quinta-feira, 30 de outubro de 2014

BRICS, БРИКС/DISCURSO DE SERGUEI LAVROV, MINISTRO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS DA FEDERAÇÃO DA RÚSSIA NA 66ª SESSÃO DA ASSEMBLEIA-GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS

28 outubro 2014, Resistir.info http://www.resistir.info (Portugal) eОфициальный сайт МИД России http://www.mid.ru (Россия)

Nova Iorque, 27 de Setembro de 2014-10-23

Senhor Presidente
Minhas senhoras e meus senhores.

Hoje vê-se cada vez com mais clareza a contradição entre, por um lado, a necessidade de acções colectivas de parceria no interesse da elaboração de respostas apropriadas aos desafios comuns e, por outro, o desejo de um certo número de países de dominar, de restaurar a mentalidade arcaica da confrontação dos blocos que se apoiam numa disciplina de caserna e numa lógica de preconceitos — «nós / os outros». A aliança ocidental, tendo à cabeça os Estados Unidos que se colocam como defensores da democracia, do primado da lei e dos direitos do homem nos países terceiros, age directamente ao inverso, no cenário internacional, rejeitando o principio democrático da igualdade soberana dos Estados, tal como fixado pela carta das Nações Unidas, e ensaiando decidir por todos o que está bem e o que está mal.

Washington proclamou abertamente o seu direito de utilizar a força militar de forma unilateral e não importa onde para a defesa dos seus próprios interesses. A intervenção militar tornou-se a norma, mesmo apesar do facto de todas as operações de força executadas pelos Estados Unidos no decurso dos últimos anos terem acabado mal.

Rudes golpes foram dados na estabilidade internacional: bombardeamento da Jugoslávia pela OTAN, intervenção no Iraque, ataque da Líbia, derrota no Afeganistão. Só graças a esforços diplomáticos intensos não se realizou a agressão contra a Síria em 2013. Não podemos deixar de pensar que as várias “revoluções coloridas” e
outros projectos visando a substituição de regimes indesejáveis só têm por fim criar o caos e a instabilidade.

Hoje, a Ucrânia tornou-se vítima dessa política. A situação revela a persistência de defeitos profundos, sistemáticos, na arquitectura existente da zona euro-atlântica. O Ocidente decidiu «uma estruturação vertical da humanidade» em função dos seus próprios padrões, que estão longe de ser inofensivos. Proclamando a sua vitória na «guerra-fria» e o êxito do pretendido «fim da história», os Estados Unidos e a União Europeia procuraram alargar o seu espaço geopolítico sem ter em conta o equilíbrio dos interesses legítimos de todos os povos da Europa. Os nossos parceiros ocidentais não ligaram aos nossos repetidos avisos sobre a impossibilidade de aceitar da violação dos princípios da Carta das Nações Unidas e o Acto final de Helsínquia, esquivaram-se em todas as ocasiões a fazer em comum um trabalho sério a fim de criar um espaço único de segurança, igual e indivisível e de cooperação, do Atlântico ao Pacífico. A proposta russa de estudar um tratado de segurança europeia foi rejeitada. Declararam-nos simplesmente que garantias juridicamente constrangedoras em matéria de segurança só podem ser obtidas por membros daAliança Atlântica que, entretanto, continuou a deslocar-se para o Leste apesar das promessas em contrário anteriormente feitas. A passagem instantânea da OTAN para uma retórica hostil e à redução da cooperação com a Rússia mesmo em detrimento dos interesses próprios dos países ocidentais, à intensificação suplementar da infra-estrutura militar nas fronteiras russas, pôs em evidência a incapacidade da aliança em mudar o seu código genético criado no tempo da «guerra-fria».

