22 Junho 2015, Jornal Notícias http://www.jornalnoticias.co.mz
(Moçambique)
Moçambique vai
celebrar na quinta-feira 40 anos de proclamação da sua independência. O
percurso para que esta fosse alcançada foi longo e, em muitas das suas etapas,
sinuoso.
A heroicidade dos
moçambicanos, que durante dez anos, até 1974, derrotaram os portugueses nos
campos de batalha, é conhecida de diversas formas. Os livros de história,
biografias, memórias e os depoimentos de muitos dos protagonistas,
principalmente, revelam-nos os contornos da luta que permitiu que a 25 de Junho
de 1975 o nosso país nascesse como nação. Um desses protagonistas é o antigo
Presidente da República, Joaquim Chissano, a quem entrevistámos sobre o 40.º
aniversário da independência nacional. Com Chissano falámos dos Acordos de
Lusaka, o último grande passo para a proclamação da independência e concluídos
entre a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e o Governo português a 7
de Setembro de 1974, as opções diplomáticas de Moçambique e a sua visão sobre o
legado dos chefes de Estado que o nosso país teve neste percurso de quatro
décadas. Eis, a seguir, alguns excertos da entrevista com o homem a quem os
moçambicanos reconhecem principalmente como o obreiro da paz para o nosso país,
em alusão ao final da guerra dos 16 anos que desestabilizou Moçambique até
1992:
NOTÍCIAS (Not)- Os
Acordos de Lusaka foram uma espécie de “finalmente” para que Portugal
reconhecesse o direito de Moçambique à autodeterminação. Sabemos que houve
anteriormente iniciativas de diálogo que não resultaram devido à relutância do
colonizador. Dessas, quais é que foram as mais marcantes até se chegar ao
acordo?
Joaquim Chissano (JC)- Vou aproveitar esta
ocasião para recuar um pouco, não muito, no tempo. Devo dizer que desde os anos
70, nos princípios, estava claro que o povo moçambicano estava a conquistar a
sua independência. Isso era percetível por causa do avanço da luta armada, mas
também pelo crescente apoio internacional que nós tínhamos, de tal ponto que
nesses anos já a Frelimo era considerada mais ou menos como um governo de
Moçambique independente. Daí todas honras que
eram prestadas a Samora Moisés
Machel, nosso Presidente. Por onde passasse eram honras grandes, com tapete
vermelho, guarda de honra, etc., porque o mundo, sobretudo em África, já se
apercebia que a independência era um facto. Mas não só foi fora que se
aperceberam da irreversibilidade da nossa independência. Houve internamente
outros que se aperceberam, como pessoas representadas por Jorge Jardim (empresário
e colonialista radical baseado na Beira), que iniciam contactos com o Governo
da Zâmbia, mais precisamente com o Presidente Kaunda, para tentar pôr um freio
ao avanço da luta armada, alegando que se podia constituir um movimento
libertador no interior de Moçambique que iria fazer o diálogo, desde que a
FRELIMO continuasse a abrandar as acções armadas. Isto significava uma
negociação com as forças portuguesas de cá para criar uma espécie de Brasil,
onde foram os próprios portugueses lá a se desligarem de Portugal e proclamarem
a independência. Portanto, os portugueses de cá queriam uma independência
controlada por eles e com uma ligação contínua com Portugal. Então, pretendem
ter um encontro e tratar do assunto da maneira que queriam com o Governo da Zâmbia
e com a FRELIMO. Mas como nós sabíamos que Jorge Jardim tinha uma ligação muito
directa com o regime em Portugal, sobretudo com o Salazar naquela altura e
depois continuou a ter com Marcello Caetano, nós informámos ao Presidente
Kaunda de que pessoa se tratava o Jorge Jardim e que nós não nos recusávamos o
diálogo com Portugal mas este tinha de ser entre Moçambique e o Governo
português. Estou a falar de antes do 25 de Abril de 1974, mais concretamente
entre 1972 e 1973. Nós exigímos que Jorge Jardim, se quisesse negociar
connosco, nos apresentasse um mandato ou uma credencial do Governo português.
Nós só aceitávamos,
portanto, negociar com o Governo português. Porque ele como moçambicano não
precisava de negociar nada com outros moçambicanos no que à independência dizia
respeito. Ele, querendo o bem de Moçambique, como queria deixar transparecer,
que se juntasse ao movimento libertador ou que mobilizasse muitos brancos
moçambicanos para se juntarem à luta de libertação nacional. À partida
rejeitámos tratar de um assunto tão sério com um homem que conhecíamos muito
bem, com as suas ligações e tendências políticas em relação ao regime colonial
português e que queria exibir uma capa que não tinha, a capa de benfeitor que
nem era. Então, criou-se mais ou menos uma espécie de confiança entre uma parte
dos portugueses e o Presidente Kaunda…
Not -… qual é
essa parte dos portugueses com que o Presidente Kaunda criou confiança?
