quarta-feira, 24 de junho de 2015

JOAQUIM CHISSANO, EX-CHEFE DO ESTADO: Rejeitámos negociar com os portugueses de cá

Jornal Notícias http://www.jornalnoticias.co.mz (Moçambique)


Moçambique vai celebrar na quinta-feira 40 anos de proclamação da sua independência. O percurso para que esta fosse alcançada foi longo e, em muitas das suas etapas, sinuoso.

A heroicidade dos moçambicanos, que durante dez anos, até 1974, derrotaram os portugueses nos campos de batalha, é conhecida de diversas formas. Os livros de história, biografias, memórias e os depoimentos de muitos dos protagonistas, principalmente, revelam-nos os contornos da luta que permitiu que a 25 de Junho de 1975 o nosso país nascesse como nação. Um desses protagonistas é o antigo Presidente da República, Joaquim Chissano, a quem entrevistámos sobre o 40.º aniversário da independência nacional. Com Chissano falámos dos Acordos de Lusaka, o último grande passo para a proclamação da independência e concluídos entre a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e o Governo português a 7 de Setembro de 1974, as opções diplomáticas de Moçambique e a sua visão sobre o legado dos chefes de Estado que o nosso país teve neste percurso de quatro décadas. Eis, a seguir, alguns excertos da entrevista com o homem a quem os moçambicanos reconhecem principalmente como o obreiro da paz para o nosso país, em alusão ao final da guerra dos 16 anos que desestabilizou Moçambique até 1992:

NOTÍCIAS (Not)- Os Acordos de Lusaka foram uma espécie de “finalmente” para que Portugal reconhecesse o direito de Moçambique à autodeterminação. Sabemos que houve anteriormente iniciativas de diálogo que não resultaram devido à relutância do colonizador. Dessas, quais é que foram as mais marcantes até se chegar ao acordo?

Joaquim Chissano (JC)- Vou aproveitar esta ocasião para recuar um pouco, não muito, no tempo. Devo dizer que desde os anos 70, nos princípios, estava claro que o povo moçambicano estava a conquistar a sua independência. Isso era percetível por causa do avanço da luta armada, mas também pelo crescente apoio internacional que nós tínhamos, de tal ponto que nesses anos já a Frelimo era considerada mais ou menos como um governo de Moçambique independente. Daí todas honras que
eram prestadas a Samora Moisés Machel, nosso Presidente. Por onde passasse eram honras grandes, com tapete vermelho, guarda de honra, etc., porque o mundo, sobretudo em África, já se apercebia que a independência era um facto. Mas não só foi fora que se aperceberam da irreversibilidade da nossa independência. Houve internamente outros que se aperceberam, como pessoas representadas por Jorge Jardim (empresário e colonialista radical baseado na Beira), que iniciam contactos com o Governo da Zâmbia, mais precisamente com o Presidente Kaunda, para tentar pôr um freio ao avanço da luta armada, alegando que se podia constituir um movimento libertador no interior de Moçambique que iria fazer o diálogo, desde que a FRELIMO continuasse a abrandar as acções armadas. Isto significava uma negociação com as forças portuguesas de cá para criar uma espécie de Brasil, onde foram os próprios portugueses lá a se desligarem de Portugal e proclamarem a independência. Portanto, os portugueses de cá queriam uma independência controlada por eles e com uma ligação contínua com Portugal. Então, pretendem ter um encontro e tratar do assunto da maneira que queriam com o Governo da Zâmbia e com a FRELIMO. Mas como nós sabíamos que Jorge Jardim tinha uma ligação muito directa com o regime em Portugal, sobretudo com o Salazar naquela altura e depois continuou a ter com Marcello Caetano, nós informámos ao Presidente Kaunda de que pessoa se tratava o Jorge Jardim e que nós não nos recusávamos o diálogo com Portugal mas este tinha de ser entre Moçambique e o Governo português. Estou a falar de antes do 25 de Abril de 1974, mais concretamente entre 1972 e 1973. Nós exigímos que Jorge Jardim, se quisesse negociar connosco, nos apresentasse um mandato ou uma credencial do Governo português.

Nós só aceitávamos, portanto, negociar com o Governo português. Porque ele como moçambicano não precisava de negociar nada com outros moçambicanos no que à independência dizia respeito. Ele, querendo o bem de Moçambique, como queria deixar transparecer, que se juntasse ao movimento libertador ou que mobilizasse muitos brancos moçambicanos para se juntarem à luta de libertação nacional. À partida rejeitámos tratar de um assunto tão sério com um homem que conhecíamos muito bem, com as suas ligações e tendências políticas em relação ao regime colonial português e que queria exibir uma capa que não tinha, a capa de benfeitor que nem era. Então, criou-se mais ou menos uma espécie de confiança entre uma parte dos portugueses e o Presidente Kaunda…

Not -… qual é essa parte dos portugueses com que o Presidente Kaunda criou confiança?

JC- Foi com o grupo de Jorge Jardim mesmo e quiçá com outros portugueses que queriam uma independência fictícia para Moçambique, que queriam que o nosso país, a nossa pátria, fosse controlada em remote-control por eles e por Portugal. Ora, nós chegámos a trocar mensagens, através do Governo da Zâmbia, com Jorge Jardim, que não foi para frente porque ele não tinha nem foi capaz de ter um mandato do Governo português. Nós nunca nos encontrámos com ele face-a-face. Foi sempre através de um enviado e quem fazia esses contactos de intermediação era o Presidente Kaunda. E durante esse tempo também tínhamos informações que nos chegavam através dos nossos serviços (de inteligência, de que era responsável Joaquim Chissano), do descontentamento no seio das Forças Armadas portuguesas. Soubemos da criação de um movimento dos capitães que não viam com bons olhos a continuação da guerra e tinham descoberto que esta guerra era contra um povo que tem direito à independência. Portanto, não concordavam com a tese de que aqui, como em Angola e na Guiné, era uma província ultramarina de Portugal. Há este movimento que nós acompanhámos e evidentemente este movimento foi reforçado por causa da derrota do plano do general Kaúlza de Arriaga, o plano Nó Górdio (que prometera acabar com a guerrilha da FRELIMO). O movimento dos capitães reforçou a sua posição com a travessia das forças da FRELIMO para o sul do rio Zambeze e com operações que efectuámos já muito perto da Beira, nomeadamente em Gorongosa, por exemplo. O nosso avanço era imparável, pois íamos abrindo mais frentes e os portugueses já viam isso. Viam mais sobretudo porque os capitães estavam cada vez mais conscientes de que a luta para além de injusta seria inglória. Não teriam como vencer. Aliás, a guerra que Portugal moveu contra o povo moçambicano foi inglória…

Not -O avanço da FRELIMO e a tomada de consciência dos capitães foram a chave para que as conversações oficiais chegassem?