Os Estados Unidos e a União Europeia apoiaram o golpe de Estado na Ucrânia. Justificaram sem discernimento todas as acções das autoridades autoproclamadas de Kiev, que tinham escolhido como fim político esmagar pela força a parte do povo ucraniano que havia rejeitado as tentativas de impor ao conjunto do país uma ordem anticonstitucional e queria defender os seus direitos à língua materna, à sua cultura e à sua história. É justamente esta ofensiva agressiva contra os direitos que obrigou os habitantes da Crimeia a tomar o seu destino nas mãos e a fazer a sua escolha a favor da autodeterminação. Essa foi uma escolha totalmente livre, por mais que possam inventar os que são os primeiros responsáveis pelo conflito interno na Ucrânia.
As tentativas de deformar a verdade, de mascarar os factos por acusações sem fundamento foram efectuadas em todas as fases da crise ucraniana. Nada se fez para identificar e sancionar os responsáveis pelos acontecimentos sangrentos de Fevereiro na praça Maidan, massacres de massas em Odessa, Marioupol e outras regiões na Ucrânia.

A terrível catástrofe humanitária causada pelas acções das forças de segurança ucranianas no sudeste do país foi deliberadamente minimizada.
Estes últimos dias revelaram de novo factos horríveis, quando descobriram valas comuns perto de Donetsk. Em contradição com a resolução 2166 do Conselho de Segurança das Nações Unidas continua sem se realizar um inquérito aprofundado e independente sobre a queda do avião da linha da Malásia em território ucraniano. Os culpados de todos estes crimes deviam ser identificados e trazidos à justiça. Senão, será difícil esperar uma reconciliação nacional na Ucrânia.

A Rússia está sinceramente interessada na restauração da paz no país vizinho, quem conheça um pouco da história das relações profundas e fraternais entre os dois países deve estar consciente disso. A via que conduz a uma regulação política já foi anunciada em Abril, Kiev comprometeu-se na declaração de Genebra, assinada pela Rússia, a Ucrânia, Estados Unidos e União europeia, a iniciar de imediato um diálogo nacional com todas as regiões e as forças políticas na Ucrânia a fim de começar a reforma constitucional. A realização desse acordo permitiria a todos os ucranianos que se entendessem sobre a maneira de viverem juntos de acordo com as suas tradições e a sua cultura, ela permitiria à Ucrânia voltar ao seu papel orgânico de elo entre diferentes partes do espaço europeu, o que supõe claramente a preservação e o respeito pelo seu estatuto de país não-alinhado, neutro. Estamos convencidos de que com boa vontade, deixando de apoiar o «partido da guerra» de Kiev, que procura atirar os ucranianos para o abismo da catástrofe nacional, a saída da crise está perto.

Uma via para a ultrapassar foi aberta com a conclusão do acordo de cessar-fogo no sudeste da Ucrânia na base de iniciativas dos presidentes Petro Porochenko e Vladimir Putin. Com a participação de representantes de Kiev, de Donetsk, de Lougansk, da OSCE e da Rússia, estão quase decididas as modalidades práticas coerentes destes acordos, incluindo a separação das partes, o afastamento de armas pesadas das forças militares ucranianas e da organização da vigilância da OSCE. A Rússia está pronta a continuar a ajudar activamente a fazer avançar a regulação política no quadro do processo de Minsk, que já deu provas, e no quadro de outros formatos. Mas deve ser claro que o fazemos em nome da paz, da tranquilidade e do bem-estar do povo ucraniano e não para satisfazer ambições de ninguém.

As tentativas de fazer pressão sobre a Rússia, de a obrigar a renunciar aos seus valores, à verdade e à justiça, não terão qualquer efeito.

Permito-me recordar alguns factos históricos não muito antigos. Como condição para o restabelecimento das relações diplomáticas com a União Soviética em 1933, o governo dos Estados Unidos exigiu a Moscovo garantias de não-ingerência nos assuntos interinos dos Estados Unidos e o compromisso de evitar toda a acção visando modificar a estrutura política e social da América. Na época, Washington desconfiava do vírus revolucionário, e essas garantias foram dadas nas relações entre a América e a União Soviética na base da reciprocidade. Talvez fosse bom voltar a esta questão e de reproduzir a exigência do governo americano da época, à escala universal. Porque não adoptar uma declaração da Assembleia-Geral sobre a inadmissibilidade da ingerência nos assuntos internos dos Estados soberanos, sobre o não reconhecimento desses golpes de estado como método de mudança de poder? Está na hora de excluir completamente das relações internacionais as tentativas de pressão ilegais de alguns países sobre outros. O exemplo do embargo americano contra Cuba demonstra de forma evidente o absurdo e contra-produtividade das sanções unilaterais.
A política dos ultimatos, a filosofia da superioridade e a da dominação não respondem às exigências do século XXI. Entram em conflito com os processos objectivos de formação de uma ordem mundial democrática multipolar.