JC- Foi com o grupo de
Jorge Jardim mesmo e quiçá com outros portugueses que queriam uma independência
fictícia para Moçambique, que queriam que o nosso país, a nossa pátria, fosse
controlada em remote-control por eles e por Portugal. Ora, nós chegámos a
trocar mensagens, através do Governo da Zâmbia, com Jorge Jardim, que não foi
para frente porque ele não tinha nem foi capaz de ter um mandato do Governo
português. Nós nunca nos encontrámos com ele face-a-face. Foi sempre através de
um enviado e quem fazia esses contactos de intermediação era o Presidente
Kaunda. E durante esse tempo também tínhamos informações que nos chegavam
através dos nossos serviços (de inteligência, de que era responsável Joaquim
Chissano), do descontentamento no seio das Forças Armadas portuguesas. Soubemos
da criação de um movimento dos capitães que não viam com bons olhos a
continuação da guerra e tinham descoberto que esta guerra era contra um povo
que tem direito à independência. Portanto, não concordavam com a tese de que
aqui, como em Angola e na Guiné, era uma província ultramarina de Portugal. Há
este movimento que nós acompanhámos e evidentemente este movimento foi
reforçado por causa da derrota do plano do general Kaúlza de Arriaga, o plano
Nó Górdio (que prometera acabar com a guerrilha da FRELIMO). O movimento dos
capitães reforçou a sua posição com a travessia das forças da FRELIMO para o
sul do rio Zambeze e com operações que efectuámos já muito perto da Beira,
nomeadamente em Gorongosa, por exemplo. O nosso avanço era imparável, pois
íamos abrindo mais frentes e os portugueses já viam isso. Viam mais sobretudo
porque os capitães estavam cada vez mais conscientes de que a luta para além de
injusta seria inglória. Não teriam como vencer. Aliás, a guerra que Portugal
moveu contra o povo moçambicano foi inglória…
Not -O avanço
da FRELIMO e a tomada de consciência dos capitães foram a chave para que as
conversações oficiais chegassem?
JC- Sim, foi. Sem
dúvida. Continuando, sobre os contactos iniciais: há os contactos indirectos
que aparecem através de Jorge Jardim; há um movimento dos capitães, com quem
temos um certo contacto muito subtil…
Not -… como é
que efectuam esses contactos com o movimento dos capitães?
JC- Através dos nossos
serviços (de inteligência). Nós sabíamos que existia esse movimento dos
capitães porque trabalhámos bem também essa componente. Não eram contactos
oficiais com os capitães mas tínhamos essas informações porque soubemos
buscá-las e mantê-las. Sabíamos do que estava a acontecer com os militares em
Portugal e até em Timor-Leste, porque tínhamos lá colaboradores. Obviamente que
não os vou identificar, por isso escuse-se de perguntar-me quem eram. Mas creio
que um deles, de quem não me lembro do nome, depois da independência trabalhou
directamente connosco aqui, nos nossos serviços de inteligência. Eu era chefe
desses serviços durante a luta de libertação nacional, lembre-se. É assim que
começam os nossos contactos. Depois dá-se o 25 de Abril (de 1974). E como nós
acompanhávamos a informação, os acontecimentos, ficámos um pouco inquietos
porque estávamos a pensar que haveria aí um golpe de mestre do general Spínola
e das forças que o apoiaram na ideia de criar uma espécie de autonomia com as
colónias para permanecer aquela ligação que muitos portugueses ainda queriam
com as colónias. Víamos que ele não tinha um plano de autodeterminação e independência
de Moçambique. Víamos que isso era muito mau porque poderia até desmobilizar o
apoio da comunidade internacional que nós tínhamos. Então, nós tivemos de
procurar formas de contactar as Forças Armadas que tinham feito o golpe. De uma
maneira subtil enviámos pessoas para Portugal para irem ver qual era a situação
e saber quem é e como passaria a ser o pensamento de Portugal em relação a nós.
Not -A quem
infiltraram em Portugal em 1974?
JC- Aquino de Bragança,
que para os portugueses era uma pessoa insuspeita, por à vista não ser
moçambicano, mas que na verdade era moçambicano. Era goês, de facto, mas era
moçambicano, era dos nossos. Jornalista e investigador que ele era, esteve lá e
fez os contactos e trouxe-nos, com muita facilidade, as linhas de força. É
assim que nós começámos a preparar um eventual encontro com uma delegação
portuguesa. Quando os encontros começam nós já tínhamos feito todo o nosso
trabalho de casa, incluindo simular as próprias conversações, em que alguns de
nós faziam o papel da delegação portuguesa, com argumentos que pareciam fortes
para nós ensaiarmos as respostas que daríamos em Lusaka caso elas nos fossem
efectivamente colocadas. Isso era possível também porque tínhamos feito uma
sondagem em Portugal das opiniões diversas sobre a nossa independência e sobre
as pretensões dos políticos e da população portuguesa. É assim que
estabelecemos uma posição, deixando claro o que não era negociável, que era a
independência e a transferência de poderes do Governo colonial para o representante
legítimo do povo moçambicano, que era a FRELIMO. Depois de muitas tentativas de
quererem continuar a dominar o nosso país tínhamos a lição bem estudada. Muitas
formas de dominação foram ensaiadas mas nós estivemos também atentos a isso e
fizemos dos Acordos de Lusaka palco para que estivesse tudo claro em relação a
quem era o legítimo representante do povo moçambicano. O Governo português
enviou uma delegação que não estava mandatada a aceitar essa nossa posição.
