse do vice-presidente João Goulart, a Carta atual
pressupõe o alinhamento político e programático dos dois mandatários maiores do
país.
Assim, no sistema atual, o vice, na verdade, é eleito para cumprir as
suas próprias atribuições constitucionais, podendo vir a substituir a
presidente em caso de impedimento temporário, ou sucedê-la, em caso de vacância
do cargo, dando cumprimento ao programa apresentado por ambos e que foi
sufragado pelos eleitores. Por isso, caso qualquer impedimento permanente venha
a ocorrer, espera-se que o vice dê continuidade ao programa iniciado pelo
presidente impossibilitado de ocupar o cargo em caráter permanente. Afinal,
aquele também se comprometeu com o programa escolhido pelos eleitores. Com
mais razão, a necessária continuidade programática exige-se quando o
afastamento é transitório.
Por essas razões, antes da conclusão do julgamento definitivo do
processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff pelo Senado
Federal, não é compatível com a Constituição Federal que o exercício provisório
da Presidência pelo vice seja marcado por decisões de cunho permanente,
especialmente quando claramente distintas dos compromissos assumidos pela
presidente eleita pelo povo brasileiro, como as medidas acima enumeradas.
Corre-se o risco de vermos o poder deixando de ter origem direta no povo
e passando a ser intermediado pela vontade do Congresso, que aprovou a abertura
do processo de impeachment, o que, decerto, não encontra fundamento na
Constituição e no Estado Democrático de Direito.
[1] José Afonso da Silva, Comentário contextual à Constituição,
Malheiros: 2007, p. 478.
-- Nina Pencak é advogada e
mestra em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Uerj.
Revista Consultor Jurídico, 19 de maio de 2016
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