A Rússia propõe uma ordem do dia federativa e positiva. Sempre estivemos e estaremos abertos ao diálogo sobre os assuntos mais difíceis, por mais insolúveis que possam parecer. Estamos prontos a aceitar compromissos e o equilíbrio dos interesses, uma mudança de concessões, mas só se o diálogo for honesto, respeitoso e equitativo.

Os acordos de Minsk de 5 e 19 de Setembro sobre as vias de saída da crise ucraniana, o compromisso sobre o retardamento da entrada em vigor do acordo de associação entre Kiev e a União Europeia são bons exemplos a seguir, assim como a vontade enfim declarada de Bruxelas de iniciar negociações sobre uma zona de livre-troca entre a União Europeia e a União Aduaneira da Rússia, da Bielorrússia e do Cazaquistão, tal como foi proposto pelo presidente Vladimir Putin em Janeiro deste ano.

A Rússia sempre preconizou a harmonização de projectos de integração na Europa e na Eurásia. A harmonização de orientações políticas e de ritmos de uma tal «convergência de integrações» será uma verdadeira contribuição do trabalho do OSCE sobre o tema «Helsínquia mais 40» (Referência aos Acordos de Helsínquia, assinados em 1975, ndt]. Um outro ponto importante desse trabalho deveria ser a instauração de um diálogo pragmático e desideologizado sobre a arquitectura político-militar na zona euro-atlântica para que não só os membros da OTAN e OTSC (Organização do Tratado de Segurança colectiva, com a Rússia, 5 Repúblicas ex-soviéticas + observadores), mas também todos os países da região incluindo a Ucrânia, a Moldávia, a Geórgia, se sintam num estado de segurança igual e indivisível e não se encontrem perante um falso dilema: «seja connosco, seja contra nós».
Não podemos admitir novas linhas de demarcação na Europa, tanto mais que no contexto da globalização essas linhas podem tornar-se uma linha de partilha entre o Ocidente e o resto do mundo.

É preciso dizê-lo honestamente: ninguém tem o monopólio da Verdade, já ninguém pode ajustar os processos mundiais e regionais às suas necessidades próprias.

Hoje já não existe alternativa a um consenso sobre as regras de um governo mundial durável nas novas condições históricas, no pleno respeito da diversidade cultural e civilizacional do mundo e da multiplicidade dos modelos de desenvolvimento. Chegar a um tal consenso sobre cada ponto será difícil, provavelmente complicado. Mas o reconhecimento de que, em cada Estado, a democracia é «o pior dos regimes — à excepção de todos os outros» conforme a afirmação de Winston Churchill, tardou também muito tempo a abrir caminho. Está na hora de ver que esse axioma é incontornável igualmente nos assuntos internacionais, hoje caracterizados por um enorme défice democrático.

Claro que alguns deverão quebrar estereótipos multiseculares, abandonar as suas pretensões ao «excepcionalismo eterno». Mas não há outra solução. Os esforços solidários só podem ser construídos sobre princípios de respeito mútuo e da consideração dos interesses recíprocos, como se faz, por exemplo, no quadro do Conselho de Segurança da ONU, do «G-20», nos BRICS e da OCS (Organização de Cooperação de Xangai, ndt).
A teoria sobre a vantagem do trabalho de equipa está confirmada na prática: é o progresso na regulação em volta do PNI (Programa Nuclear Iraniano, ndt), o alcançar a desmilitarização química da Síria. De resto, falando de armas químicas, gostaria de conseguir uma informação honesta sobre o estado dos arsenais químicos da Líbia. Compreendemos que os nossos colegas da OTAN, depois de terem bombardeado esse país em violação da resolução do Conselho de Segurança da ONU, não gostariam de «revolver» o caos que eles próprios criaram. Mas o problema dos arsenais químicos líbios sem controlo é demasiado grave para que se fechem os olhos. Penso que o Secretário-Geral das Nações Unidas deve dar provas de responsabilidade também nesse assunto.

