28
agosto 2016, Brasil 247 http://www.brasil247.com (Brasil)
Paulo
Moreira Leite
Jornalista e escritor, é diretor do 247 em
Brasília
Um exame frio da
mobilização permanente para processar e condenar Luiz Inácio Lula da Silva
mostra um fato essencial. Mesmo que se venha a provar, acima de qualquer
dúvida, que Lula é o verdadeiro proprietário do apartamento no Guarujá e do
sítio em Atibaia, denúncias que se tornaram a matéria prima para uma
perseguição que assume uma proporção escandalosa, resta uma questão básica e
intransponível.
Nas datas em que, segundo
a denúncia, as negociações com a empreiteira OAS teriam se realizado, Lula já
não era mais presidente de Republica. Três anos
antes, em 1 de janeiro de 2011,
ele havia passado a faixa a Dilma e desde então não ocupava nenhum cargo
público, o que elimina qualquer possibilidade de que possa vir a ser condenado
por corrupção passiva, como pretende a Polícia Federal. Era um cidadão privado,
com direito a ganhar a vida e reforçar o patrimônio da melhor maneira possível
-- respeitando obrigações que valem para o cidadão comum, e não para chefes de
Estado.
Não sou em quem diz isso.
Nem os advogados de Lula. Mas uma jurisprudência nascida no final do governo
Fernando Henrique Cardoso, com a colaboração do procurador Rodrigo Janot.
Em novembro de 2002,
soube-se que no apagar das luzes de seu governo Fernando Henrique Cardoso
havia promovido um alegre jantar no Palácio da Alvorada, onde recolheu R$
7 milhões entre empresários presentes para montar o Instituto que leva seu
nome. (Em valores de hoje, seriam aproximadamente R$ 14 milhões).
Ali estavam executivos e acionistas da Odebrecht, da Camargo Correa, do
Bradesco, entre outros grupos econômicos. "Boa parte deles termina a era
FHC melhor do que terminou," assinala com malícia o texto da revista Época
sobre o evento, que levou o título "FHC passa o chapéu." A
notícia não causou maiores alvoroços, porém.
Isso porque Geraldo
Brindeiro, leal Procurador Geral da Republica que FHC manteve por oito anos no
posto, não tomou conhecimento do caso. A Polícia Federal, entregue a homens de
confiança do PSDB, também não achou necessário abrir inquérito. Procurado por
Gerson Camarotti, então repórter da revista, o procurador Rodrigo Janot, que na
década seguinte se tornaria PGR, abençoou esse comportamento. Esclareceu que
não via nenhuma ilegalidade na coleta daquela fortuna entre empreiteiros que
tinham participado de grandes investimentos no governo do PSDB.
-- Fernando Henrique
Cardoso está tratando de seu futuro e não de seu presente, explicou Janot. O
problema seria se o presidente tivesse chamado empresários ao Palácio da
Alvorada para pedir doações de favores e benefícios concedidos pelo atual
governo.
O aspecto didático deste caso
é insubstituível.
Desde a AP 470, o chamado
Mensalão, o caráter seletivo das investigações que envolvem políticos
brasileiros tornou-se uma evidência tão cristalina que, 2013, quando tomou
posse como PGR, Janot incluiu uma referência obrigatória no discurso: "Pau
que bate em Chico bate em Francisco."
No Brasil de 2016, cabe
perguntar quantos apartamentos no Guarujá e quantos sítios de Atibaia cabem na
bolada que, conforme a delação premiada do executivo Leo Pinheiro, da OAS, foi
entregue ao comando do PSDB paulista, divulgada pela VEJA. Geraldo
Alckmin era governador de Estado e foi candidato a presidente da República,
entre 2004 e 2007, quando as obras do lote 5 do Rodoanel rendiam 5% de
"vantagens indevidas."
José Serra assumiu o lugar
e fez campanha para o goveno de Estado em 2006.
Empossado, as
"vantagens indevidas" seguiram seu curso, ainda que tenham sido
reduzidas para 0,75%, segundo Leo Pinheiro. O detalhe é que tanto Alckmin como
Serra, naquela ocasião, eram autoridades públicas, com responsabilidade pela
defesa da lei, da ordem -- e do orçamento.
Em 2009, uma auditoria
realizada no conjunto de todos os lotes do Rodoanel apontou para um
superfaturamento de de RS 184,4 milhões. Olha a curiosa coincidência.
Considerando que o valor dos cinco lotes do Rodoanel atingia R$ 3,4 bilhões,
essa soma equivale aos célebres 5% da denúncia de Leo Pinheiro.
Já em Minas Gerais, disse
o executivo da OAS, um intermediário de Aécio Neves recebeu 3% de propina pela
construção do Centro Administrativo do governo de Minas. Faça as contas: o
valor da obra foi de R$ 1,5 bilhão, a maior do governo do Estado em muitos
anos. Sobraram perto de R$ 50 milhões para o amigo de Aécio.
A grandeza e a natureza
desses recursos deveria ser suficiente para definir prioridades no trabalho de
qualquer autoridade profissionalmente obrigada a investigar e esclarecer
denúncias, ainda mais desse valor.
O tratamento
diferenciado na AP 470 e ao mensalão PSDB-MG aponta na direção oposta, porém.
