terça-feira, 5 de agosto de 2008

«AMÉRICA LATINA VIVE UM MOMENTO NUNCA ANTES VISTO EM SUA HISTÓRIA»

Sergio Ferrari *


Entrevista com Walter Suter, ex-diplomata e analista suíço.


[ADITAL] Agência de Informação Frei Tito para a América Latina
www.adital.com.br

1 agosto 2008

América Latina vive uma situação marcada, particularmente, pela esperança e por um despertar geral da consciência e da auto-estima. Essa é a tese central da análise de Walter Suter sobre a conjuntura atual que transita por esse continente marcado pela presença de inúmeros governos progressitas aos quais se somará, a partir do dia 15 de agosto, o governo de Fernando Lugo, no Paraguai. Walter Suter foi, durante quase 40 anos, diplomata suíço em diferentes regiões do mundo, onde pode presenciar e "acompanhar" diversos processos de transição, como na Argentina (antes do retorno do peronismo ao governo, 1970-1973); no Chile (imediatamente depois do golpe militar de Augusto Pinochet); na Espanha; no Paraguai (posteriormente à saída do ditador Alfredo Stroessner); e no Líbano (em meados dos anos 90). Sua última missão como embaixador foi concluída em 2007, na Venezuela, país onde viveu durante quatro anos; talvez os mais decisivos do novo processo bolivariano, dirigido pelo presidente Hugo Chávez. Agudo analista e experto em América Latina, Walter Suter desenha, nesta entrevista exclusiva, uma original radiografia da América Latina hoje.

P: A partir de um olhar histórico macro, quais são, em sua opinião, os traços principais que determinam a atual etapa em que vive a América Latina?
R: Constato uma situação particularmente de esperança no continente, especialmente na América do Sul, onde se manifesta um despertar geral da consciência e da auto-estima. A convicção de povos e governos de que é possível resistir aos ditames do Norte, seja dos Estados Unidos ou da Europa. A decisão dos povos de ser eles mesmos, tentando superar mais de 500 anos de colonialismo, autoritarismo e verticalismo.
Quando cheguei pela primeira vez nesse continente, várias décadas atrás, percebia certa resignação e cansaço. Porém, aconteceram processos muito importantes. E vemos na atualidade um mapa político onde predominam governos de esquerda -uns mais; outros menos progressistas-. Um fenômeno muito novo que não se vê em outras regiões do mundo. Destaco a importância, nesse mapa, do processo que se dá na Venezuela, a partir da eleição do presidente Hugo Chávez. Uma revolução pacífica no marco institucional, legal, não-violento. Um fenômeno muito novo para o continente. Uma mudança tremenda de qualidade, onde predomina a busca de alternativas em cada país e na região. Os postergados de antes se convertem em sujeitos de seu próprio destino. Dinâmica nova que pode, inclusive, ter um efeito global.

O espelho latino-americano

P: O que insinua ao falar de impacto global?
R: A determinação de encontrar uma alternativa à globalização neoliberal que se impôs no planeta. Processos que tomam em suas mãos seu próprio destino. E que impulsionam um novo espírito de solidariedade que se percebe claramente quando lá se encontra. E esta realidade pode ter um valor direto também para nós, na Suíça, na Europa. Despertar-nos de certa inércia...

P: Argumenta que o que América Latina vive pode ser um sinal para a Suíça?
R: Sim. Na América Latina vive-se novas formas de participação cidadã real, desde a base. Isso eu comprovei, por exemplo, na Venezuela, com os conselhos comunitários, onde as comunidades podem definir aspectos essenciais da política. Se isso nos chama a atenção e não mobiliza o interesse de meus compatriotas suíços, seria uma pena. Porque nós conhecemos bem o valor da democracia direta participativa e a importância de alimentá-la e de renová-la.

