terça-feira, 30 de agosto de 2016

Brasil/TIRADENTES, DILMA NO SENADO E A NOSSA ESPERANÇA

30 agosto 2016, Resistência http://www.resistencia.cc

Por Wevergton Brito Lima*

Existem momentos históricos que só ganham este status depois de passados muitos anos. A execução, em 21 de abril de 1792, de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, por exemplo, só passou a ter a dimensão merecida várias décadas depois. Hoje, chega-se ao ponto de uma tal unanimidade em relação a ele que até mesmo um Silvério dos Reis moderno como José Serra considera o alferes um herói da independência. Hipocrisias como esta do Serra não deixam de ser uma vitória (ainda que tardia) do heroísmo sobre a perfídia.

Os que assistiram a execução de Tiradentes, no Rio de Janeiro, no entanto, presenciaram discursos onde se louvava a “misericórdia” de “Nossa Senhora Rainha Dona Maria I”, que não condenou o réu a uma “morte cruel” ou “atroz”, mas apenas a que “com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica, aonde em lugar mais público dela será pregada, em um
poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregado em postes pelo caminho de Minas no sítio da Varginha e das Cebolas, aonde o Réu teve as suas infames práticas, e os mais nos sítios de maiores povoações até que o tempo também os consuma; declaram o Réu infame, e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens aplicam para o Fisco e a Câmara Real, e a casa em que vivia em Vila Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique” (texto da sentença). Como se vê, era um doce a tal de Maria I (também alcunhada Maria a Louca, ou Maria a Piedosa).

Por incrível que pareça, a pena de Tiradentes podia sim ser considerada branda pelos padrões da época, se comparada ao que o pai de Dona Maria I, João I, impôs aos Távoras, família nobre de Portugal acusada de atentar contra a vida do Rei, 34 anos antes da execução de Tiradentes. Os condenados foram torturados diante de uma multidão. O Rei obrigou toda a corte a assistir, como lição prévia caso alguém pensasse em se rebelar. Os infelizes condenados tiveram, entre outros suplícios, pernas e braços quebrados antes de serem decapitados e terem os corpos queimados. A tortura inclusive foi abundantemente usada durante o processo que terminou com o massacre público de 18 pessoas, entre eles Dom Francisco de Assis de Távora (Marquês de Távora), Dona Leonor (Marquesa de Távora), José Maria de Távora e Luís Bernardo de Távora (filhos dos Marqueses de Távora), Dom José de Mascarenhas (Duque de Aveiro), Dom Jerónimo de Ataíde (Conde de Atouguia).

Anos depois a família Távora, durante a regência da Maria Louca, foi considerada inocente e o que restou dela foi reabilitada.

Bom, tudo isso é pra dizer que muita gente realmente considerava a Rainha Dona Maria I piedosa, pois ela, afinal, só mandava enforcar, decapitar e esquartejar os rebeldes, além de condenar filhos e netos à infâmia, entre outros detalhes, sem no entanto torturá-los em público, ou seja, uma coisa bem civilizada (como o Bolsonaro iria se sentir confortável neste tempo!).

Mas enfim, Tiradentes morreu e hoje é herói nacional embora na praça lotada, no momento de sua execução, a imensa maioria tenha aplaudido o castigo ao homem que faltou ao dever de vassalo e católico (nas palavras da sentença) ao lutar pela independência de sua terra. Embora seja verdade também que uma ou outra pessoa tenha chorado sua morte que, por fim, despertou consciências e serviu como poderoso símbolo da identidade nacional. Frei Raimundo Penaforte, seu confessor, escreveu o seguinte sobre Tiradentes:

“Foi um daqueles indivíduos da espécie humana, que põem em espanto a própria natureza. Entusiasta, empreendedor com o fogo de um D. Quixote, habilidoso com um desinteresse filosófico, afoito e destemido, sem prudência às vezes, em outras temeroso ao cair de uma folha; mas o seu coração era sensível ao bem. A Coroa quisera, com o espetáculo do enforcamento, afirmar o seu domínio sobre a colônia brasileira. Tiradentes tentara, com o sacrifício, salvar os companheiros e abrir ao povo o caminho da emancipação política. Um espírito inquieto, um homem leal, esse Alferes Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha Tiradentes. Herói sem medo de todo um povo”.

