18/05/2016, Pátria Latina
http://www.patrialatina.com.br (Brasil)
por Pepe Escobar*
– Depois dos golpes em Honduras e no Paraguai chega agora a vez do Brasil
Nunca na moderna história política foi tão fácil “abolir o povo” e simplesmente apagar 54 milhões de votos obtidos numa eleição presidencial livre e justa.
Esqueça recontagens de votos (hanging chads), como
na Florida em 2000. Este é um dia que viverá na infâmia em todo o Sul Global –
aquela que era uma das mais dinâmicas democracias tornou-se um regime
plutocrático, sob um delgado verniz parlamentar/judicial, com garantias legais
e constitucionais agora à mercê de desprezíveis elites compradoras.
Após a maratona proverbial, o Senado brasileiro votou
por 55 a 22 colocar a presidente Dilma Rousseff em julgamento por “crimes de
responsabilidade” – relativos a alegadas cosméticas do orçamento do governo.
Isto é o culminar de um processo contínuo que começou
ainda antes de Rousseff vencer a reeleição no fim de 2014, com mais de 54
milhões de votos. Descrevi o bando de perpetradores que a criatividade
brasileira alcunhou “golpeachment” (golpe + impeachement) como Guerra Híbrida das hienas.
O golpeachment refinado – apoiado pelo equivalente a
um Conselho de Inquisição Eleitoral – impeliu a Guerra Híbrida a níveis
inteiramente novos.
A Guerra Híbrida aplicada no Brasil exibiu elementos
clássicos de uma revolução colorida. Naturalmente
não houve necessidade de
zonas no-fly ou de imperialismo humanitário para “proteger direitos
humanos” – nem tão pouco a provocação de uma guerra civil. Mas considerando
o alto nível de resistência do estado vítima, onde a sociedade civil é muito
dinâmica, os que conceberam a Guerra Híbrida neste caso apostaram num misto de
capitulação – e traição – de elites locais, combinado com“protestos
pacíficos” e uma implacável campanha dos media de referência. Chama-se a
isto Guerra Civil Light.
Isso proporcionou um fabuloso rácio custo-benefício.
Agora o (imensamente corrupto) sistema político brasileiro e o actual
alinhamento executivo/ legislativo/ judiciário/ media de referência pode ser
utilizado pelos suspeitos habituais para a sua agenda geopolítica.
Bem vindo à mudança de regime light – política, em
suma – como guerra por outros meios aos BRICS. Um novo software, um novo
sistema operacional. Arrastando um corolário patético: se os EUA são o Império
do Caos, o Brasil agora alcançou gloriosamente o status de Sub-Império dos
Canalhas.
Canalhas em abundância
Rousseff pode ser acusada de grave má gestão económica
e de ser incapaz de articulação política entre o mar de tubarões que é a
(imensamente corrupta) política brasileira. Mas ela própria não é corrupta. Ela
cometeu um grave erro no combate à inflação, permitindo que taxas de juro
ascendessem a um nível insustentável; de modo que a procura no Brasil caiu
dramaticamente e a recessão tornou-se norma. Tornou-se assim o (conveniente)
bode expiatório para a recessão do Brasil.
Ela certamente pode ser acusada de não ter um Plano B
para combater a recessão global. O Brasil funciona essencialmente sobre dois
pilares: exportação de commodities e companhias locais a sugar as tetas do
estado. A infraestrutura em geral é lastimável – acrescentando-se ao que é chamado “custo brasileiro” de fazer negócio. Com a derrocada
das commodities, os fundos do estado minguaram e foi tudo paralisado – crédito,
investimento, consumo.
O pretexto para o impeachment de Rousseff – alegadamente
transferir empréstimos de bancos públicos para o Tesouro a fim de disfarçar a
dimensão do défice orçamental do Brasil – é frágil. Toda administração no
ocidente o faz – e isso inclui as de Clinton, Bush e Obama.