Portanto, a independência imediata, total e completa não foi entendida por essa
delegação, que se assustou e pensava que a independência imediata significava
saírem da mesa das negociações e a independência ser imediatamente proclamada.
Not -Durante
a guerra e mesmo durante o período das conversações foram surgindo outros
grupos, no interior de Moçambique, a pronunciarem-se sobre os moldes para o
alcance da independência. Em Lusaka como é que se debateu este assunto?
JC- Bom, a delegação
portuguesa vinha com a ideia de um referendo, em que dizia que se devia
consultar vozes do interior de Moçambique sobre a questão da independência
nacional. Os portugueses suscitaram o aparecimento de vários partidos, num país
em que não se fazia política. É como se de repente, de um dia para o outro, os
moçambicanos tenham passado a ter a liberdade política, de formarem partidos
políticos, estes que surgiram como que cogumelos depois das chuvas em tempo
quente numa floresta. Esses partidos naturalmente que não tinham nenhuma base
nem tinham ou teriam um programa diferente e não estavam necessariamente
ligados com algumas forças que no percurso da luta de libertação tentaram
emergir, como é o caso da COREMO (de Adelino Guambe, líder da UDENAMO durante a
fusão dos três movimentos que resultaram na Frente de Libertação de
Moçambique). Voltando à sua questão, devo recordar que os grupos a que se
refere resultam de tentativas de perpetuação da dominação a que me referi
antes. Andaram aí a querer dizer, por exemplo, que havia uma FRELIMO de dentro
e outra FRELIMO de fora, FRELIMO das armas e outra FRELIMO que não é das armas,
etc. Não nos desviámos do nosso foco e mantivemos, em sede das negociações, que
não havia nada a negociar no ponto em relação à independência e, portanto, a
ideia de referendo morria ali mesmo, pois os partidos formados depois do 25 de
Abril não representavam nada de nada que tivesse a ver com Moçambique. Os
outros que durante a luta andaram a ser anunciados, principalmente por Adelino
Guambe, não representavam a ninguém nem a nada. Tanto mais que morreram de
morte natural. Foi a força de alguns portugueses de utilizar estes indivíduos
para criar novos partidos para, por via deles, exigirem um referendo.
Respondemos firmemente dizendo ao Governo português que não se pergunta a um
escravo se ele quer ser livre, sobretudo se esse escravo já pegou em armas para
conquistar a sua própria liberdade. A luta armada de libertação nacional e o
apoio que a nossa causa tinha aqui e pelo mundo tornavam claro que o referendo
estava feito. Aliás, isso ficou mais claro ainda quando o povo moçambicano,
durante as próprias negociações, se pôs de pé a reclamar uma independência
imediata em Maputo e noutros locais, o que deu aquela reacção violenta dos
portugueses em 1974.
Not -Retenho
uma afirmação, Senhor Presidente, em que disse que a delegação portuguesa não
estava mandatada em relação a alguns assuntos. Gostaria que descrevesse um
pouco o clima no decurso das negociações no que diz respeito à confiança entre
as partes.
JC- Havia muita
desconfiança da nossa parte. Isso porque quem estava a dirigir o Governo em
Portugal era o general Spínola, um homem em quem nós não depositávamos nenhuma
esperança nem confiança.
Not -Porquê?
JC- Porque ele tinha um
plano, que foi tentado mesmo pelo general Costa Gomes, que era um bocado mais à
esquerda. Costa Gomes veio a Moçambique tentar alimentar a ideia da FRELIMO de
dentro e tentou enviar uma delegação para convencer a FRELIMO a parar com a
guerra para que haja uma negociação de independência com a FRELIMO de dentro. O
plano de Spínola não era ver Moçambique independente de forma total e completa.
Desfizemos essas ideias porque as pessoas que eles enviaram compreenderam logo
o que os portugueses pretendiam, pois já eram nacionalistas e juntaram-se a
nós. Tínhamos a desconfiança, sim, mas apesar disso tínhamos de avançar. Só
para descrever o cenário: em Lusaka tínhamos uma mesa, não a das conversações,
mas aquela onde se encontrariam as negociações, em que as duas delegações
quando entrassem tomavam um e outro lado da mesa. E então quando chegassem o
Presidente Samora estenderia a mão para cumprimentar a contraparte ali
atravessando a mesa. Mas Mário Soares (então Ministro dos Negócios Estrangeiros
português), que certamente também já tinha ensaiado e tinha visto noutras
negociações, ele que é socialista, deu a volta à mesa, ignorando o formal
estender da mão do Presidente Samora e disse: o que é isso? Dá cá um abraço”.