Venezuela e os meios

P: Você tem uma visão muito positiva da atual dinâmica venezuelana. O que não coincide com a cobertura midiática que se dá na Suíça. Como explica seu marcado otimismo contrastado à crítica sistemática da grande imprensa sobre Chávez?
R: Não quero fechar os olhos diante das mudanças profundas e diante das dificuldades que estão acontecendo na Venezuela. Não creio, por outro lado, que na Suíça se dê uma conspiração midiática contra esse país. Há poucos correspondentes suíços que vivem e cobrem diretamente a partir da América do Sul. As principias informações que temos diretamente chegam através das grandes agências de notícias que respondem a interesses e que, muitas vezes, são reproduzidas quase automaticamente aqui. Portanto, a desinformação da qual muita gente é objeto tem sua origem nessas agências que executam a política informativa das meias-verdades, que consiste, não necessariamente, em dizer mentiras, mas em calar uma parte importante da verdade. E isso é perigoso porque reproduz aqui na Europa uma imagem incompleta e, às vezes, distorcida do que realmente acontece lá. É importante dizer que também lá os grandes meios de comunicação pertencem a setores economicamente muito poderosos e que não têm interesse, por exemplo, que a revolução democrática avance na Venezuela porque vai tocar em seus interesses.

P: Fala de uma revolução democrática e me faz pensar na tentativa de Salvador Allende e de sua Unidade Popular em transformar a fundo o Chile pela via institucional. Não se corre o risco na Venezuela de que se reproduza o que aconteceu no Chile a partir de 1973?
R: Não creio. Hoje, há duas diferenças bem marcadas. A primeira é a situação internacional. Naquele momento, prevalecia a guerra fria e os Estados Unidos impunham na América Latina suas peças para enfrentar os que eles consideravam a "ameaça comunista". Hoje, a realidade mundial é distinta. Chávez chega ao governo em outra conjuntura internacional.
A segunda é a composição do exército. No Chile era classista, elitista, muito ligado ao grande poder oligárquico. Na Venezuela, a maior parte da oficialidade está composta por pessoas que provém de classes médias e populares.

O "milagre" paraguaio

P: O último governo progressista eleito na América do Sul foi o de Fernando Lugo, no Paraguai, país onde você viveu durante seis anos, no começo dos anos 90. Como interpreta este resultado inesperado?
R: Tem sido uma tremenda luta após a queda de Strossner, há 19 anos, para chegar a uma real transformação democrática. Com muitos momentos de auge e outros de decepção, como em 1993, quando, através da fraude, o candidato do Partido Colorado venceu as eleições presidenciais, isto é, venceu o "stronismo". Então, abriu-se uma etapa de resignação, decepção, pessimismo. Até que sucedeu o recente milagre da vitória eleitoral de Lugo. Muita gente, todavia, não acredita e pensa que é um sonho. Um fator chave que possibilitou esta vitória é a própria personalidade de Fernando Lugo. Um religioso católico, sempre muito próximo das pessoas, da base, especialmente da base camponesa. Com um grande carisma e com a capacidade de unir a muitos setores diferentes para derrotar o principal inimigo, o continuísmo colorado. Essa é a grande sorte do Paraguai hoje.

P: Importantes teólogos progressistas latino-americanos, como Leonardo Boff e Frei Beto, falam de Lugo e de Correa, atual presidente do Equador, como "filhos da teologia da libertação". Essa é também sua opinião?

R: Lugo não se considera como um teólogo, mas como um pastor. É real que seu discurso político e sua prática têm tudo da mensagem evangélica. E isso lhe dá uma grande credibilidade. Com a eleição de Lugo, deu-se, em minha opinião, o que alguma vez antecipou o bispo brasileiro dom Helder Camara: quando um sonha só, fica reduzido a um sonho; quando sonhamos juntos, começamos a transformar a realidade.