Enquanto os condenados pelo PT já cumpriram pena e até começam a deixar a
prisão, os acusados do PSDB encontram-se em fase de recursos jurídicos --
aqueles instrumentos legais que, em processo contra petistas, costumam
ser chamados de chicanas, manobras e até tentativa de obstruir a Justiça.
A denuncia de um
tratamento diferenciado não se destina a justificar um erro pelo outro. A
discussão aqui é política.
Reconhecer sua existência
é o ponto de partida para compreender que estamos num caso de perseguição
política, numa ação orientada para atingir alvos definidos e poupar
outros.
Essa situação foi
escancarada em reportagem de Julia Duailibi, publicada no Estado de S.
Paulo, em novembro de 2014. Revelou-se, ali, que as investigações da Lava Jato
são conduzidas por um núcleo de delegados com motivação política clara,
chegando a participar de grupos do Facebook onde a palavra de origem mais
republicana pedia "fora Dilma", ali retratada com dentes vampirescos.
Neste ambiente, Marcio Ancelmo, o delegado que indiciou Lula na Lava Jato,
refere-se ao ex-presidente como "essa Anta."
Neste ponto a perseguição
a Lula revela-se como o evento decisivo da nova situação política criada pelo
afastamento de Dilma, a ser confirmada ou rejeitada nos próximos dias.
Está claro que, ao lado do
golpe contra Dilma, o esforço para excluir Lula da cena política, seja pelo
caminho que for, envolve uma operação destinada a encerrar o mais amplo e
prolongado regime de liberdades de nossa história republicada e reconstruir o
Brasil que todos conhecem desde a chegada de Cabral às terras de Santa Cruz.
A luta pelos direitos dos
trabalhadores e pelas liberdades que Lula liderou no final da
década 1970, ainda sob o regime militar, foi a pedra fundamental de uma
democracia que garantiu um regime de direitos e benefícios aos trabalhadores e
aos mais pobres, referendado pela Constituição de 1988 e ampliado pelos
governos conduzidos pelo PT a partir de 2003. Nunca, em nenhum momento, os
brasileiros e brasileiros das camadas antes chamadas de subalternas conseguiram
ser ouvidas de verdade em assuntos do Estado, ainda que em várias ocasiões não
tenham sido atendidas e até ignoradas.
Além do progresso
material, receberam um tratamento político respeitoso, base para uma
postura de dignidade e consciência de direitos até então desconhecida.
Neste caminho, "o
golpe ou no mínimo farsa" de 2016, como escreveu Le Monde, se
aproxima do golpe de 1964 através para uma linha comum.
Calculando que a saída de
Dilma é fato consumado, a articulação encaminha a batalha histórica e
decisiva, Anti-Lula, sem a qual não conseguirá fechar um ciclo
histórico. Aqueles que enxergam Lula em 2018 convém manter prudência com
cálculos otimistas. Ninguém pode garantir qual tipo de eleição teremos dentro
de dois anos. Para eleger quem? Para fazer o que?
Há uma luta difícil até
lá, a ser resolvida pela mobilização popular e pela resistência das camadas
exploradas da população.
No esforço contra
1978-1988-2003, a necessidade de cercar e ameaçar a principal liderança popular
da história do país cumpre uma função ao mesmo tempo óbvia e essencial.
Enquanto mantiver direitos
políticos na plenitude, Lula será a uma peça única no atual ambiente político.
Isso porque seu reconhecimento popular é o principal fator de desmoralização de
projetos que pretendem acabar com eleições diretas através de um regime
parlamentarista, rejeitado por dois plebiscito em pouco mais de 50 anos.
Também é a principal força
de resistência contra medidas de arrocho e destruição de direitos sociais e
projetos econômicos que podem assegurar alguma autonomia aos brasileiros para
decidir seu próprio destino.
A questão, não custa
lembrar, são os direitos do povo, que se pretende quebrar.
Não custa lembrar que os
diálogo decisivos para a vitória dos conspiradores civis e militares que em
1964 construiram uma ditadura de 21 anos envolveu o lugar dos trabalhadores na
ordem política do novo regime. Este era o ponto essencial, como fica claro por
conversas travados nas horas decisivas. A questão, antes como hoje, é a renda,
a partilha da riqueza.
Num diálogo na hora mais
dramática, transcrito pelo historiador Jorge Ferreira em "João Goulart --
uma biografia" o ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, deu um
ultimato ao presidente pelo telefone: "Eu me disponho a garantí-lo na
presidência da República se houver de sua parte uma declaração rompendo com o
Comando Geral dos Trabalhadores."
Com pequenas alterações no
texto, conversas de teor semelhante foram travadas na época,
inclusive pelo comandante do II Exército -- abrigo das tropas importantes
estacionadas em São Paulo -- Amaury Kruel. A este a posteridade reservou uma
ironia única a respeito de investigações seletivas sobre uma conspiração
que pretendia combater a "subversão e a corrupção."
Conforme o Major Erimá
Pinheiro Moreira, que serviu sob o comando de Kruel, na passagem da lealdade a
Jango à traição o general recebeu duas malas carregadas de dólares. Verdade?
Mentira? Impossível saber. Situando-se no lado conveniente do mundo dos vivos,
Kruel, falecido em 1996, também teve direito a investigações seletivas,
inclusive pela posteridade.
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