Ele estava com esse gesto a dizer que ele já não era um inimigo mas um camarada
como nós. Então aí ele próprio procurou tornar leve o ambiente. Mas nós ficámos
sempre atentos porque esse carinho podia ser uma maneira de nos levar a
concluir facilmente que estávamos a seguir o mesmo objectivo quando na verdade
podia não ser.
Not -Esse
gesto de Mário Soares fez uma distensão efectiva no decurso de todas as
negociações? Sei que as conversações foram interrompidas e a parte portuguesa
teve de regressar a Lisboa antes de o acordo ser selado…
JC - Sim, voltaram porque não tinham todas as condições para negociar
connosco. Voltando ao gesto do Mário Soares, o que foi bom com ele é que
podíamos discordar dos pontos que discutíamos a sorrir. A importância do gesto
de Mário Soares, que chefiava uma delegação que incluía alguns conhecidos
nossos, como Otelo Saraiva de Carvalho, foi sabermos também dos limites do
mandato que eles tinham nas questões que íamos abordar. Por isso nesse primeiro
encontro só se deu tempo para a delegação portuguesa regressar a Lisboa e
repensar e buscar novo mandato. Assim foi e quando regressaram, com novo mandato,
já não era o Mário Soares a dirigir a delegação; era o Melo Antunes (ministro
sem pasta no Governo de Spínola). Mas devo dizer que não foi logo de imediato.
Entre este momento e os contactos iniciais houve muitos outros passos, como
enviarmos o Aquino de Bragança a Lisboa, o Óscar Monteiro a outros lugares da
Europa para se encontrar com delegações portuguesas. A partir desses contactos
combinou-se um encontro com o Presidente Samora Machel em Dar-Es-Salaam, em que
uma delegação, que incluía Mários Soares, conversou com ele. E à parte houve um
outro encontro com os militares portugueses, com o Melo Antunes presente, que
culminou com um segundo encontro em Dar-Es-Salaam, onde se tomaram decisões
importantes que foram materializadas no âmbito dos Acordos de Lusaka. Isso já
deu-se depois da tomada de Omar (Namatili), onde os soldados portugueses se
renderam porque já não queriam combater. Portanto, a criação de confiança foi
isso.
Not -O
entendimento entre a FRELIMO e o Governo português em Lusaka trouxe ressentimentos
em alguns sectores dos colonos, os chamados “ultra”, que criaram distúrbios em
1974 em Maputo. Ainda estavam em Lusaka quando chegaram as notícias. Qual foi a
reacção da delegação da FRELIMO?
JC - Quando isso chegou a Lusaka a delegação portuguesa já tinha partido. Nós
ainda estávamos lá e a nos preparar para abrir os champanhes com os jornalistas
moçambicanos que cobriram as conversações, que já estavam a festejar connosco a
vitória. Foi nessa altura que soubemos que a Rádio Moçambique (Rádio Clube na
época) tinha sido tomada. Então dissemos aos jornalistas para continuarem com o
champanhe, enquanto nós recolhíamos para resolver a situação, para nos
informarmos melhor e traçarmos estratégias. Porque já as delegações estavam a
caminho de Maputo (os portugueses) e para o norte do país (os da FRELIMO) para
darem instruções sobre o cessar-fogo, que tinha de acontecer à 00.00 hora, com
esta notícia mandou-se parar tudo. Apesar de os preparativos se terem mantido,
o Presidente Machel conseguiu uma ligação telefónica com o general Spínola
exigindo que este resolvesse o que se estava a passar em Maputo porque o que
estava a acontecer, disse o Presidente Samora, correspondia ao plano de
Spínola. Ele falou muito fortemente, dizendo a Spínola que ele era um
colonialista e que nós não aceitávamos esse plano dele. O Spínola ficou
ofendido e disse a Samora “eu não entendo a língua que o senhor está a falar”.
O Presidente Samora disse-lhe bem alto que a língua se chamava Português.
Obviamente que o Spínola ouvia e entendia.
Not -O que é
que iria acontecer se não parassem os distúrbios em Maputo?
JC - O Presidente Samora deu um prazo de 24 horas para que o Spínola
resolvesse a situação, sublinhando-lhe que os nossos homens ainda estavam de
armas nas mãos e em todas as posições, pelo que o cessar-fogo podia ser
interrompido e os combates continuariam. O Spínola prometeu fazer alguma coisa
mas na verdade a coisa foi resolvida localmente pela população, que marchou com
pedras e com mãos vazias, barricando carros, a caminho da rádio para repor a
ordem. De qualquer modo se os portugueses não tratassem do assunto nós
trataríamos com a continuação da nossa luta até conseguirmos o nosso objectivo,
que era liberar esta terra e os seus filhos. (GIL FILIPE)
JOAQUIM
CHISSANO, EX-CHEFE DO ESTADO: Rejeitámos negociar com os portugueses de cá (2.ª
parte)
Rejeitámos
negociar com os portugueses de cá (2.ª parte) – conta Joaquim Chissano,
Ex-Chefe do Estado
23 Junho 2015, Jornal Notícias
http://www.jornalnoticias.co.mz (Moçambique)
Apresentação nesta
edição a segunda e penúltima parte da entrevista em que o antigo Presidente da
República Joaquim Chissano reflecte sobre algumas questões marcantes no
percurso de 40 anos de Moçambique independente.