Hoje o essencial é considerar as prioridades globais e de não as tornar reféns de uma ordem do dia unilateral. A gestão dos conflitos necessita urgentemente de abandonar os dois pesos e duas medidas. Em geral, todos concordam em dizer que a tarefa principal consiste numa oposição firme aos terroristas que tentam tomar o controlo de zonas cada vez mais vastas no Iraque, Síria, Líbia, Afeganistão, no Sara e no Sahel. Se assim é, então esse problema não pode ser sacrificado a esquemas ideológicos ou a acertos de contas pessoais. Os terroristas, sejam quais forem os slogans atrás dos quais se escondam, devem sempre ser considerados foras-da-lei.

Ao mesmo tempo, claro, a luta contra o terrorismo deve apoiar-se numa base sólida do direito internacional. Uma etapa importante nessa luta foi a adopção unânime de uma série de resoluções do Conselho de Segurança da ONU, incluindo recentemente a questão dos combatentes-terroristas estrangeiros. Assim, as tentativas de agir em contradição com a Carta das Nações Unidas não ajudam ao sucesso de esforços conjuntos. A luta contra os terroristas no território da Síria deve ser travada em cooperação com o governo sírio, que claramente afirmou estar pronto a fazê-lo. Já foi comprovada pela sua acção a sua capacidade de agir com a comunidade internacional e de respeitar os seus compromissos no quadro do programa de eliminação das armas químicas.

A Rússia pediu desde o início da «primavera árabe» que não deixassem esta última à mercê de extremistas e que se criasse uma frente para lutar contra a ameaça crescente do terrorismo. Alertámos contra a tentação de tomar como aliados quase todos os que se declarem adversários de Assad, sejam Al-Quaeda, Djebhat na-Noursra ou outros «companheiros de caminho» da mudança de regime, incluindo o Estado Islâmico, que está agora no centro das atenções gerais.

Como se diz, antes tarde que nunca. Não é esta a primeira contribuição real da Rússia para a luta contra o estado islâmico, assim como contra outras formações terroristas da região. Efectuamos entregas em grande escala de armas e material militar no Iraque, na Síria e noutros países da região MENA e continuaremos a apoiar os seus esforços para eliminar os terroristas.

A ameaça do terrorismo necessita de uma abordagem global e nós queremos erradicar as suas causas e não ser condenados a reagir unicamente aos sintomas. O Estado Islâmico é apenas uma parte do problema. Propomos organizar, sob os auspícios do Conselho de Segurança das Nações Unidas, um estudo em profundidade das ameaças extremistas e terroristas no espaço MENA e na sua integralidade. Uma aproximação completa implica considerar os conflitos de longa data, principalmente o conflito israelo-árabe. O problema palestiniano em suspenso desde há vários decénios é bastante reconhecido como um dos principais factores de instabilidade na região, já que ele permite aos extremistas recrutar cada vez mais jiadistas.
O esforço comum para a aplicação de decisões da AG e do Conselho de Segurança da ONU no que respeita à luta contra o vírus do Ébola é uma outra necessidade gritante. Os nossos médicos já trabalham em Africa. Prevemos um envio suplementar de auxilio humanitário, de equipamento, de material médico, de medicamentos, de equipas de especialistas para auxiliar o programa das Nações Unidas na Guiné, na Libéria, na Serra Leoa.

A Organização das Nações Unidas, criada sobre as ruínas da Segunda Guerra Mundial, entra no seu sexagésimo segundo ano. Temos todos o dever de celebrar o aniversário da Grande Vitoria e de prestar homenagem a todos os que morreram em nome da liberdade e do direito de cada um determinar o seu próprio destino.

As lições desta guerra terrível, assim como o curso geral dos acontecimentos no mundo actual, exigem unir os nossos esforços, esquecer os interesses unilaterais, os ciclos eleitorais nacionais quando se trata de fazer frente a ameaças globais, que pesam sobre a humanidade. Não podemos permitir que o egoísmo nacional vença sobre a responsabilidade colectiva.

Tradução: Manuela Antunes

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