29 de Julho de 2016, Brasil 247
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Paulo Moreira Leite*
A gravidade da denúncia
de Lula contra o juiz Sérgio Moro no Conselho de Direitos Humanos da ONU não
deve ser minimizada.
Mostra uma verdade
importante, que é preciso encarar, ainda que seja dolorosa de reconhecer: a
defesa dos direitos e garantias individuais no Brasil da Lava Jato tornou-se
uma luta travada em situação desesperadora, na qual uma vítima, mesmo o cidadão
que ocupou a presidência da República por dois mandatos, não tem a quem
recorrer e precisa buscar auxílio internacional para proteger seus direitos.
A situação atual do
país foi bem definida pelo professor Paulo Sérgio Pinheiro, com formação em
História e Direito, que foi ministro da
Secretaria de Estado de Direitos
Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso. Descrevendo o país neste momento,
Paulo Sérgio avalia:
"Para piorar as
coisas, nessa situação de crise as duas forças que seriam cruciais para
garantir o espaço democrático dão mostras de total conivência com a degradação
em curso. O Judiciário alterna omissão e intervenções deliberadas a favor do pacto
elitista. A grande mídia dispensa qualquer análise crítica, pois abraçou e
adulou o golpe (contra Dilma) desde o primeiro dia." (Le Monde Diplomatique,
julho de 2016).
Neste ambiente, a
acusação do mais popular presidente da história brasileira, numa tribuna
tradicionalmente destinada a vítimas de ditaduras escancaradas, excluídas de
todo direito político que deveriam usufruir em sua própria terra, expõe o
estado de desmantelamento daquilo que, muito penosamente, os brasileiros
aprenderam a respeitar como Estado Democrático de Direito. (Na realidade, em
vez de degradação ou desmantelamento talvez fosse adequado falar de
"instituições em frangalhos", empregando a linguagem sem
rodeios de um editorial do Estado de S. Paulo no dia em que a ditadura militar
deu início a treva do AI-5. Como se recorda, aquela decisão maligna foi
sustentada sem rodeios por um ex-coronel do Exército, que, promovido a
ministro civil, sugeriu que o governo militar mandasse "às favas
todos os escrúpulos de consciência.")
Ao bater às portas da
ONU, Lula segue uma trilha aberta, seis anos atrás, com o auxílio do mesmo
advogado Geoffrey Robertson, agora engajado em sua defesa, pelo ativista
revolucionário Julian Assange, cidadão australiano que acusou o governo inglês
de perseguição. Há diversas lições úteis neste caso.
Criador do Wikileaks,
responsável pela divulgação a partir de 2006 de segredos diplomáticos de
importância histórica gigantesca, rapidamente Assange tornou-se alvo de uma
caçada internacional. Com o pretexto jurídico de que deveria responder a uma
denúncia de estupro em Estocolmo, frágil e inconclusiva, a operação tinha a
utilidade óbvia de alcançar um objetivo maior: facilitar sua extradição para os
Estados Unidos, onde um aliado acabou condenado a 30 anos de regime fechado por
um tribunal militar.
Refugiado na embaixada
do Equador, em Londres, Assange conseguiu que o governo de Rafael Correa lhe
desse asilo. Embora se tratasse de um direito líquido e certo do ponto de vista
da jurisprudência internacional, não pode ir ao aeroporto tomar avião. Apoiado
num contingente policial, o governo britânico montou um certo permanente
à embaixada, por todos estes anos, deixando claro que ele seria preso caso se
atrevesse a colocar os pés na rua. Após dois anos e meio, o grupo de trabalho
formado pela ONU chegou a um veredito sobre Assange. Reconheceu que pai
do Wikileaks "foi detido arbitrariamente pela Suécia e pelo Reino Unido
desde sua prisão em Londres em 2010". Indo além, sugeriu que fosse
libertado e recebesse uma indenização em dinheiro como de reparação.
Cinco meses depois da
decisão, Assange continua detido na embaixada. Não há a menor perspectiva de
ser libertado em prazo curto, nem mesmo depois que o primeiro David Cameron,
principal responsável pelo cativeiro londrino, perdeu o emprego, enxovalhado
pela repulsa popular manifestada no Brexit. Assange ganhou mas não levou.
Como no caso de Lula, essas deliberações não tem caráter mandatório,
equivalem a sugestões.
Alimentado pelo
conhecido complexo de vira-latas, que não se manifesta apenas na relação com os
países ricos, mas também na convivência entre classes sociais, uma parcela
reconhecida de brasileiros sempre demonstrou uma dificuldade imensa para
reconhecer a importância fundamental de Lula na história do país.