Joaquim Chissano,
primeiro-ministro do Governo de Transição (que conforme os Acordos de Lusaka
integrou quadros de Portugal e da FRELIMO), ministro dos Negócios Estrangeiros
nos tempos de Samora Machel e Presidente da República de 1986 a 2004, aborda,
nesta parte, a interacção entre representantes do Estado português e da FRELIMO
durante o Governo de Transição e alguns contornos da diplomacia moçambicana
desde a proclamação da independência.
Afirma, por exemplo,
que os principais países ocidentais primeiro hesitaram em aceitar estabelecer
relações diplomáticas com Moçambique, manifestando reservas em relação às
opções políticas do Governo. Vai, nas linhas que se seguem, o diálogo com o
antigo Chefe do Estado:
Not. - Retenho uma
afirmação, senhor Presidente, em que disse que a delegação portuguesa às
conversações de Lusaka não estava mandatada em relação a alguns assuntos. Mas
gostaria que descrevesse um pouco o clima no decurso das negociações no que diz
respeito à confiança entre as partes.
JC - Havia muita
desconfiança da nossa parte. Isso porque quem estava a dirigir o Governo em
Portugal era o general Spínola, um homem em quem nós não depositávamos nenhuma
esperança nem confiança.
Not. -Porquê?
JC - Porque ele tinha
um plano que foi tentado mesmo pelo general Costa Gomes, que era um bocado mais
à esquerda. Costa Gomes veio a Moçambique tentar alimentar a ideia da FRELIMO
de dentro e tentou enviar uma delegação para convencer a FRELIMO a parar com a
guerra para que haja uma negociação da independência com a FRELIMO de dentro. O
plano de Spínola não era ver Moçambique independente de forma total e completa.
Desfizemos essas ideias porque as pessoas que eles enviaram compreenderam logo
o que os portugueses pretendiam, pois já eram nacionalistas e juntaram-se a
nós. Tínhamos a desconfiança, sim, mas apesar disso tínhamos de avançar. Só
para descrever o cenário: em Lusaka tínhamos uma mesa, não a das conversações,
mas aquela onde se encontrariam as negociações, em que as duas delegações quando
entrassem tomavam um e outro lado da mesa. E então quando chegasse o Presidente
Samora estenderia a mão para cumprimentar a contraparte ali atravessando a
mesa. Mas Mário Soares (então ministro dos Negócios Estrangeiros português),
que certamente também já tinha ensaiado e tinha visto noutras negociações, ele
que é socialista, deu a volta à mesa, ignorando o formal estender da mão do
Presidente Samora e disse: o que é isso? Dá cá um abraço”. Ele estava com esse
gesto a dizer que ele já não era um inimigo, mas um camarada como nós. Então aí
ele próprio procurou tornar leve o ambiente. Mas nós ficámos sempre atentos,
porque esse carinho podia ser uma maneira de nos levar a concluir facilmente
que estávamos a seguir o mesmo objectivo, quando na verdade podia não ser.
Not. - Esse gesto de
Mário Soares fez uma distensão efectiva no decurso de todas as negociações? Sei
que as conversações foram interrompidas e a parte portuguesa teve de regressar
a Lisboa antes de o acordo ser selado…
JC - Sim, voltaram
porque não tinham todas as condições para negociar connosco. Voltando ao gesto
de Mário Soares, o que foi bom com ele é que podíamos discordar dos pontos que
discutíamos a sorrir. A importância do gesto de Mário Soares, que chefiava uma
delegação que incluía alguns conhecidos nossos, como Otelo Saraiva de Carvalho,
foi sabermos também dos limites do mandato que eles tinham nas questões que
íamos abordar. Por isso, nesse primeiro encontro só se deu tempo para a
delegação portuguesa regressar a Lisboa e repensar e buscar novo mandato. Assim
foi e quando regressaram, com novo mandato, já não era Mário Soares a dirigir a
delegação; era o Melo Antunes (ministro sem pasta no Governo de Spínola). Mas
devo dizer que não foi logo de imediato. Entre este momento e os contactos
iniciais houve muitos outros passos, como enviarmos o Aquino de Bragança a
Lisboa, o Óscar Monteiro a outros lugares da Europa para se encontrar com
delegações portuguesas. A partir desses contactos combinou-se um encontro com o
Presidente Samora Machel em Dar-Es-Salaam, em que uma delegação, que incluía
Mários Soares, conversou com ele. E à parte houve um outro encontro com os
militares portugueses, com Melo Antunes presente, que culminou com um segundo
encontro em Dar-Es-Salaam, onde se tomaram decisões importantes que foram
materializadas no âmbito dos Acordos de Lusaka. Isso já se deu depois da tomada
de Omar (Namatil), onde os soldados portugueses se renderam porque já não
queriam combater. Portanto, a criação de confiança foi isso.