A investigação da Operação Lava Jato , que se arrasta há dois anos, supostamente era para
descobrir corrupção no sistema político brasileiro – como a conivência de
executivos da petrolífera gigante Petrobrás, companhias brasileiras de
construção e financiamento de campanhas políticas. A Lava Jato nada tem a ver
com a condução do golpeachment. Mas estas têm sido duas auto-estradas paralelas
convergindo para um destino comum: a criminalização do Partido dos Trabalhadores
e o definitivo – se possível – assassinato político de Rousseff e do seu
mentor, o antigo presidente Lula.
Quando o golpeachment chegou à câmara baixa do
Congresso – um espectáculo horrendo – Rousseff foi estripada pelas hienas da
Guerra Híbrida, da variedade BBB:“bala”, “bíblia” e “boi”, em que “bala”
refere-se às armas e à indústria de segurança privada; “bíblia” a
pastores e evangélicos fanáticos; e “boi” ao poderoso lobby do
agronegócio.
As hienas “BBB” são membros de quase todos os
partidos políticos brasileiros, garotos de recados de grandes corporações e –
não menos importante – firmes esteios da corrupção. Todos eles beneficiam-se de
campanhas políticas milionárias. Toda a investigação do Lava Jato em última
análise gira em torno de financiamento de campanhas, as quais no Brasil, ao
contrário dos EUA com seus lobbies legalizados, é um faroeste digno de
Tarantino.
O Senado brasileiro não é exactamente uma câmara – em
têrmos mais polidos – “alta”. Oitenta por cento dos seus membros são homens
brancos – num país onde a miscigenação domina. Uns estarrecedores 58 por cento
estão sob investigação criminal – ligados ao Lava Jato. Sessenta por cento
procedem de dinastias políticas. E 13 por cento – como suplentes – não foram
eleitos de todo. Entre aqueles favoráveis ao impeachement, 30 de 49 estão em
dificuldades com a lei. As acusações incluem principalmente lavagem de
dinheiro, crimes financeiros e corrupção descarada. Renan Calheiros, o
presidente do Senado – que hoje supervisionou a votação do impeachment – é o
alvo de nada menos que nove investigações por lavagem de dinheiro/ corrupção,
além de outras duas de carácter criminal.
Reúnem-se os três amigos da República das Bananas
Rousseff é agora suspensa por um máximo de 180 dias
enquanto um comité do Senado decide se vai impedi-la para sempre. Entra o
presidente faminto de poder, Michel Temer – um operador evasivo e sombrio – que
foi estigmatizado por Rousseff como um “usurpador”. E usurpador este
Brutus provinciano certamente é – de acordo com as suas próprias palavras. Em
30 de Março do ano passado ele estava a tweetar que “Impeachment é
impensável, criaria uma crise institucional. Não há base judicial ou política
para isso”.
Sua administração nasce com o pecado original de ser
ilegal e maciçamente impopular; sua taxa de aprovação flutua entre um épico 1
por cento e 2 por cento. Ele já foi multado na semana passada por violar
limites financeiros na campanha. E, previsivelmente, está afundado num pântano
de corrupção – nomeadamente em doisplea bargains [1] e acusado de fazer
parte de um esquema ilegal de compra de etanol, pode tornar-se inelegível
durante os próximos oito anos. Quase 60 por cento dos brasileiros também querem
que ele seja impedido – pelas mesmas acusações que arrasaram Rousseff.
Brutus 1 (Temer) não gozaria os seus 15 minutos de
fama sem as peripécias de Brutus 2 (o vigarista número um do Brasil, o antigo
porta-voz da câmara baixa Eduardo Cunha, que enfrenta acusações de subornos e
perjúrio, detentor de contas ilegais na Suíça e agora finalmente posto fora de
jogo pelo Supremo Tribunal). Foi Brutus 2 que acelerou o impeachment como
vingança pura; o Partido dos Trabalhadores não o encobriu quando ele enfrentava
um tsunami de acusações de corrupção. Brutus 2 utilizou todos os seus vastos
poderes – ele dirige uma campanha de fraude financeira dentro do Congresso –
para obstruir a investigação Lava Jato. Seu substituto, o porta-voz interino,
também está a ser investigado por suborno.
Assim se encontram Temer, Cunha, Calheiros; estes três
amigos são as verdadeiras estrelas da República Banana de Canalhas/Vigaristas.
