por Margot Bremen
1 setembro 2008/Conselho Indigenista Missionário http://www.cimi.org.br
Fernando Lugo, novo presidente do Paraguai, não viveu –nem como padre nem como bispo- dando as costas a seu povo, indiferente à sua dor e exclusão. Já na sua juventude os pobres entraram no seu coração e ele no deles e desde ali agora vai servir a seu povo. Para assumir a presidência, ele foi promovido ao estado laical; pois leigo vem de laos o que significa nada menos que povo. Com este fato, Fernando voltou a se inserir em seu povo para servir-lhe desde ali como filho e vizinho seu no oficio de presidente.
Segundo a Bíblia, aquele é o verdadeiro lugar para dar culto a Deus cuja paixão é justamente a vida de um povo unido em interdependência livremente assumida e praticada. O livro Josué lembra-nos o desafio que implica o serviço de doze diferentes “tribos” de diversas culturas e tendências, que querem formar uma unidade, a do Povo de Israel.
Naquela assembléia popular, à de Siquém, o servidor de Deus Josué, pergunta a seu povo dezenove vezes se também eles querem servir Deus. Era e é a pergunta existencial para organizar e construir o sentido de pertencer a um povo, pois o verdadeiro serviço a Deus é realizado no serviço ao povo. A causa do Deus da Bíblia é a de um povo que se une em igualdade, solidariedade, autonomia, justiça, soberania e que mantêm e fortalece a união, graças a sua fé em Deus que os libertou para formar uma convivência alternativa, o povo de Deus.
Estar ao serviço deste projeto divino, é dar verdadeiramente culto a Deus, pois assim já entendeu a Igreja antiga na liturgia; o que sempre implicava muito mais que um conjunto de ritos e celebrações. Essa liturgia, esse culto, foi celebrada, juntos na Praça da Democracia o 15 de agosto de 2008, baixo o esquema oficial da transmissão do mandato presidencial para Fernando Lugo.
A interpretação atrevida tem seu fundamento em um fato significativo que ocorreu na véspera daquele memorável dia, quando representantes de todo o povo paraguaio, haviam se adiantado em convocar Fernando Lugo para enunciar sua adesão e apoio solidário. No sentido bíblico, aqui o povo expressou sua disponibilidade de colocar-se a serviço do projeto do seu novo presidente na construção de um novo Paraguai juntos. Más também reclamaram disponibilidade dele para que se ponha a serviço do povo. Assim perguntaram, se ele ia lutar por este povo para que sejam respeitadas as leis e a constituição da República e se trabalharia para este povo, promovendo os direitos humanos e a vigência de um Estado social de direito, sem exclusões. Fernando o afirmou perante 20.000 pessoas com um “sim juro”.Concluiu à assembléia popular com a benção da terra dos Nhanderu de diversos povos do Chaco Paraguaio para consagrar-lhe deste modo como servidor do povo.
A nova aliança entre o povo despertado e organizado e um presidente com opção pelo povo (e não pelo dinheiro), levou à nossa memória um valor característico dos povos originários desta terra guarani que é a reciprocidade, tanto em nível económico-material (jopoi) como em nível de trabalho (potirõ/minga). A reciprocidade no serviço é uma das propriedades mais distintivas de nossos povos indígenas do Continente latino-americano. Também a Bíblia proclama e reclama a través de múltiplas advertências de troca de relações desta forma, o que estabelece e re-estabelece os laços de unidade e igualdade dentro da diversidade de funções e serviços.
Já os sábios do povo de Israel aconselharam ao rei: “Si tu serves ao povo, o povo te servirá” (1 Re 12,7) e o sábio por excelência, Jésus, aconselhava seus discípulos que o comportamento (o de cada um) seja para “o que manda como para quem serve” (lc22.26), ele mesmo o ilustra simbolicamente com o lava pés. Fernando, mediante esta aliança de serviço em reciprocidade com seu povo, enxergou o que ele quer ser e fazer nos seguintes cinco anos: “não quer fazer da política seu destino de vida, e sim somente uma missão de serviço como o fez em toda sua vida”, assim o interpretou com acerto Leonardo Boff.
Insurgência Indígena
Os indígenas têm um grande lugar no coração de Fernando desde os tempos em que ele acompanhava, como missionário, aos povos originários no Equador sob a guia do sábio bispo quíchua Mons. Proaño. Além disso, Fernando é sensível aos sinais dos tempos. Ele percebe a atual insurgência indígena em todo o Continente Latino-americano, pessoas com a mesma dignidade que foram silenciados e humilhados durante mais de 500 anos. Nos séculos “da catacumba” sabiam cuidar e cultivar sua identidade na resistência contra todo o in-humano. Conservaram os tesouros da espiritualidade e sabedoria herdados de seus pais e fizeram releituras do passo das mudanças históricas, sempre com respeito e fidelidade. Mantiveram e defenderam sua cosmo visão holística, sua admirável coerência e sobre tudo, sua imensa capacidade de relacionar tudo o que os rodeava centrando-o numa grande rede de inter-relações. Hoje, estes povos estão despertados e se fazem publicamente presentes nas diversas nações de nosso Continente.