Not. - O entendimento
entre a FRELIMO e o Governo português em Lusaka trouxe ressentimentos em alguns
sectores dos colonos, os chamados “ultra”, que criaram distúrbios em 1974 em
Maputo. Ainda estavam em Lusaka quando chegaram as notícias. Qual foi a reacção
da delegação da FRELIMO?
JC - Quando isso
chegou a Lusaka a delegação portuguesa já tinha partido. Nós ainda estávamos lá
e a prepararmo-nos para abrir os champanhes com os jornalistas moçambicanos que
cobriram as conversações, que já estavam a festejar connosco a vitória. Foi
nessa altura que soubemos que a Rádio Moçambique (Rádio Clube na época) tinha
sido tomada. Então dissemos aos jornalistas para continuarem com o champanhe,
enquanto nós recolhíamos para resolver a situação, para nos informarmos melhor
e traçarmos estratégias. Porque já as delegações estavam a caminho de Maputo
(os portugueses) e para o norte do país (os da FRELIMO) para darem instruções
sobre o cessar-fogo que tinha de acontecer à 00.00 hora, com esta notícia
mandou-se parar tudo. Apesar de os preparativos se terem mantido, o Presidente
Machel conseguiu uma ligação telefónica com o general Spínola exigindo que este
resolvesse o que se estava a passar em Maputo, porque o que estava a acontecer,
disse o Presidente Samora, correspondia ao plano de Spínola. Ele falou
bastante, dizendo a Spínola que ele era um colonialista e que nós não
aceitávamos esse plano dele. O Spínola ficou ofendido e disse a Samora “eu não
entendo a língua que o senhor está a falar”. O Presidente Samora disse-lhe bem
alto que a língua se chamava Português. Obviamente que Spínola ouvia e
entendia.
Not. - O que é que
iria acontecer se não parassem os distúrbios em Maputo?
JC - O Presidente
Samora deu um prazo de 24 horas para que o Spínola resolvesse a situação,
sublinhando-lhe que os nossos homens ainda estavam de armas nas mãos e em todas
as posições, pelo que o cessar-fogo podia ser interrompido e os combates
continuariam. Spínola prometeu fazer alguma coisa, mas na verdade a coisa foi
resolvida localmente pela população, que marchou com pedras e com mãos vazias,
barricando carros a caminho da rádio para repor a ordem. De qualquer modo se os
portugueses não tratassem do assunto nós trataríamos com a continuação da nossa
luta até conseguirmos o nosso objectivo que era liberar esta terra e os seus
filhos.
Not. - Integrou o
Governo de Transição, saído no âmbito dos Acordos de Lusaka, e teve que lidar
diariamente, no período que faltava para a proclamação da independência, com
antigos inimigos. Com a composição do Governo de Transição, em que estavam nele
guerrilheiros acabados de vencer no campo de batalha e senhores de um país por
tantas décadas, não havia fricções ou animosidades no seio desse Governo?
JC - Na verdade o
Governo de Transição funcionou lindamente, posso assim dizer.
Not. - Estava à
espera disso? Foi o primeiro-ministro do Governo de Transição…
Estávamos à espera
que assim fosse, sim, por causa do espírito de Lusaka, em que se criou aquela
confiança a que me referi. Entendemo-nos porque o papel de cada um estava claro
e os interesses de cada uma das partes estavam também claros. Da parte
portuguesa, por exemplo, o alto-comissário tinha como papel zelar pelos
interesses do Estado português e dar confiança à população portuguesa que ainda
estava no país e representar Moçambique no plano exterior. Isso acontece uma
vez que nós ainda não éramos um Estado reconhecido, pelo menos do ponto de
vista formal, podemos assim dizer, porque a independência ainda não tinha sido
proclamada. Portanto, tudo que era assunto internacional tinha que passar pelo
alto-comissário e assim foi. Evidentemente que havia de consultar o Governo de
Transição antes de tomar alguma decisão. Trabalhámos bem em tudo. Posso citar
até um exemplo que parece pequeno mas significativo que é o da retirada das
tropas portuguesas, que ainda cá estavam, dos seus equipamentos, em que
negociámos aquilo que devia ficar aqui e o que eles podiam levar. Havia coisas
que não podiam levar, como paióis, hangares, quartéis, enfim as
infra-estruturas…
Not. - … e depois
veio o 25 de Junho de 1975, senhor Presidente. Um dos grandes desafios que o
novo país teve no campo diplomático, depois de a independência ter sido
conquistada num contexto da Guerra Fria, em que o movimento de libertação,
praticamente, já se tinha definido ideologicamente e ao mesmo tempo houve muita
propaganda negativa contra a FRELIMO primeiro e contra o Estado moçambicano
depois. Como é que se conseguiu colocar as pedras no tabuleiro e estabelecer
relações com alguns países…
JC -… com os Estados
Unidos, é isso?