Como se o Supremo Tribunal estivesse livre de
crápulas. O juiz Gilmar Mendes, por exemplo, é o vassalo rasteiro de
plutocratas. Quando um promotor do governo apresentou uma moção para suspender
o impeachment, ele disse sarcasticamente: “Ah, eles podem ir para o céu, para o
Papa ou para o inferno”. Um outro juiz pomposo recebeu um requerimento para
excluir Cunha ainda em Dezembro de 2015. Mas ele só examinou o requerimento
mais de quatro meses depois, quando toda a fraude do golpeachment estava na sua
fase decisiva. E ainda argumentou: “não há prova de que Cunha contaminou o
processo de impeachment”.
Finalmente, completando toda a fraude, encontramos na
vanguarda os media de referência brasileiros, com o tóxico império dos media da
Globo – o qual lucrou abundantemente com o golpe militar de 1964.
Todos saúdam a restauração neoliberal
A Wall Street – assim como a City de Londres – não
podiam esconder sua excitação com o golpechment, acreditando que Brutus 1 Temer
provocará uma melhoria económica. Argumenta-se que eles podem ousar ajustar o
código fiscal kafkiano do Brasil e fazer algo acerca do enorme rombo no sistema
de pensões. Mas aquela entidade mítica – os “mercados” – e miríades de “investidores”
estão a salivar com a perspectiva de taxas de retorno fabulosas num Brasil
reaberto à especulação. O jogo do Brutus 1 será um banquete neoliberal , realmente uma restauração, sem qualquer
representação popular.
A gang do golpeachement fica realmente raivosa quando
é identificada como articuladora do golpe. Ainda assim, não se importa quanto à
OEA, Mercosur, Unasur – todas estas organizações condenaram o golpe – sem
mencionar o Santo Graal: os BRICS. Sob Brutus1, o Ministério das Relações
Exteriores será dirigido por um mau perdedor, está destinado a afundar o papel
chave do Brasil na cooperação dos BRICS, para beneficiar o Excepcionalistão.
Tudo o que é preciso saber é que nem o vencedor do
Prémio Nobel da Paz Barack “kill list” Obama nem a Rainha do Caos
Hillary “Nós viemos, nós vimos, ele morreu” Clinton condenaram a mudança
de regime em curso light, o golpechment. Isto era previsível, considerando que
a NSA do Excepcionalistão espiou a Petrobrás e Dilma
Rousseff pessoalmente – a génese daquilo que se desenvolveria como a
investigação Lava Jato.
O porta-voz da Casa Branca, Josh Earnest, limitou-se
às platitudes proverbiais: “momento desafiante”, “confiança nas instituições
democráticas brasileiras” ou mesmo “democracia madura”. Mas acrescentou,
significativamente, que o Brasil está “sob escrutínio”.
Naturalmente, a etapa actual de uma estratégia de
Guerra Híbrida muito refinada foi cumprida. Mas há incontáveis aventuras em
suspense pela frente. A investigação Lava Jato – actualmente em câmara lenta –
acelerará a velocidade pois uma erupção deplea bargains [1] evasivas já está
reservada a fim de criar condições para criminalizar para sempre não só Dilma
Rousseff mas a peça chave do tabuleiro de xadrez: Lula.
Jogo acabado? Não tão depressa . A frente anti-golpeachment tem uma estratégia:
marcar especialmente no “Brasil profundo”, das vastas massas de trabalhadores
pobres, a noção de ilegalidade; reconstruir a imagem de Rousseff como vítima de
uma profunda injustiça; revigorar a frente política progressista; assegurar que
o governo de Brutus 1 venha a fracassar; e criar as condições para o homem que
virá do frio para vencer as eleições presidenciais de 2018.
Castelo de Cartas brasileiro? Poderiam ser feitas
apostas de que isto pode mesmo acabar como uma sucuri , com Lula a
imobilizar as hienas da Guerra Híbrida num ninho de cobras.
12/Maio/2016
[1] Plea bargain: acordo em que o acusado colabora com a acusação e recebe um relaxamento no seu castigo.
[NR] A publicação de um artigo por resistir.info não significa um endosso a
todo o seu conteúdo.
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