JC- Sim, foi. Sem dúvida. Continuando, sobre os contactos iniciais: há os contactos indirectos que aparecem através de Jorge Jardim; há um movimento dos capitães, com quem temos um certo contacto muito subtil…
Not -… como é que efectuam esses contactos com o movimento dos capitães?

JC- Através dos nossos serviços (de inteligência). Nós sabíamos que existia esse movimento dos capitães porque trabalhámos bem também essa componente. Não eram contactos oficiais com os capitães mas tínhamos essas informações porque soubemos buscá-las e mantê-las. Sabíamos do que estava a acontecer com os militares em Portugal e até em Timor-Leste, porque tínhamos lá colaboradores. Obviamente que não os vou identificar, por isso escuse-se de perguntar-me quem eram. Mas creio que um deles, de quem não me lembro do nome, depois da independência trabalhou directamente connosco aqui, nos nossos serviços de inteligência. Eu era chefe desses serviços durante a luta de libertação nacional, lembre-se. É assim que começam os nossos contactos. Depois dá-se o 25 de Abril (de 1974). E como nós acompanhávamos a informação, os acontecimentos, ficámos um pouco inquietos porque estávamos a pensar que haveria aí um golpe de mestre do general Spínola e das forças que o apoiaram na ideia de criar uma espécie de autonomia com as colónias para permanecer aquela ligação que muitos portugueses ainda queriam com as colónias. Víamos que ele não tinha um plano de autodeterminação e independência de Moçambique. Víamos que isso era muito mau porque poderia até desmobilizar o apoio da comunidade internacional que nós tínhamos. Então, nós tivemos de procurar formas de contactar as Forças Armadas que tinham feito o golpe. De uma maneira subtil enviámos pessoas para Portugal para irem ver qual era a situação e saber quem é e como passaria a ser o pensamento de Portugal em relação a nós.

Not -A quem infiltraram em Portugal em 1974?
JC- Aquino de Bragança, que para os portugueses era uma pessoa insuspeita, por à vista não ser moçambicano, mas que na verdade era moçambicano. Era goês, de facto, mas era moçambicano, era dos nossos. Jornalista e investigador que ele era, esteve lá e fez os contactos e trouxe-nos, com muita facilidade, as linhas de força. É assim que nós começámos a preparar um eventual encontro com uma delegação portuguesa. Quando os encontros começam nós já tínhamos feito todo o nosso trabalho de casa, incluindo simular as próprias conversações, em que alguns de nós faziam o papel da delegação portuguesa, com argumentos que pareciam fortes para nós ensaiarmos as respostas que daríamos em Lusaka caso elas nos fossem efectivamente colocadas. Isso era possível também porque tínhamos feito uma sondagem em Portugal das opiniões diversas sobre a nossa independência e sobre as pretensões dos políticos e da população portuguesa. É assim que estabelecemos uma posição, deixando claro o que não era negociável, que era a independência e a transferência de poderes do Governo colonial para o representante legítimo do povo moçambicano, que era a FRELIMO. Depois de muitas tentativas de quererem continuar a dominar o nosso país tínhamos a lição bem estudada. Muitas formas de dominação foram ensaiadas mas nós estivemos também atentos a isso e fizemos dos Acordos de Lusaka palco para que estivesse tudo claro em relação a quem era o legítimo representante do povo moçambicano. O Governo português enviou uma delegação que não estava mandatada a aceitar essa nossa posição. Portanto, a independência imediata, total e completa não foi entendida por essa delegação, que se assustou e pensava que a independência imediata significava saírem da mesa das negociações e a independência ser imediatamente proclamada.

Not -Durante a guerra e mesmo durante o período das conversações foram surgindo outros grupos, no interior de Moçambique, a pronunciarem-se sobre os moldes para o alcance da independência. Em Lusaka como é que se debateu este assunto?

JC- Bom, a delegação portuguesa vinha com a ideia de um referendo, em que dizia que se devia consultar vozes do interior de Moçambique sobre a questão da independência nacional. Os portugueses suscitaram o aparecimento de vários partidos, num país em que não se fazia política. É como se de repente, de um dia para o outro, os moçambicanos tenham passado a ter a liberdade política, de formarem partidos políticos, estes que surgiram como que cogumelos depois das chuvas em tempo quente numa floresta. Esses partidos naturalmente que não tinham nenhuma base nem tinham ou teriam um programa diferente e não estavam necessariamente ligados com algumas forças que no percurso da luta de libertação tentaram emergir, como é o caso da COREMO (de Adelino Guambe, líder da UDENAMO durante a fusão dos três movimentos que resultaram na Frente de Libertação de Moçambique). Voltando à sua questão, devo recordar que os grupos a que se refere resultam de tentativas de perpetuação da dominação a que me referi antes. Andaram aí a querer dizer, por exemplo, que havia uma FRELIMO de dentro e outra FRELIMO de fora, FRELIMO das armas e outra FRELIMO que não é das armas, etc. Não nos desviámos do nosso foco e mantivemos, em sede das negociações, que não havia nada a negociar no ponto em relação à independência e, portanto, a ideia de referendo morria ali mesmo, pois os partidos formados depois do 25 de Abril não representavam nada de nada que tivesse a ver com Moçambique. Os outros que durante a luta andaram a ser anunciados, principalmente por Adelino Guambe, não representavam a ninguém nem a nada. Tanto mais que morreram de morte natural. Foi a força de alguns portugueses de utilizar estes indivíduos para criar novos partidos para, por via deles, exigirem um referendo. Respondemos firmemente dizendo ao Governo português que não se pergunta a um escravo se ele quer ser livre, sobretudo se esse escravo já pegou em armas para conquistar a sua própria liberdade. A luta armada de libertação nacional e o apoio que a nossa causa tinha aqui e pelo mundo tornavam claro que o referendo estava feito. Aliás, isso ficou mais claro ainda quando o povo moçambicano, durante as próprias negociações, se pôs de pé a reclamar uma independência imediata em Maputo e noutros locais, o que deu aquela reacção violenta dos portugueses em 1974.

Not -Retenho uma afirmação, Senhor Presidente, em que disse que a delegação portuguesa não estava mandatada em relação a alguns assuntos. Gostaria que descrevesse um pouco o clima no decurso das negociações no que diz respeito à confiança entre as partes.

JC- Havia muita desconfiança da nossa parte. Isso porque quem estava a dirigir o Governo em Portugal era o general Spínola, um homem em quem nós não depositávamos nenhuma esperança nem confiança.
Not -Porquê?