172 anos depois da morte de Tiradentes, em um mês de abril de 1964, um golpe militar, articulado e apoiado pelo império da era moderna e tramado em surdina com os Silvérios dos Reios de então, mergulha o Brasil na barbárie da ditadura militar, com tropas nas ruas, tortura e assassinato de opositores.

Pouco mais de 30 anos depois da derrota da ditadura militar, novo golpe, mas desta vez com um tosco verniz de legalidade.

Assim como o Silvério dos Reis original, que entregou seu companheiros em uma delação premiada, seus congêneres atuais usam dos mesmos expedientes.

A virulência que contaminou e insuflou o que há de pior nas elites e nas camadas médias que sonham em ser elite no Brasil atual é como o sal a tornar infértil a casa de Tiradentes, era como a infâmia aos seus descendentes.

Dilma Rousseff foi vítima de uma diária, feroz e histérica onda de ódio insuflada pela mesma mídia que apoiou o golpe de 1964.

A primeira mulher presidenta da República, com quase 70 anos de idade, foi xingada de tudo, com os palavrões mais baixos e vulgares que se possa imaginar, revelando o caráter de quem os proferia. Mesmo em missão no exterior ela foi ofendida e vilipendiada, sem que contra ela pesasse qualquer acusação de corrupção, como as que constam nos currículos de 90% dos parlamentares que lideram o golpe.

O ódio mobilizou multidões onde a exaltação da tortura e o pedido de novo golpe militar era, se bem que minoritário, recorrente, e o que na verdade cresce a olhos vistos são fenômenos e lideranças de matizes neofascistas.

A hipócrita liturgia que rege o golpe atual, com seus salamaleques e fingida civilidade, não diminui em nada sua essência obscurantista, reacionária e de traição nacional.

Mas, como em outros momentos da história do Brasil, quando a hora crucial chega, revelam-se homens e mulheres à altura do combate.

A postura da presidenta Dilma Rousseff nesta segunda-feira (29), diante de um senado onde a grande maioria é de inquisidores golpistas, já garantiu seu lugar na história.

Confrontada com a mentira, a vilania e a covardia, reagiu com a verdade, o destemor e a dignidade. Incrível a coragem desta mulher!

A avó Dilma Rousseff repetiu a história da jovem Dilma Rousseff, quando na ditadura, tendo sofrido torturas e com risco de ser assassinada, aparece no tribunal fascista de cabeça erguida e são os verdugos que, temerosos, escondem seus rostos. Dilma não honrou apenas sua história, mas a história de sua geração.

Seus argumentos, sua postura, sua altivez, entretanto, muito provavelmente não serão suficientes para reverter o resultado já transacionado.

O golpe, já está comprado e pago. Como bem disse o senador Lindberg Farias, o Senado se erigiu em um tribunal de exceção, onde provas nada valem. Deve prevalecer portanto, “a pena de morte política” que o impeachment, nas palavras da Dilma, representa, o que não significa, como ela mesmo salientou, que ela deixará de lutar.

Uma das coisas mais graves, nisso tudo, é que uma importante parcela dos trabalhadores, os que mais sofrerão com o golpe, está ainda alienada deste debate, pois o cerco midiático tenta de todas as formas sufocar a verdade, de resto já sobejamente conhecida no mundo inteiro. E da mesma forma que um escravo talvez tenha dito “bem feito” à execução de Tiradentes – que além de patriota era um abolicionista – muito trabalhador hoje, contaminado pelo monopólio midiático, está acompanhando com satisfação o golpe se consumar. No entanto, creio que a simbologia deste dia 29/8/2016 vai precisar de tempo para alcançar toda sua dimensão, o seu impacto e finalmente suas consequências, mas não tenho dúvidas de seu valor histórico.

O que é necessário é que durante todo o tempo a mobilização contra o golpe e a sua denúncia sejam diuturnas. E o que nos dá esperança é que, ao contrário de 1792, hoje já tem muita gente nas ruas vaiando o carrasco.

* Jornalista, membro da Comissão de Política e Relações Internacionais do PCdoB 


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