Not. - Estados Unidos
e outros de visão ideológica antagónica ou aparentemente antagónica.
JC - Foi fácil em
termos de princípios. Declarámos os nossos princípios mesmo na nossa
constituição, em que dissemos claramente que a nossa política era fazer amigos
com todos os países e que não havíamos de dar privilégios, seja a que país
fosse e trataríamos todos por igual dentro do grande conceito de igualdade
entre os Estados. Queríamos cooperação, porque reconhecíamos que nenhum país
podia viver só em si. A independência significava o relacionamento com outros
países dentro da sua independência. Portanto, a cooperação exigia independência
e é essa a política que nós levámos a cabo e convidámos todos os países. No dia
da proclamação da independência, o acto que se seguiu à tarde foi o de receber
credenciais (diplomáticas). Há países que hesitaram, que não quiseram, pelo
menos naquela altura, entregar credenciais imediatamente, como é o caso de
grandes países ocidentais. Inglaterra, Estados Unidos da América e RFA (a antiga
Alemanha Ocidental no contexto da divisão da Alemanha após a II Guerra
Mundial), por exemplo, não apresentaram credenciais.
Not. - Estes países
foram convidados e estiveram representados na proclamação da independência?
JC - Foram convidados
e vieram. Tinham consulados aqui e estiveram. Portanto, não houve nessa altura
estabelecimento de relações diplomáticas com esses países e com alguns deles as
coisas arrastaram-se por muito tempo. Como ministro dos Negócios Estrangeiros a
minha tarefa foi insistir em convidá-los. Primeiro queriam saber qual é a
política que Moçambique ia seguir, porque pensavam que nós seguiríamos a União
Soviética e que se assim fosse seríamos controlados pela União Soviética, etc.,
e por isso eles tinham que estudar as suas estratégias. Então essa era nossa
tarefa no Ministério dos Negócios Estrangeiros, convencer esses países que o
que nós queríamos era a amizade e que esquecíamos aquela cooperação que eles
tinham com o Governo português durante a nossa luta armada de libertação nacional
e que não interferiríamos na relação que eles continuavam a ter com o Governo
português em assuntos que não nos diziam respeito, como é a questão daquela
base nos Açores (base das Lages), que era um assunto entre o Governo português
e os Estados Unidos. E de facto esse não era nosso problema e só seria se
mexesse com a nossa independência. Nem a base nos Açores nem as bases
soviéticas no Oceano Índico eram nosso assunto, apesar de que nós apoiávamos a
desmilitarização do Oceano Índico. Estávamos preocupados em desenvolver
relações bilaterais e quiçá através dessas relações bilaterais podíamos
contribuir de forma construtiva para assuntos que dizem respeito às relações
globais. Contudo, mais tarde todos os que hesitaram vieram ter e estabeleceram
relações diplomáticas connosco.
Not. - É neste
contexto que o Governo de Moçambique conseguiu, estava o senhor na Presidência,
mais recentemente, estabelecer relações diplomáticas com Israel, por exemplo?
Israel é arqui-inimigo de um amigo de Moçambique, a Palestina, que tem com
Moçambique uma amizade nascida da política de solidariedade activa que o
Presidente Samora pôs em prática…
JC - Não, não! Foi no
contexto de que nós queríamos ser amigos de todos. Mas no caso de Israel nós
não cooperávamos, enquanto não se reconhecesse a Palestina. Portanto, era
preciso que houvesse reconhecimento da Palestina por parte de Israel. Foi na
altura em que as duas partes chegaram a um acordo de mútuo respeito, ainda no
tempo de Arafat (Yasser Arafat, falecido presidente da Autoridade Palestina).
Então, houve um certo entendimento entre a Palestina e Israel e então nós
decidimos acolher aqui uma embaixada da Palestina, que até hoje está cá. É por
causa desse reconhecimento. É como aconteceria com as Coreias. Como as duas partes
são internacionalmente reconhecidas pelas Nações Unidas, cooperámos com ambos.
A questão de Israel pode ser tida como diferente por causa de avanços e recuos
na busca de soluções entre as duas partes, mas há um reconhecimento mútuo em
que existe uma Autoridade Palestina e um Governo de Israel que se
inter-relacionam no que lhes diz respeito. Foi nessa altura que nós aceitámos
que pudéssemos ter relações com Israel. Aliás, depois de Camp Davids, em que os
egípcios e os americanos se reuniram para o desanuviamento das tensões naquela
zona nós continuámos a apoiar a causa palestina.
Not. - Num contexto
como o actual, em que as alianças ideológicas têm pouco peso na relação entre
os Estados, qual é o rumo que o Estado moçambicano deve tomar no contexto
diplomático.
JC - Nós devemos
tomar, conservar e continuar a seguir aquele espírito de neutralidade e não
alinhamento que nos caracterizou sempre e caracterizou igualmente os países
africanos de uma forma ampla. Portanto, definimo-nos como não-alinhados em
relação ao bloco do leste ou o bloco do oeste. Hoje nós não facilitaríamos a
recriação de blocos ideológicos, pois cada povo deve desenvolver a sua própria
ideologia mesmo que empreste princípios de ideologias que existiram outrora.
Por exemplo, eu continuo a acreditar no socialismo na forma, embora pense que o
socialismo não se possa aplicar de uma vez. Podemos ter formas capitalistas de
governação ao mesmo tempo que nós resolvemos os problemas sociais que são os
problemas de trazer maior igualdade, maior inclusão, etc., etc. Eu até costumo
dizer que há coisas do socialismo que são praticadas mais rápido pelo
capitalismo. No capitalismo também se tem tratado de problemas relativos ao
trabalho, as lutas dos movimentos sindicais e os problemas resolveram-se quando
os países socialistas queriam resolver de uma outra maneira, de uma outra via. (GIL FILIPE)
JOAQUIM
CHISSANO, EX-CHEFE DO ESTADO: Rejeitámos negociar com os portugueses de cá
(Conclusão)
24 Junho 2015, Jornal Notícias
http://www.jornalnoticias.co.mz (Moçambique)
O antigo Presidente
da República Joaquim Chissano afirma que a Renamo deverá depor as armas e optar
pelo debate político para condizer com a postura de um partido político, por
ela se achar democrática.
Faz entender ainda
que aquela formação tem seus membros em vários sectores do Estado, mas que não
se revelam porque a Renamo o acha assim conveniente, daí não ser verdadeira –
diz Chissano – a tese da exclusão que Afonso Dhlakama defende. Nesta conclusão
da entrevista com o estadista, o homem que governou Moçambique por 18 anos até
Janeiro de 2005, assevera que para além da paz o seu projecto de governação
contemplava a criação de bases para que o país desse passos firmes rumo ao
desenvolvimento. Joaquim Chissano aborda também alguns dos feitos do seu tempo
de Presidente e elogia a entrega do seu sucessor, Armando Guebuza, sobretudo na
construção de infra-estruturas e revela esperança no actual Chefe do Estado,
Filipe Nyusi, a quem augura continuidade na edificação do país. Eis, nas linhas
que se seguem, o último terço da entrevista:
NOT.– Um dos legados
que deixou foi a estabilidade do país, estabilidade no sentido de que a Renamo,
com quem negociou e assinou o Acordo Geral de Paz em 1992, já não matava.
Olhando para as coisas hoje, esta Renamo voltou aos disparos. Há algo que
faria, se estivesse no activo, de modo a que esta Renamo não ameaçasse a paz e
a estabilidade dos moçambicanos?
JC –Bom, é difícil
responder a isso porque se eu recuasse devia ver o ponto à maneira do como
estamos hoje. Mas se recuássemos talvez eu procurasse no seio dos membros da
Renamo pessoas mais sensatas, com as quais nós pudéssemos colaborar para
concretizar essa inclusão que eles acham que não existe. Para mim, não é
inclusão pegar em alguém só por ser da Renamo para integrar em qualquer
estrutura, qualquer empresa, etc. Olharia apenas para indivíduos idóneos,
sensatos e responsáveis e então trabalhar com eles. Há muita gente da Renamo
agora que foi para a escola, para as universidades, ensino
técnico-profissional, etc., que pegaria e trabalharia com eles de propósito que
é para ficar claro que temos estas pessoas. Eu creio que no aparelho do Estado
há de haver muitos, tal como nas instituições públicas há de haver muitos que
não são da Frelimo e que estão a trabalhar, mas que fazem questão de ficar
calados para continuarem a dizer que a Frelimo discrimina e que só leva gente
da Frelimo. Aliás, nós fizemos isso em duas ocasiões no meu tempo, em que
nomeámos um director de uma empresa pública que é os Correios de Moçambique,
que era da Renamo, e nós sabíamos muito bem que ele era da Renamo. Não pedimos
que ele deixasse de ser da Renamo, porque sabíamos que ele tinha idoneidade e
competência. Depois, eu pedi a um dirigente quase da Renamo para ocupar um
cargo no Conselho Superior da Magistratura Judicial, tendo a direcção da Renamo
o impedido de tomar esse lugar e mais tarde pedimos ao doutor Arouca, que
também era da oposição, e ele aceitou. Portanto, hoje talvez pudéssemos olhar
para as hostes da Renamo e ver pessoas com capacidade e idoneidade para que
quando chegassem a esse lugar não representassem os interesses do partido, tal
como nós exigimos aos nossos próprios membros quando os nomeamos para esses
cargos. Nos postos de trabalho as pessoas não representam os interesses do
partido Frelimo, mas os do Estado moçambicano. