14 de setembro de 2008/Vermelho http://www.vermelho.org.br
Nem tudo está perdido no jornalismo que se pratica na mídia hegemônica. Laura Capiglione e Marlene Bergamo, por exemplo, enviadas a Santa Cruz pela Folha de
S.Paulo para cobrir a queda-de-braço boliviana, pintaram um vivo retrato da favela Plán 3000, enorme reduto pobre, indígena e pró-Evo Morales na periferia de Santa
Cruz. Mesmo castigada pela edição, a reportagem ajuda a mostrar a contradição social profunda nas entranhas desse departamento supostamente fechado com o ''autonomismo'' oligárquico.
Por Bernardo Joffily
A deformação editorial ficou por conta do título – Índios se enfrentam em reduto evista –, que ao que tudo indica não é culpa das repórteres. A chamada na capa do caderno Mundo do jornal reforça o equívoco: ''Confrontos em reduto de Morales na periferia de Santa Cruz expõem oposição entre indígenas''.
Basta ler com atenção a reportagem para constatar que o editor entendeu tudo errado. Ou, pior, fez um esforço para que o leitor desavisado entenda tudo errado.
A reportagem não descreve um ''conflito entre indígenas''. Pinta o drama inacreditável do Plán 3000, um bairro de 250 mil moradores – homens, mulheres, muitas crianças –, atacado todas as noites pelas milícias da oligarquia cruzenha, em nome do racismo e do ''amor ao capitalismo''.
A crueldade oligárquica só fica mais realçada pelo fato dos soldados das milícias serem tão índios como suas vítimas. A classe dominante cruzenha ''terceirizou'' sua violência, assalariando gente pobre para fazer o serviço sujo.
Está tudo na reportagem. Não é um texto ''evista'' ou ''antievista'', só um trabalho de duas jornalistas brasileiras, com olhos e ouvidos na Santa Cruz convulsionada. Só uma amostra de que apesar de todos os pesares ainda sobram brechas na grande imprensa por onde se pode infiltrar um jornalismo que mereça este nome.
Confira o trabalho de Laura e Marlene:
''Oposição no departamento mais rico da Bolívia paga a indígenas assimilados para que, todo dia desde piora da crise, confrontem migrantes''
'''São uma gente horrorosa. As collas [índias] fazem cocô nas ruas e se limpam nas próprias saias. O cheiro é horrível. É um povo de não-cristãos. Não compartilham conosco os valores ocidentais e o amor ao capitalismo.'
A descrição quem faz é Andrés Gómez, 22, editor, branco, morador na zona central do departamento de Santa Cruz, o mais rico e um dos mais aguerridamente anti-Evo Morales. O objeto da descrição são os moradores do Plán 3000, periferia de Santa Cruz, favelão com população majoritariamente imigrante do altiplano (La Paz, Cochabamba, Oruro, Potosí, entre outros), a voz do gueto indígena e miserável no meio da próspera Santa Cruz.
Há uma semana, os quase 250 mil moradores de Plán 3000 têm sido obrigados a trocar o dia pela noite. or volta as 18h, a praça central do bairro começa a se encher de gente que sai de suas casas para passar a noite ao relento. Forma-se um formigueiro humano, espécie de rua 25 de Março enlameada. É para se defender.
Desde que os departamentos da chamada meia-lua -as terras baixas na parte oriental da Bolívia cujos governos fazem oposição ao presidente- iniciaram o novo ciclo de desafios ao governo central, gangues de até mil autonomistas (o pessoal anti-Morales), assim que o sol se põe, começam a guerra psicológica: cercam o Plán 3000, soltam rojões, sobrevoam o local com aviões de pequeno porte, empunham paus, arremessam pedras.
'Para nós é questão de honra vencer esses índios sujos que insistem em apoiar Morales', afirmou à Folha Carlos Ortiz Cizendo, 15, que vive longe dali. O menino diz ter recebido 200 bolivianos, ou R$ 40, para atuar durante toda a noite de sexta-feira e madrugada de sábado como soldado da tropa de choque autonomista. 'Também recebi comida e um cassetete preto', diz, e mostra, todo orgulhoso, o instrumento.
Homens, mulheres e crianças correm de um lado para o outro nas quatro entradas do bairro, tão logo espalha-se mais um boato de invasão.
Ateiam fogo a pneus e lançam rojões enquanto seus meninos posicionam-se para a batalha. Essa rotina dura até por volta das 23h, quando começam os ataques de verdade e os choques entre os dois grupos. A polícia não intervém.
Como o pessoal do bairro, Ortiz tem a tez escura, os olhos puxados e os cabelos lisos. É indígena, mas se diz um 'camba'. 'Sou católico, uso banheiro, sou limpo e ocidental.'
O grupo de choque de Ortiz tem 300 jovens índio-descendentes como ele. Uma van Mitsubishi cheia de jovens universitários brancos distribui porretes, rojões e alimentos. Suprimentos para os invasores.
Em Santa Cruz, existe profunda rivalidade entre os índios que se chamam de 'collas' e os que se denominam 'cambas'. 'Collas' são os que vêm do altiplano, majoritariamente pró-Evo Morales. 'Camba', que um branco também pode ser, significa pertencer ao mundo moderno, da produção e do consumo capitalistas.
Rastro de fogo
Na quarta-feira, a milícia pró-autonomia conseguiu penetrar na rotatória que dá acesso ao Plán 3000. Saqueou o mercado local. Autonomistas fugiram com nacos de carne crua, verduras, arroz e batatas e deixaram um rastro de fogo e destruição.
A 'Casa do Povo' – sede do MAS (Movimento ao Socialismo), partido do presidente –, no coração da favela, tornou-se foco da resistência. Lá, na sexta-feira, cozinhava-se a alimentação coletiva (canja de galinha com verduras, arroz, milho e tomate), preparavam-se coquetéis molotov, paus com pregos, fundas, estilingues e escudos de papelão e madeira. Parece uma guerra de meninos, apesar da gravidade da situação.
Plán 3000 ama Morales. Ele foi o primeiro presidente a visitar o local, desde que, nos anos 80, transformou-se uma antiga fazenda em alojamento para 3.000 famílias de flagelados de uma enchente do rio Piraí.
Morales, que mal consegue pôr os pés no centro insurgente de Santa Cruz, já foi a Plán 3000 uma dezena de vezes, desde sua eleição, há dois anos e nove meses. Inaugurou o primeiro hospital, a primeira universidade do local, o sistema de esgoto, escola, praça, a pedra fundamental do novo mercado.
Jenrry Martínez Román, 43, é uma das principais lideranças de Plán 3000. A mãe e o pai, um dirigente dos trabalhadores em minas de estanho de Potosí, ele perdeu, assassinados pelo Exército, quando ainda era criança. O avô morreu durante a guerra do Chaco (que opôs a Bolívia ao Paraguai, entre 1932 e 1935).
Martínez Román grita palavras de ordem em quéchua e aymará (línguas indígenas tradicionais) em um megafone instalado no meio da praça. De todo o fraseado, só se entende um 'Evo Morales', no fim.
Homens e mulheres respondem, também nessas línguas. O discurso é transmitido pela rádio Integración, 102,3 MHz, que convoca a favela e o conjunto residencial Primeiro de Maio, vizinho, para a vigília, enquanto entremeia toda a locução por jingles que são músicas de protesto. Estão todos prontos para a batalha.''
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