JC- Porque ele tinha um plano, que foi tentado mesmo pelo general Costa Gomes, que era um bocado mais à esquerda. Costa Gomes veio a Moçambique tentar alimentar a ideia da FRELIMO de dentro e tentou enviar uma delegação para convencer a FRELIMO a parar com a guerra para que haja uma negociação de independência com a FRELIMO de dentro. O plano de Spínola não era ver Moçambique independente de forma total e completa. Desfizemos essas ideias porque as pessoas que eles enviaram compreenderam logo o que os portugueses pretendiam, pois já eram nacionalistas e juntaram-se a nós. Tínhamos a desconfiança, sim, mas apesar disso tínhamos de avançar. Só para descrever o cenário: em Lusaka tínhamos uma mesa, não a das conversações, mas aquela onde se encontrariam as negociações, em que as duas delegações quando entrassem tomavam um e outro lado da mesa. E então quando chegassem o Presidente Samora estenderia a mão para cumprimentar a contraparte ali atravessando a mesa. Mas Mário Soares (então Ministro dos Negócios Estrangeiros português), que certamente também já tinha ensaiado e tinha visto noutras negociações, ele que é socialista, deu a volta à mesa, ignorando o formal estender da mão do Presidente Samora e disse: o que é isso? Dá cá um abraço”. Ele estava com esse gesto a dizer que ele já não era um inimigo mas um camarada como nós. Então aí ele próprio procurou tornar leve o ambiente. Mas nós ficámos sempre atentos porque esse carinho podia ser uma maneira de nos levar a concluir facilmente que estávamos a seguir o mesmo objectivo quando na verdade podia não ser.

Not -Esse gesto de Mário Soares fez uma distensão efectiva no decurso de todas as negociações? Sei que as conversações foram interrompidas e a parte portuguesa teve de regressar a Lisboa antes de o acordo ser selado…

JC - Sim, voltaram porque não tinham todas as condições para negociar connosco. Voltando ao gesto do Mário Soares, o que foi bom com ele é que podíamos discordar dos pontos que discutíamos a sorrir. A importância do gesto de Mário Soares, que chefiava uma delegação que incluía alguns conhecidos nossos, como Otelo Saraiva de Carvalho, foi sabermos também dos limites do mandato que eles tinham nas questões que íamos abordar. Por isso nesse primeiro encontro só se deu tempo para a delegação portuguesa regressar a Lisboa e repensar e buscar novo mandato. Assim foi e quando regressaram, com novo mandato, já não era o Mário Soares a dirigir a delegação; era o Melo Antunes (ministro sem pasta no Governo de Spínola). Mas devo dizer que não foi logo de imediato. Entre este momento e os contactos iniciais houve muitos outros passos, como enviarmos o Aquino de Bragança a Lisboa, o Óscar Monteiro a outros lugares da Europa para se encontrar com delegações portuguesas. A partir desses contactos combinou-se um encontro com o Presidente Samora Machel em Dar-Es-Salaam, em que uma delegação, que incluía Mários Soares, conversou com ele. E à parte houve um outro encontro com os militares portugueses, com o Melo Antunes presente, que culminou com um segundo encontro em Dar-Es-Salaam, onde se tomaram decisões importantes que foram materializadas no âmbito dos Acordos de Lusaka. Isso já deu-se depois da tomada de Omar (Namatili), onde os soldados portugueses se renderam porque já não queriam combater. Portanto, a criação de confiança foi isso.

Not -O entendimento entre a FRELIMO e o Governo português em Lusaka trouxe ressentimentos em alguns sectores dos colonos, os chamados “ultra”, que criaram distúrbios em 1974 em Maputo. Ainda estavam em Lusaka quando chegaram as notícias. Qual foi a reacção da delegação da FRELIMO?
JC - Quando isso chegou a Lusaka a delegação portuguesa já tinha partido. Nós ainda estávamos lá e a nos preparar para abrir os champanhes com os jornalistas moçambicanos que cobriram as conversações, que já estavam a festejar connosco a vitória. Foi nessa altura que soubemos que a Rádio Moçambique (Rádio Clube na época) tinha sido tomada. Então dissemos aos jornalistas para continuarem com o champanhe, enquanto nós recolhíamos para resolver a situação, para nos informarmos melhor e traçarmos estratégias. Porque já as delegações estavam a caminho de Maputo (os portugueses) e para o norte do país (os da FRELIMO) para darem instruções sobre o cessar-fogo, que tinha de acontecer à 00.00 hora, com esta notícia mandou-se parar tudo. Apesar de os preparativos se terem mantido, o Presidente Machel conseguiu uma ligação telefónica com o general Spínola exigindo que este resolvesse o que se estava a passar em Maputo porque o que estava a acontecer, disse o Presidente Samora, correspondia ao plano de Spínola. Ele falou muito fortemente, dizendo a Spínola que ele era um colonialista e que nós não aceitávamos esse plano dele. O Spínola ficou ofendido e disse a Samora “eu não entendo a língua que o senhor está a falar”. O Presidente Samora disse-lhe bem alto que a língua se chamava Português. Obviamente que o Spínola ouvia e entendia.
  
Not -O que é que iria acontecer se não parassem os distúrbios em Maputo?

JC - O Presidente Samora deu um prazo de 24 horas para que o Spínola resolvesse a situação, sublinhando-lhe que os nossos homens ainda estavam de armas nas mãos e em todas as posições, pelo que o cessar-fogo podia ser interrompido e os combates continuariam. O Spínola prometeu fazer alguma coisa mas na verdade a coisa foi resolvida localmente pela população, que marchou com pedras e com mãos vazias, barricando carros, a caminho da rádio para repor a ordem. De qualquer modo se os portugueses não tratassem do assunto nós trataríamos com a continuação da nossa luta até conseguirmos o nosso objectivo, que era liberar esta terra e os seus filhos. (GIL FILIPE)

JOAQUIM CHISSANO, EX-CHEFE DO ESTADO: Rejeitámos negociar com os portugueses de cá (2.ª parte)


Rejeitámos negociar com os portugueses de cá (2.ª parte) – conta Joaquim Chissano, Ex-Chefe do Estado

Jornal Notícias http://www.jornalnoticias.co.mz (Moçambique)

Apresentação nesta edição a segunda e penúltima parte da entrevista em que o antigo Presidente da República Joaquim Chissano reflecte sobre algumas questões marcantes no percurso de 40 anos de Moçambique independente.