Já Mons. Proaño, mestre querido de Fernando Lugo, havia manifestado ao final de sua vida que os indígenas “começaram abrir os olhos, começaram enxergar, começaram desatar sua língua, começaram caminhar, começaram a se organizar, realizar ações para eles, para os países de América...”.
Uma questão nova e muito antiga está emergindo em nosso Continente. O despertar do mundo indígena está acompanhado pela Igreja latino-americana; ela o manifesta com seu recente Documento de Aparecida de 2007 em que reconhece que as culturas milenares dos povos originários são a “matriz cultural da população latino-americana”, “eles estão na raiz primeira da identidade latino-americana” (DA 65), já que “constituem a população mais antiga do Continente” (DA88).
Uma mostra desta insurgência indígena no Paraguai é a designação de Margarita Mbywangi do povo Aché, como nova presidenta do Instituto Nacional do Indígena (INDI); na época de Stroessner ela foi vendida aos brancos para semi-escrava.
Novos sonhos com profundas Raízes
Neste momento de transição de uma época a outra, de um governo a outro, Fernando percebe a importância das utopias que marcaram a história do Paraguai. São elas as que dão agora força e as que indicam o rumo para o futuro. E quanto mais profundas são as raízes destes sonhos, tanto mais solidez e extensão terão este “sonho de um futuro com identidade paraguaia”. Textualmente dize o magnífico presidente em seu discurso inaugural: “nos queremos encontrar seus valores e seus significados (os do passado) para que na semiótica do futuro se encontrem nítidas as motivações que clamam por um amanhã que reitere as conquistas e não repita seus erros”.
Fernando Lugo conhece e aprecia os saberes indígenas os que podem contribuir hoje muito na construção de uma nova convivência inter-cultural; são valores que ajudam a resistir e enfrentar nosso entorno corrupto, desonesto, violento, com uma “iniqüidade de saciedade e fome”, o sinal mais feroz da exclusão. Especialmente um valor, mui arraigado nas culturas indígenas, o da inclusão, foi novamente resgatado por Fernando, ao proclamar: “Nos queremos um Paraguai em que cresçam TODOS”.
No coração de cada paraguaio lateja ainda o sonho guarani de uma terra sem mal, que se faz presente, implicitamente na fala, no sentir e pensar da língua guarani. Fernando, na praça da democracia pediu licença a seu povo para não pronunciar seu discurso inaugural na língua dos paraguaios, o guarani: falou em espanhol por respeito aos convidados estrangeiros. Fundamento dos sonhos paraguaios, tanto em nível pessoal como nacional é sempre a “busca da terra sem mal” da grande nação guarani. Também a padroeira do povo paraguaio, a Virgem de Caacupé, nutre suas raízes nesta utopia. Não se trata de uma nostálgica olhada para trás, e sim estamos em busca de novo futuro. Quem poderia ser a pessoa mais indicada para recuperar o mito logúmenon da “terra sem mal” (yvy marane’y) que Margarita Mbyawangi, a magnífica titular do INDI, quem disse com toda consciência no seu discurso inaugural o dia 20 de agosto que “só unidos podemos conseguir aquilo que nossos avôs, nossos antepassados sempre amaram e buscaram; assim estaremos cada vez mais perto do yvy marane’y”.
São palavras que interpelam para um serviço mutuo na construção comum de uma nova história na qual cada parte deve dar sua “semente”. Para que nossa semente de um novo Paraguai possa crescer, necessitamos erradicar antes a mata espessa do individualismo, do caudilhismo, da prepotência, do patrão e depois semear as sementes da liderança coletiva, de uma nova unidade desde a diversidade, de uma necessária austeridade e de uma soberania popular em todos os níveis: território, cultura, identidade. Tomara não aconteça que ao não querer semear sobre a pedra, se impunha e se afirme também aqui o principio da vida e de sua semelhança com o reino de Jesus revelada mediante a parábola do grão de mostarda. Sendo sua semente uma das menores, tem dentro de si a força da vida para crescer tornando-se uma árvore, a maior de toda a horta, onde os pássaros do céu vem para fazer seus ninhos nas suas ramas (Mt 13,31-32) Regra de vida é que o novo começa desde o menor, o grãozinho de mostarda, desde o mais profundo, a “terra sem mal”, desde o deixar morrer muito em nos, renunciando aos interesses próprios e à busca de vantagem próprias a favor do crescimento vital dos sempre desfavorecidos e excluídos. “Se o grão de trigo não cai em terá e não morre, fica só; porém se morre da muito fruto” (Jn12, 24). A possibilidade de uma nova história desde a “matriz cultural indígena” deu-se em um dos paises menores de nosso Continente latino-americano. Tomara seja como o grão de mostarda, ofereça fermento, a muitos outros países.
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