Força e fragilidade

P: Que aconteças, hoje, processos tão estreitamente ligados a personalidades carismáticas, a líderes fortes, não pode indicar uma certa fragilidade dos mesmos frente ao futuro?
R: Vejo mudanças de impacto no continente. Porém, ao mesmo tempo, sei que esses processos têm algo de fragilidade. No entanto, estou convencido de que isso não acarreta a perda de seu valor. Protagonizadas por gente que tenta transformar a realidade, com todos os riscos que isso implica e resistências que produz. Ás vezes, me pergunto a causa de tudo isso. E percebo que a América Latina não viveu uma revolução democrático-burguesa como nós vivemos na Europa. E muitos desses processos de mudança implicam em saltos de estruturas quase feudais à modernidade da democracia participativa. Na mente dos setores dominantes, hoje, parcialmente deslocados, ficam enraizados estruturas feudais, sem nenhuma consciência de partilhar algo para não perder tudo. E diante dessa situação, com essas imagens feudais enraizadas também, às vezes, na cultura política de muita gente, explica-se melhor que as mudanças venham pela mão de líderes. E que sejam personalidades carismáticas -com o apoio de movimentos sociais- as que dirigem essas transformações.
A fragilidade principal dar-se-ia, no futuro, nas experiências promovidas por esses líderes, se fica nisso e não se encontrem fórmulas de participação renovada, ampla, ativa, efetiva, dos setores populares na gestão do poder.
Para tratar de contrapor esses perigos de fragmentação e de fragilidade, no dia 23 de maio de 2008, no Brasil, os doze Estados soberanos da América do Sul deram um passo importante, prova da vontade de integração e da solidariedade ao assinar a constituição da nova União das Nações Sul-americanas (UNASUL), um projeto lançado em 2004 pelo presidente Chávez. É uma iniciativa que expressa claramente que os líderes mencionados têm consciência da importância de uma institucionalização dos processos democráticos participativos para garantir um marco sustentável para a região.

P: Nesse marco continental, como avalia a presença de Cuba, que começou sua revolução há quase meio século antes desses processos?
P: Não conheço Cuba a fundo e nunca estive lá. Porém, percebo que vê com bons olhos esta nova etapa do continente. Que quer fazer parte disso. Não quer ficar de fora e nem aparecer como o mestre que dá lições. E isso é muito importante.

Una nova solidariedade de ida-volta

P: Quero terminar, voltando a um conceito que desenvolveu no início de nosso diálogo. O efeito de tudo o que a América Latina vive para a Europa e para o Norte. E também os desafios da solidariedade do Norte para com essa nova realidade latino-americana...
R: Para Suíça, a cooperação e a solidariedade são pilares importantes que fundamentam nossa própria cultura política. Importantes setores da sociedade civil são sensíveis a estes temas.
E deveríamos ter maior interesse, como país, de aproximar-nos mais do que acontece na América Latina. Por quê? Porque os objetivos que eles perseguem lá, as metas e os métodos para implementar ditas metas são também nossos. É de grande interesse partilhar essas experiências à luz de nossa própria experiência como nação. O de lá é um sinal para cá.
Quisera recordar um conceito muito importante do preâmbulo da constituição suíça, que assinala que a fortaleza de uma comunidade pode ser medida pelo bem-estar dos mais desfavorecidos. Insisto: deveríamos aproximar-nos mais da América Latina, inclusive, no âmbito da diplomacia oficial, para assumir esse esforço como causa comum dos organismos internacionais.
Por outro lado, seria importante olhar nossa própria democracia direta no espelho daquilo que se vive em muitos processos latino-americanos. Com uma intensa participação cidadã. Creio que seria importante implementar aqui uma auto-avaliação e uma renovação. Redescobrir o valor de outros que seguem certos caminhos participativos como nós, mas que podem apontar-nos um renovado entusiasmo. E aprender deles o desafio de participar mais e delegar menos...

[Colaboração AMCA e E-CHANGER]

Tradução: ADITAL

* Colaborador de Adital na Suiça. Colaboração E-CHANGER, ONG miembro da Plataforma Comunica-CH

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