Joaquim Chissano, primeiro-ministro do Governo de Transição (que conforme os Acordos de Lusaka integrou quadros de Portugal e da FRELIMO), ministro dos Negócios Estrangeiros nos tempos de Samora Machel e Presidente da República de 1986 a 2004, aborda, nesta parte, a interacção entre representantes do Estado português e da FRELIMO durante o Governo de Transição e alguns contornos da diplomacia moçambicana desde a proclamação da independência.

Afirma, por exemplo, que os principais países ocidentais primeiro hesitaram em aceitar estabelecer relações diplomáticas com Moçambique, manifestando reservas em relação às opções políticas do Governo. Vai, nas linhas que se seguem, o diálogo com o antigo Chefe do Estado:

Not. - Retenho uma afirmação, senhor Presidente, em que disse que a delegação portuguesa às conversações de Lusaka não estava mandatada em relação a alguns assuntos. Mas gostaria que descrevesse um pouco o clima no decurso das negociações no que diz respeito à confiança entre as partes.

JC - Havia muita desconfiança da nossa parte. Isso porque quem estava a dirigir o Governo em Portugal era o general Spínola, um homem em quem nós não depositávamos nenhuma esperança nem confiança.

Not. -Porquê?

JC - Porque ele tinha um plano que foi tentado mesmo pelo general Costa Gomes, que era um bocado mais à esquerda. Costa Gomes veio a Moçambique tentar alimentar a ideia da FRELIMO de dentro e tentou enviar uma delegação para convencer a FRELIMO a parar com a guerra para que haja uma negociação da independência com a FRELIMO de dentro. O plano de Spínola não era ver Moçambique independente de forma total e completa. Desfizemos essas ideias porque as pessoas que eles enviaram compreenderam logo o que os portugueses pretendiam, pois já eram nacionalistas e juntaram-se a nós. Tínhamos a desconfiança, sim, mas apesar disso tínhamos de avançar. Só para descrever o cenário: em Lusaka tínhamos uma mesa, não a das conversações, mas aquela onde se encontrariam as negociações, em que as duas delegações quando entrassem tomavam um e outro lado da mesa. E então quando chegasse o Presidente Samora estenderia a mão para cumprimentar a contraparte ali atravessando a mesa. Mas Mário Soares (então ministro dos Negócios Estrangeiros português), que certamente também já tinha ensaiado e tinha visto noutras negociações, ele que é socialista, deu a volta à mesa, ignorando o formal estender da mão do Presidente Samora e disse: o que é isso? Dá cá um abraço”. Ele estava com esse gesto a dizer que ele já não era um inimigo, mas um camarada como nós. Então aí ele próprio procurou tornar leve o ambiente. Mas nós ficámos sempre atentos, porque esse carinho podia ser uma maneira de nos levar a concluir facilmente que estávamos a seguir o mesmo objectivo, quando na verdade podia não ser.

Not. - Esse gesto de Mário Soares fez uma distensão efectiva no decurso de todas as negociações? Sei que as conversações foram interrompidas e a parte portuguesa teve de regressar a Lisboa antes de o acordo ser selado…

JC - Sim, voltaram porque não tinham todas as condições para negociar connosco. Voltando ao gesto de Mário Soares, o que foi bom com ele é que podíamos discordar dos pontos que discutíamos a sorrir. A importância do gesto de Mário Soares, que chefiava uma delegação que incluía alguns conhecidos nossos, como Otelo Saraiva de Carvalho, foi sabermos também dos limites do mandato que eles tinham nas questões que íamos abordar. Por isso, nesse primeiro encontro só se deu tempo para a delegação portuguesa regressar a Lisboa e repensar e buscar novo mandato. Assim foi e quando regressaram, com novo mandato, já não era Mário Soares a dirigir a delegação; era o Melo Antunes (ministro sem pasta no Governo de Spínola). Mas devo dizer que não foi logo de imediato. Entre este momento e os contactos iniciais houve muitos outros passos, como enviarmos o Aquino de Bragança a Lisboa, o Óscar Monteiro a outros lugares da Europa para se encontrar com delegações portuguesas. A partir desses contactos combinou-se um encontro com o Presidente Samora Machel em Dar-Es-Salaam, em que uma delegação, que incluía Mários Soares, conversou com ele. E à parte houve um outro encontro com os militares portugueses, com Melo Antunes presente, que culminou com um segundo encontro em Dar-Es-Salaam, onde se tomaram decisões importantes que foram materializadas no âmbito dos Acordos de Lusaka. Isso já se deu depois da tomada de Omar (Namatil), onde os soldados portugueses se renderam porque já não queriam combater. Portanto, a criação de confiança foi isso.

Not. - O entendimento entre a FRELIMO e o Governo português em Lusaka trouxe ressentimentos em alguns sectores dos colonos, os chamados “ultra”, que criaram distúrbios em 1974 em Maputo. Ainda estavam em Lusaka quando chegaram as notícias. Qual foi a reacção da delegação da FRELIMO?

JC - Quando isso chegou a Lusaka a delegação portuguesa já tinha partido. Nós ainda estávamos lá e a prepararmo-nos para abrir os champanhes com os jornalistas moçambicanos que cobriram as conversações, que já estavam a festejar connosco a vitória. Foi nessa altura que soubemos que a Rádio Moçambique (Rádio Clube na época) tinha sido tomada. Então dissemos aos jornalistas para continuarem com o champanhe, enquanto nós recolhíamos para resolver a situação, para nos informarmos melhor e traçarmos estratégias. Porque já as delegações estavam a caminho de Maputo (os portugueses) e para o norte do país (os da FRELIMO) para darem instruções sobre o cessar-fogo que tinha de acontecer à 00.00 hora, com esta notícia mandou-se parar tudo. Apesar de os preparativos se terem mantido, o Presidente Machel conseguiu uma ligação telefónica com o general Spínola exigindo que este resolvesse o que se estava a passar em Maputo, porque o que estava a acontecer, disse o Presidente Samora, correspondia ao plano de Spínola. Ele falou bastante, dizendo a Spínola que ele era um colonialista e que nós não aceitávamos esse plano dele. O Spínola ficou ofendido e disse a Samora “eu não entendo a língua que o senhor está a falar”. O Presidente Samora disse-lhe bem alto que a língua se chamava Português. Obviamente que Spínola ouvia e entendia. 

Not. - O que é que iria acontecer se não parassem os distúrbios em Maputo?

JC - O Presidente Samora deu um prazo de 24 horas para que o Spínola resolvesse a situação, sublinhando-lhe que os nossos homens ainda estavam de armas nas mãos e em todas as posições, pelo que o cessar-fogo podia ser interrompido e os combates continuariam. Spínola prometeu fazer alguma coisa, mas na verdade a coisa foi resolvida localmente pela população, que marchou com pedras e com mãos vazias, barricando carros a caminho da rádio para repor a ordem. De qualquer modo se os portugueses não tratassem do assunto nós trataríamos com a continuação da nossa luta até conseguirmos o nosso objectivo que era liberar esta terra e os seus filhos.

Not. - Integrou o Governo de Transição, saído no âmbito dos Acordos de Lusaka, e teve que lidar diariamente, no período que faltava para a proclamação da independência, com antigos inimigos. Com a composição do Governo de Transição, em que estavam nele guerrilheiros acabados de vencer no campo de batalha e senhores de um país por tantas décadas, não havia fricções ou animosidades no seio desse Governo?

JC - Na verdade o Governo de Transição funcionou lindamente, posso assim dizer.

Not. - Estava à espera disso? Foi o primeiro-ministro do Governo de Transição…
Estávamos à espera que assim fosse, sim, por causa do espírito de Lusaka, em que se criou aquela confiança a que me referi. Entendemo-nos porque o papel de cada um estava claro e os interesses de cada uma das partes estavam também claros. Da parte portuguesa, por exemplo, o alto-comissário tinha como papel zelar pelos interesses do Estado português e dar confiança à população portuguesa que ainda estava no país e representar Moçambique no plano exterior. Isso acontece uma vez que nós ainda não éramos um Estado reconhecido, pelo menos do ponto de vista formal, podemos assim dizer, porque a independência ainda não tinha sido proclamada. Portanto, tudo que era assunto internacional tinha que passar pelo alto-comissário e assim foi. Evidentemente que havia de consultar o Governo de Transição antes de tomar alguma decisão. Trabalhámos bem em tudo. Posso citar até um exemplo que parece pequeno mas significativo que é o da retirada das tropas portuguesas, que ainda cá estavam, dos seus equipamentos, em que negociámos aquilo que devia ficar aqui e o que eles podiam levar. Havia coisas que não podiam levar, como paióis, hangares, quartéis, enfim as infra-estruturas…

Not. - … e depois veio o 25 de Junho de 1975, senhor Presidente. Um dos grandes desafios que o novo país teve no campo diplomático, depois de a independência ter sido conquistada num contexto da Guerra Fria, em que o movimento de libertação, praticamente, já se tinha definido ideologicamente e ao mesmo tempo houve muita propaganda negativa contra a FRELIMO primeiro e contra o Estado moçambicano depois. Como é que se conseguiu colocar as pedras no tabuleiro e estabelecer relações com alguns países…

JC -… com os Estados Unidos, é isso?

Not. - Estados Unidos e outros de visão ideológica antagónica ou aparentemente antagónica.

JC - Foi fácil em termos de princípios. Declarámos os nossos princípios mesmo na nossa constituição, em que dissemos claramente que a nossa política era fazer amigos com todos os países e que não havíamos de dar privilégios, seja a que país fosse e trataríamos todos por igual dentro do grande conceito de igualdade entre os Estados. Queríamos cooperação, porque reconhecíamos que nenhum país podia viver só em si. A independência significava o relacionamento com outros países dentro da sua independência. Portanto, a cooperação exigia independência e é essa a política que nós levámos a cabo e convidámos todos os países. No dia da proclamação da independência, o acto que se seguiu à tarde foi o de receber credenciais (diplomáticas). Há países que hesitaram, que não quiseram, pelo menos naquela altura, entregar credenciais imediatamente, como é o caso de grandes países ocidentais. Inglaterra, Estados Unidos da América e RFA (a antiga Alemanha Ocidental no contexto da divisão da Alemanha após a II Guerra Mundial), por exemplo, não apresentaram credenciais.

Not. - Estes países foram convidados e estiveram representados na proclamação da independência?

JC - Foram convidados e vieram. Tinham consulados aqui e estiveram. Portanto, não houve nessa altura estabelecimento de relações diplomáticas com esses países e com alguns deles as coisas arrastaram-se por muito tempo. Como ministro dos Negócios Estrangeiros a minha tarefa foi insistir em convidá-los. Primeiro queriam saber qual é a política que Moçambique ia seguir, porque pensavam que nós seguiríamos a União Soviética e que se assim fosse seríamos controlados pela União Soviética, etc., e por isso eles tinham que estudar as suas estratégias. Então essa era nossa tarefa no Ministério dos Negócios Estrangeiros, convencer esses países que o que nós queríamos era a amizade e que esquecíamos aquela cooperação que eles tinham com o Governo português durante a nossa luta armada de libertação nacional e que não interferiríamos na relação que eles continuavam a ter com o Governo português em assuntos que não nos diziam respeito, como é a questão daquela base nos Açores (base das Lages), que era um assunto entre o Governo português e os Estados Unidos. E de facto esse não era nosso problema e só seria se mexesse com a nossa independência. Nem a base nos Açores nem as bases soviéticas no Oceano Índico eram nosso assunto, apesar de que nós apoiávamos a desmilitarização do Oceano Índico. Estávamos preocupados em desenvolver relações bilaterais e quiçá através dessas relações bilaterais podíamos contribuir de forma construtiva para assuntos que dizem respeito às relações globais. Contudo, mais tarde todos os que hesitaram vieram ter e estabeleceram relações diplomáticas connosco.

Not. - É neste contexto que o Governo de Moçambique conseguiu, estava o senhor na Presidência, mais recentemente, estabelecer relações diplomáticas com Israel, por exemplo? Israel é arqui-inimigo de um amigo de Moçambique, a Palestina, que tem com Moçambique uma amizade nascida da política de solidariedade activa que o Presidente Samora pôs em prática…

JC - Não, não! Foi no contexto de que nós queríamos ser amigos de todos. Mas no caso de Israel nós não cooperávamos, enquanto não se reconhecesse a Palestina. Portanto, era preciso que houvesse reconhecimento da Palestina por parte de Israel. Foi na altura em que as duas partes chegaram a um acordo de mútuo respeito, ainda no tempo de Arafat (Yasser Arafat, falecido presidente da Autoridade Palestina). Então, houve um certo entendimento entre a Palestina e Israel e então nós decidimos acolher aqui uma embaixada da Palestina, que até hoje está cá. É por causa desse reconhecimento. É como aconteceria com as Coreias. Como as duas partes são internacionalmente reconhecidas pelas Nações Unidas, cooperámos com ambos. A questão de Israel pode ser tida como diferente por causa de avanços e recuos na busca de soluções entre as duas partes, mas há um reconhecimento mútuo em que existe uma Autoridade Palestina e um Governo de Israel que se inter-relacionam no que lhes diz respeito. Foi nessa altura que nós aceitámos que pudéssemos ter relações com Israel. Aliás, depois de Camp Davids, em que os egípcios e os americanos se reuniram para o desanuviamento das tensões naquela zona nós continuámos a apoiar a causa palestina.

Not. - Num contexto como o actual, em que as alianças ideológicas têm pouco peso na relação entre os Estados, qual é o rumo que o Estado moçambicano deve tomar no contexto diplomático.

JC - Nós devemos tomar, conservar e continuar a seguir aquele espírito de neutralidade e não alinhamento que nos caracterizou sempre e caracterizou igualmente os países africanos de uma forma ampla. Portanto, definimo-nos como não-alinhados em relação ao bloco do leste ou o bloco do oeste. Hoje nós não facilitaríamos a recriação de blocos ideológicos, pois cada povo deve desenvolver a sua própria ideologia mesmo que empreste princípios de ideologias que existiram outrora. Por exemplo, eu continuo a acreditar no socialismo na forma, embora pense que o socialismo não se possa aplicar de uma vez. Podemos ter formas capitalistas de governação ao mesmo tempo que nós resolvemos os problemas sociais que são os problemas de trazer maior igualdade, maior inclusão, etc., etc. Eu até costumo dizer que há coisas do socialismo que são praticadas mais rápido pelo capitalismo. No capitalismo também se tem tratado de problemas relativos ao trabalho, as lutas dos movimentos sindicais e os problemas resolveram-se quando os países socialistas queriam resolver de uma outra maneira, de uma outra via. (GIL FILIPE)


JOAQUIM CHISSANO, EX-CHEFE DO ESTADO: Rejeitámos negociar com os portugueses de cá (Conclusão)

Jornal Notícias http://www.jornalnoticias.co.mz (Moçambique)

O antigo Presidente da República Joaquim Chissano afirma que a Renamo deverá depor as armas e optar pelo debate político para condizer com a postura de um partido político, por ela se achar democrática.

Faz entender ainda que aquela formação tem seus membros em vários sectores do Estado, mas que não se revelam porque a Renamo o acha assim conveniente, daí não ser verdadeira – diz Chissano – a tese da exclusão que Afonso Dhlakama defende. Nesta conclusão da entrevista com o estadista, o homem que governou Moçambique por 18 anos até Janeiro de 2005, assevera que para além da paz o seu projecto de governação contemplava a criação de bases para que o país desse passos firmes rumo ao desenvolvimento. Joaquim Chissano aborda também alguns dos feitos do seu tempo de Presidente e elogia a entrega do seu sucessor, Armando Guebuza, sobretudo na construção de infra-estruturas e revela esperança no actual Chefe do Estado, Filipe Nyusi, a quem augura continuidade na edificação do país. Eis, nas linhas que se seguem, o último terço da entrevista:

NOT.– Um dos legados que deixou foi a estabilidade do país, estabilidade no sentido de que a Renamo, com quem negociou e assinou o Acordo Geral de Paz em 1992, já não matava. Olhando para as coisas hoje, esta Renamo voltou aos disparos. Há algo que faria, se estivesse no activo, de modo a que esta Renamo não ameaçasse a paz e a estabilidade dos moçambicanos?

JC –Bom, é difícil responder a isso porque se eu recuasse devia ver o ponto à maneira do como estamos hoje. Mas se recuássemos talvez eu procurasse no seio dos membros da Renamo pessoas mais sensatas, com as quais nós pudéssemos colaborar para concretizar essa inclusão que eles acham que não existe. Para mim, não é inclusão pegar em alguém só por ser da Renamo para integrar em qualquer estrutura, qualquer empresa, etc. Olharia apenas para indivíduos idóneos, sensatos e responsáveis e então trabalhar com eles. Há muita gente da Renamo agora que foi para a escola, para as universidades, ensino técnico-profissional, etc., que pegaria e trabalharia com eles de propósito que é para ficar claro que temos estas pessoas. Eu creio que no aparelho do Estado há de haver muitos, tal como nas instituições públicas há de haver muitos que não são da Frelimo e que estão a trabalhar, mas que fazem questão de ficar calados para continuarem a dizer que a Frelimo discrimina e que só leva gente da Frelimo. Aliás, nós fizemos isso em duas ocasiões no meu tempo, em que nomeámos um director de uma empresa pública que é os Correios de Moçambique, que era da Renamo, e nós sabíamos muito bem que ele era da Renamo. Não pedimos que ele deixasse de ser da Renamo, porque sabíamos que ele tinha idoneidade e competência. Depois, eu pedi a um dirigente quase da Renamo para ocupar um cargo no Conselho Superior da Magistratura Judicial, tendo a direcção da Renamo o impedido de tomar esse lugar e mais tarde pedimos ao doutor Arouca, que também era da oposição, e ele aceitou. Portanto, hoje talvez pudéssemos olhar para as hostes da Renamo e ver pessoas com capacidade e idoneidade para que quando chegassem a esse lugar não representassem os interesses do partido, tal como nós exigimos aos nossos próprios membros quando os nomeamos para esses cargos. Nos postos de trabalho as pessoas não representam os interesses do partido Frelimo, mas os do Estado moçambicano. Se eu cometer um crime, o que o ministro do Interior tem que fazer é cumprir a lei e não olhar para mim como presidente honorário do partido Frelimo, porque ele representa os interesses do Estado. Então, queríamos que as pessoas da Renamo, que viessem da Renamo, do MDM ou de qualquer outra força política, se viessem a ocupar cargos públicos, que o fizessem com sentido de Estado e não de partido.

NOT. –Uma das chaves para o comportamento da Renamo hoje é o facto de ela ter armas e ser, portanto, para além de política, uma organização militar. O Presidente Chissano tentou desarmar a Renamo e não conseguiu. Tem alguma espécie de ressentimento por isso?

JC – Bom, estava claro que não era possível desarmar a Renamo de uma sentada, porque ou nós cegamente utilizaríamos a força, tentando desarmá-los à força, o que havia de criar uma luta e a luta passava por cima do povo ou optaríamos por ser racionais, como tentamos ser. Morreria muita gente, sobretudo porque a Renamo usa sempre uma táctica que faz sofrer o povo. Se forem a reparar, a Renamo não marcha contra quartéis e tal sem passar pela população. Cria sempre terror e intimidação, através de matanças à população. Aliás, faz isso para alguém lhe ver e ir a correr agarrar-lhe os braços e pedir para não fazer isso e ele ganhar o seu valor…

NOT -… o senhor Presidente fez isso?

JC –Não! Eu não! Mas alguém de fora que chega lá como que a olhar para uma criança com um facho de fogo na mão e a rogar à criança para não brincar com o fogo. É assim que se comporta a Renamo, é assim que ela se sente viva. Delegações estrangeiras vêm e fazem isso e aí ela se sente importante. Se a Renamo deixa as armas já ninguém fará isso, já ninguém olhará para aquela criança com um facho de fogo na mão. Se ninguém faz isso não sei onde a Renamo vai assentar-se, porque assentar dentro de uma força política é possível que tenha algumas dificuldades, pois a sua força política, bem vistas as coisas, é mantida sobre o poder de uma arma e não da razão ou do debate político. Neste momento, discute-se entre armas e não armas, e não ideias. É isso que é a Renamo, é esse o seu sustentáculo.

NOT. –E aonde vai o nosso país parar assim, senhor Presidente?

JC – Um dia a Renamo vai ter que depor as armas, eles terão que deixar cair as armas. Até porque o discurso deles só lhes leva a deixar cair as armas porque se dizem democratas. Então, eles têm de ter a consciência de que não podem ser um partido democrático armado. O que muita gente no mundo não entende é que a Frelimo não tem uma força armada, mas a Renamo quer convencer o mundo que a Frelimo tem armas e que, por isso, eles têm que as ter também. Mas a Frelimo não tem armas, se perdêssemos as eleições o ano passado ou nos outros anos, este Exército que o país tem é o mesmo que havia de ficar e não havíamos de dizer que é o Exército da Renamo. Aliás, o Exército é constituído por pessoas que nem são seleccionadas dentro da Frelimo, são recrutadas e não são perguntadas de que partido são. Mais: estou certo que no Exército há muita gente da Renamo, mas a Renamo não quer esta gente, quer outra, escolhida por eles no meio daquela gente que ela esconde. Portanto, não existe uma força armada da Frelimo, existem sim forças do Estado e é com estas que a Renamo quer fazer a equiparação. Isso significa que a Renamo vai ter homens armados dentro das forças do Estado. Aceitamos isso, mas uma vez entrados lá dentro, certamente que com a própria disciplina e estrutura militar eles deixarão de ser forças armadas da Renamo.
NOT. –Moçambique faz 40 anos de independência a 25 de Junho e o Presidente Chissano é um dos actores dessa conquista e também da gestão do país. O que é que tem a dizer sobre estes 40 anos?
JC – Tenho que dizer viva ao povo moçambicano que conseguiu realizar os seus objectivos. Ao proclamarmos a independência, nós assumimos a soberania, o poder passou a residir no povo e o povo passou e continua a exercer esse poder de uma maneira diversa. No princípio utilizávamos uma democracia directa e hoje tende a ser mais indirecta e isso tem que ser corrigido…

NOT. –… como é que era directa, senhor Presidente?

JC – Porque através de órgãos eleitos e não pela participação directa da população. Houve tempos em que sim senhor havia a Assembleia Popular e era Assembleia Popular porque o método de eleição era mesmo popular e também havia participação directa, local das pessoas que discutiam directamente os assuntos da população sem ser através de representantes, como é agora. Com a Assembleia Popular nos moldes que implementámos em 1977 consultava-se o povo directamente na aldeia, na localidade e ao mesmo tempo tinham representantes na Assembleia.

NOT. –O Parlamento que temos hoje não faz o mesmo papel?

JC – Agora sim somos um Parlamento, mas temos que criar formas para que haja uma maior interacção e consulta mais directa com o povo para se tomarem em consideração todas as particularidades que existem nos nossos distritos e localidades do país, para que a democracia seja mais participativa e não apenas representativa. É preciso haver as duas, pois o Parlamento se haveria de fazer valer dos muitos inputs que existem nas aldeias. Outro aspecto importante destes 40 anos, voltando à sua pergunta, foi termos nacionalizado a terra, no sentido de devolvermos a terra ao povo, pois caso contrário ela estaria em grande parte nas mãos de pouca gente e estrangeira. É um assunto muito difícil porque vemos que mesmo hoje há estrangeiros a lutarem pela nossa terra e a conseguir em alguns casos em moldes não definidos. Felizmente, temos muita terra, mas esta vasta terra precisa de uma gestão cuidadosa, porque com o andar dos tempos é capaz de começar a rarear. Temos muita terra, cerca de trinta e tal milhões de terra arável, e quando eu saí estávamos a usar menos de 20 por cento…

NOT -… muito menos, senhor Presidente…

JC– É preciso que essa terra toda seja valorizada, daí que é difícil quando vem um estrangeiro que quer fazer um investimento nós não darmos facilidades. Mas no que diz respeito à terra para a agricultura, aí temos que ter muito mais cuidado, porque são vastas áreas e a nossa população está a crescer. Por causa disso, eu sou por um bom planeamento físico do nosso país, de modo a que saibamos quais são as terras que devem ser reservadas para a expansão da agricultura em função da expansão da população e também para evitar o êxodo da população do campo para a cidade. Portanto, nesta questão da terra foi bom termos nacionalizado, porque naquela altura nós poderíamos não ter tido formas de impedir que a terra fosse distribuída pelos poderosos financeiros.

NOT. –Fez parte dos Governo nos tempos do Presidente Samora e governou, após o falecimento deste, em momentos difíceis de Moçambique, nomeadamente quando o país estava em guerra. Mas tinha, quando foi o timoneiro, um projecto para esta nação. Qual foi?

JC– Momentos muito difíceis mesmo e posso dizer que os mais difíceis são aqueles em que fomos invadidos por regimes racistas da África Austral. O que eu pensava que era capaz de fazer sobretudo depois da experiência dos primeiros anos ou mesmo, posso dizer, do primeiro ano em que entrei como Chefe do Estado, o objectivo era deixar um país em paz ou, pelo menos, sem guerra. Mas como me foi dada a oportunidade depois dos Acordos de Roma, de permanecer mais tempo, o meu segundo objectivo era deixar um país reconstruído ou, no mínimo, com as bases lançadas para se continuar com o combate à pobreza e se iniciar com um processo de desenvolvimento económico. Isso era o que eu queria e penso que consegui fazer. Quando saí havia essas bases para o desenvolvimento económico. Hoje falamos da electrificação do país que não foi uma imaginação minha, porque esta ideia já vinha no PPI (Plano Prospectivo Indicativo, que se propunha a desenvolver o país na década de 1980 a 1990). Aliás, mesmo antes da independência já pensávamos que a electrificação do país era prioritária. E então levei isso muito a sério e conseguimos reconstruir as linhas de transmissão destruídas e construir novas linhas de transmissão e subestações para levar a energia eléctrica de Cahora Bassa até Montepuez e Pemba, de um lado, e para o Niassa, até Lichinga, em que o projecto era chegar até Metangula, e agora já chegou. Era o mais longe que queríamos chegar. Hoje trata-se de espalhar, continuar com um projecto que começou no meu tempo, fazer ramificações a partir dessas linhas principais. A agricultura cai dentro da rúbrica das reconstruções. Os regadios estavam destruídos e começou-se a desenhar formas de reconstrui-los, ao exemplo do regadio de Chókwè que continua ainda hoje em processo de reconstrução e de expansão e modernização. Sei que outros regadios na Zambézia estão também em processo de reconstrução ou mesmo de construção. Outras bases para o desenvolvimento que criámos na altura foi a abertura para o desenvolvimento de instituições privadas de educação, as universidades, institutos e escolas privadas, que iriam completar ou complementar o trabalho que é feito pelo Estado. Na área da Justiça, também tínhamos que criar bases para o desenvolvimento delas e é por isso que criámos uma academia da Polícia (a Academia de Ciências Policiais, ACIPOL), criámos uma escola para a formação de magistrados (Centro de Formação de Formação Jurídica e Judiciária). Criámos e ao mesmo tempo fomos construindo infra-estruturas para o seu funcionamento, estas e outras ao nível central, províncial, distrital, etc. Portanto, as bases foram lançadas desta maneira. Continuaram depois, como se viu.

NOT –Tem o privilégio de ser o primeiro ex-Presidente de Moçambique, que se retirou e foi sucedido por outro, que também saiu após cumprir dois mandatos. O país é tido como dos poucos em África onde as transições de poder foram pacíficas. Que comentário faz a isso, principalmente por estarmos num continente em que as disputas de poder geram lutas mais ou menos intestinas?

JC – Bom, nós tivemos sorte porque todos os chefes de Estado de Moçambique não vieram ao posto por uma campanha de desejo pessoal de ser Presidente e ter um grupo de apoiantes que pudesse se opor a outro grupo de apoiantes. Mais, a retirada do poder para nós não é um problema. No meu caso, bastasse que o partido dissesse chega eu sairia, sem mesmo que passássemos por eleições, porque nós estávamos ali a cumprir um dever partidário que assumimos como um dever de servir a nação. Os nossos antecedentes de luta são os que fazem com que sejamos assim. Agora, há muitos países que não passaram por isso, passaram por lutas intestinas para se decidir quem é que fica Presidente. Nos países que tiveram uma independência sem luta armada, nós vimos que houve muitos golpes de Estado e a partir daí nada era pacífico, as pessoas não se retiraram voluntariamente e agora se está a recriar nesses países sistemas democráticos. Portanto, desses países nada pode ser comparável a Moçambique, que se quisermos comparar pode ser comparável à Tanzania, embora esta não tenha passado por uma luta armada para estar independente. Houve na Tanzania uma luta política em que um Presidente (Julius Nyerere) popular tomou o poder, unificou o país numa união, a TANU (Tanganyka National Union) e que depois se retirou. A transição foi pacífica e o Presidente que o substituiu (Ali Hassan Mwinyi) continuou sendo amigo dele, que por sua vez foi substituído por um outro (Benjamin Mkapa), que também cumpriu e saiu. Está agora o (Jakaya) Kikwete e continuam ligados. Isso faz-nos dizer que Moçambique está a andar como a Tanzania. A África está a tomar medidas colectivas para que não haja distúrbios em tempos de transição, mas não falta um país ou outro que, utilizando certos pretextos, traz distúrbios, como é o caso do Burundi, onde há uma legislação um pouco ambígua, em que por um lado há a Constituição e por outro há um acordo de paz e uns lêem os seus direitos no acordo de paz e outros na Constituição. É o que está a acontecer no Burundi.

NOT. –Como é que olha para a gestão do país depois de si em termos de governação?

JC –Depois de eu sair entrou o Presidente Guebuza e eu penso que ele, pegando por onde nós tínhamos deixado, materializou várias opções construindo. Construiu infra-estruturas no país como, por exemplo, as pontes que nós já tínhamos preparado os requisitos necessários para a sua construção, como a ponte sobre o Zambeze, a ponte sobre o Rovuma, a ponte sobre o rio Incomáti, aqui na Moamba, e outras. Ele materializou o que já vinha, mas também teve várias inovações que foram facilitadas pelo facto de ter havido uma injecção de capitais no país. Ele construiu infra-estruturas públicas que nos faziam muita falta. Os nossos ministérios, a Procuradoria-Geral da República, funcionavam em residências ou casas que não ofereciam as características necessárias para o seu funcionamento; a própria Presidência da República funcionava numa casa que era um clube, o que não oferecia as condições necessárias para o trabalho eficiente. O Presidente Guebuza fez tudo isso e mais actividades em muitos sectores. No que diz respeito à inclusão do povo nos debates, ele continuou com uma actividade que eu exerci durante os 18 anos em que estive no poder, que é visitar frequentemente as bases e discutir directamente com Governos locais e com a população, também fez uma aposta. Eu fazia isso e ele continuou a fazer com o nome de Presidência Aberta. A diferença é que ele fazia com grande intensidade, até porque ele foi secretário-geral do partido e fez um ensaio quando tinha mais liberdade para implantar melhor as bases da Frelimo. Saíram muitas realizações no tempo do Presidente Guebuza e importa continuar em todas as áreas. Quando saímos deixámos um clima para os investimentos e estes investimentos vieram para que pudéssemos ter o país a continuar o seu crescimento. Por exemplo, a Vale do Rio Doce já estava cá, depois de termos a Mozal, a TRAC e os corredores (de desenvolvimento de Maputo, Beira e Nacala) também; tínhamos iniciado a reconstrução da linha férrea da Beira para Moatize (Linha de Sena). O Presidente Guebuza completou as negociações com Portugal sobre Cahora Bassa, em que foi mais ousado nas ofertas feitas a Portugal para terminar de uma vez o processo, e estou satisfeito porque tinha feito uma abertura de clareiras no terreno, etc. Enfim, há uma linha de coisas que foram realizadas, que para mim estão na linha que foi preconizada. Agora temos um novo Presidente que vai continuar a fazer crescer o país com a teoria dele dos andares, em que diz que vai construir o quarto andar. Ele está consciente de que os pilares continuam consolidados e não se devem deixar enferrujar, pois caso contrário terá que construir outro edifício. Mas ele vai continuar o edifício que nós deixámos, dentro da nossa filosofia de mudanças na continuidade. Ele terá que imprimir mudanças na maneira de fazer, na maneira de ser, na maneira de contactar, de dialogar, etc., etc., mas com o objectivo principal em mente. A não ser que nos diga que é preciso deixar esse objectivo para ir buscar outro e então nesse caso será uma mudança radical… (GIL FILIPE)


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