Podemos apostar que
essa postura será mantida diante da denúncia feita a ONU, através de tentativas
de rebaixar o debate e fingir que tudo não passa de encenação. A divulgação, no
mesmo dia, com o estardalhaço de sempre, de acusações sobre o apartamento do
Guarujá e o sítio de Atibaia, que acrescenta novos lances a um mesmo enredo sem
oferecer nada de conclusivo, destina-se a alimentar um espetáculo
previsível, deprimente e conhecido -- cujo destino é embelezar uma
injustiça em curso, aquela mesma que os advogados de Lula denunciaram a ONU.
Referindo-se, sem dar
nomes próprios, ao papel essencial que a televisão cumpre nessa empreitada
daninha contra a democracia e a Justiça, o advogado Antônio Claudio Mariz de
Oliveira, insuspeito de qualquer simpatia pelo Partido dos Trabalhadores,
registra o nascimento no país aquilo que chama de "A sociedade da Lava
Jato". Mariz, cuja crítica a Lava Jato impediu que assumisse o Ministério
da Justiça no governo interino, explica: "ao contrário de
cumprir suas responsabilidades de informar com isenção, a mídia televisada
explora à exaustão, com cenas de sangue, crueldade e extrema violência, de um
lado, e execração, humilhação e violação da dignidade do acusado, de outro,
abstraindo todo seu conteúdo humano e suas marcantes consequências
sociais." (Estadão, 27/7/2016)
É uma questão de pura
honestidade intelectual reconhecer que no Brasil de 2016 Lula tem o direito --
na realidade, sua liderança política transforma essa prerrogativa em
dever -- de denunciar a situação que enfrenta, cobrando o
cumprimento de garantias que as Nações Unidas sistematizaram no Pacto por
Direitos Políticos e Civis.
Ali, o artigo 9
condena prisões e detenções arbitrárias. O 14 recorda a presunção da
inocência como uma garantia fundamental. Também se define o direito de ser
julgado por um tribunal independente e imparcial. No 17, fala-se na proteção
contra invasão de privacidade e contra ofensas ilegais a honra e a reputação.
Após dois anos e três
meses de Lava Jato, ninguém tem o direito de não enxergar o que acontece. Se o
combate a corrupção envolve um esforço necessário, indispensável até, não pode
se transformar numa ameaça a democracia e servir de alimento à perseguição
política.
Ninguém tem o direito,
também, de fingir que não está vendo nada -- como ocorrer nas instâncias
superiores do Judiciário, inclusive no STF.
A dificuldade para se
encontrar provas de corrupção não pode servir de desculpa para que a Justiça, o
Ministério Público e a policia não cumpram a obrigação de apontar elementos
concretos, acima de qualquer dúvida razoável, para se incriminar uma pessoa --
este é o sentido do artigo 14. A divulgação, com técnicas stalinistas, de
gravações telefônicas ilegais, desrespeita a privacidade defendida no artigo
17. Também ofende a honra e a reputação de cidadãos, ainda mais quando envolve
diálogos de natureza pessoal entre mãe e filho. É puro absurdo falar em
"tribunal independente e imparcial" sob comando de um juiz que
defende o vazamento sistemático de informações aos jornais como forma de
"deslegitimar" autoridades envolvidas, num indício claro de que
assume a presunção da culpa desde o início. Um juiz não pode fazer parte da
acusação, recordam os advogados de Lula.
Cabe lembrar, ainda,
que nenhuma das cláusulas do Pacto da ONU, do qual o Brasil é signatário, chega
a ser um novidade. Estão alinhadas, de forma até mais clara e detalhada, na
Carta de 1988. Deveriam ser cumpridas automaticamente.
Três décadas depois da
democratização, 28 anos após a promulgação de uma Constituição chamada
Cidadã, o presidente que colocou o país em novo patamar internacional,
afirmando durante seu governo uma liderança que nenhum antecessor foi capaz de
exibir, foi ao centro da diplomacia internacional para apontar um risco
-- o país está sob ameaça de se tornar uma ditadura. A mensagem final, que
dispensa palavras, é esta. Desde o século XVIII a luta contra toda tirania se
inicia com a defesa dos direitos e garantias do indivíduo contra o Estado. É
neste esforço, mais do que em qualquer outra iniciativa, que se trava a
primeira das batalhas em defesa das liberdades e direitos. Uma das primeiras
providências dos engenheiros do AI-5, como se sabe, foi suspender o
habeas-corpus.
É bom que os democratas
sinceros de hoje, e os golpistas envergonhados, lacrimosos, de amanhã, tenham
coragem de refletir a respeito. O futuro dos brasileiros agradece.
*O jornalista e
escritor Paulo Moreira Leite é diretor do 247 em Brasília
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