por Débora Melo,
Carta Capital
Torcedores foram expulsos de arenas após protestos contra o presidente interino; para juristas, medida fere direito à liberdade de expressão
"Se você se
manifestar com uma faixa 'fora Temer', vamos pegar a faixa". Foi assim que
um agente de segurança do estádio do Engenhão, no Rio de Janeiro, iniciou uma
discussão com dois torcedores que assistiam à partida da seleção brasileira feminina
de futebol contra a China, na quarta-feira 3. "Dentro do estádio não
pode", disse o funcionário, conforme vídeo que circula na internet.
Protestos contra o presidente interino Michel Temer (PMDB) têm sido
reprimidos nos Jogos Olímpicos, e alguns manifestantes chegaram a ser expulsos
das arenas. No sábado 6, ao acompanhar uma prova de tiro com arco, um
brasileiro foi retirado do Sambódromo por agentes da Força Nacional de
Segurança. Motivo: um controverso grito 'fora Temer'.
No mesmo dia, um grupo de 12 torcedores que assistia à partida de
futebol feminino entre França e Estados Unidos teve de se retirar do estádio
Mineirão, em Belo Horizonte, após um protesto: além de pedir a saída de Temer,
o grupo exibiu letreiros nos quais se lia "volta, democracia", em
inglês ("come back democracy").
Outros casos de repressão foram relatados pela imprensa e nas redes
sociais, e o Comitê Olímpico Internacional (COI) e o Comitê Organizador da Rio
2016 anunciaram que não irão tolerar cartazes de caráter político.
"Queremos arenas limpas", afirmou Mario Andrada, diretor de
comunicação da Rio 2016. Vaias, gritos e cantos estão liberados. "Se isso
não fosse aceito, metade do Maracanã teria sido esvaziado [na abertura dos
Jogos]." Sobretudo nos poucos segundos nos quais Temer assumiu o
microfone.
A determinação se baseia na lei 13.284, que dispõe sobre as medidas
relativas aos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. A lei, que foi
sancionada por Dilma Rousseff no dia 10 de maio - dois dias antes de seu
afastamento pelo Senado -, diz em seu artigo 28º que é proibido "portar ou
ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens
ofensivas, de caráter racista ou xenófobo ou que estimulem outras formas de
discriminação", bem como "entoar xingamentos ou cânticos discriminatórios,
racistas ou xenófobos".
Em outro parágrafo, contudo, o texto diz que "é ressalvado o
direito constitucional ao livre exercício de manifestação e à plena liberdade
de expressão em defesa da dignidade da pessoa humana". O trecho está de
acordo com a Constituição de 1988, que garante aos brasileiros a "livre
manifestação do pensamento" (artigo 5º, parágrafo IV).
A lei aprovada em maio não faz qualquer menção a protestos
"políticos". Para a professora Eloísa Machado, da Fundação Getulio
Vargas (FGV) Direito -- São Paulo, manifestar reprovação política não
caracteriza ofensa, e a lei está sendo interpretada de maneira
"irresponsável, ilegal e inconstitucional". "É uma violação à
liberdade de manifestação e de expressão no Brasil, um tipo de censura aplicada
aos jogos", afirmou, em entrevista a CartaCapital.
De acordo com a professora, o Coletivo de Advogados em Direitos Humanos
(CADHu) -- do qual ela faz parte -- entrará com uma ação na Justiça Federal de
São Paulo para garantir a liberdade de expressão na partida das quartas de
final do futebol feminino, marcada para a próxima sexta-feira 12 na Arena
Corinthians (Itaquerão). "Estamos preparando neste momento uma ação
judicial para evitar que uma pessoa que queira ir ao jogo seja proibida de se
manifestar", disse.
As expulsões de torcedores ganharam destaque na imprensa internacional.
Reportagem publicada no domingo pelo diário norte-americano The Washington Post
relata que "os Jogos Olímpicos enfrentaram uma nova polêmica neste fim de
semana -- e desta vez não foi sobre segurança, zika ou águas poluídas, mas
censura". O The New York Times, por sua vez, afirma que as expulsões
"alimentam o debate sobre os limites da liberdade de expressão" em um
País que passa por um período de "extraordinária agitação política".
Especialistas consultados pelo site de notícias jurídicas Justificando
também afirmam que o veto à manifestação política é inconstitucional. "É
evidente que pode [protestar]. Qualquer coisa diferente disso é ditadura",
disse o historiador Salah H. Khaled Jr., professor de Ciências Criminais da
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Para Márcio Sotelo Felippe,
procurador do Estado de São Paulo, as medidas são reflexo de um autoritarismo
crescente no País. "É estado de exceção. A Constituição de 1988 não existe
mais."
Decisão do STF
A proibição de protestos em estádios foi considerada constitucional pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) em 2014. Na ocasião, os ministros analisaram um
recurso do PSDB que questionava a restrição a cartazes e bandeiras nas arenas
prevista na lei 12.663/2012, a Lei Geral da Copa.
Por 8 votos contra 2, o STF entendeu que a proibição era legal. Apesar
de ter votado pela legalidade do dispositivo, o relator do processo, Gilmar
Mendes, registrou em seu voto que "é preciso ter a visão" de que
autoridades públicas estão sujeitas a vaias e protestos, o que não pode ser
confundido com ofensa.
"De fato, é preciso que nós tenhamos também certa compreensão do
que se diz no estádio, que a gente saiba que ali se empregam expressões
figuradas. Ao chamar um juiz de ladrão, ninguém, de fato, está imputando ao
juiz uma dada falta, senão a de que ele errou no lance. É preciso ter essa
compreensão, como as vaias e os apupos também dirigidos a autoridades, às
vezes, de maneira muito mais enfática, a rigor, também não são ofensas de
caráter pessoal, elas são apenas manifestações de desacordo. Portanto, é
preciso ter essa visão", afirmou Mendes.
Para Eloísa Machado, o Supremo foi claro na sua defesa à livre
manifestação. "O que a Lei Geral da Copa tentava evitar era justamente um
tipo de ofensa de cunho discriminatório, um episódio de racismo, como nós
infelizmente já tivemos nos estádios do Brasil", diz.
"O artigo analisado é praticamente idêntico ao da Olimpíada, e a
decisão não restringe o direito à liberdade de expressão, pelo contrário,
protege a liberdade de expressão e de manifestação, impedindo aquilo que a
nossa Constituição já impede, ou seja, racismo e xenofobia. Então, nesse
sentido, o 'fora Temer' e o 'fora Dilma' não seriam conteúdos ofensivos, mas
manifestações políticas", conclui a professora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário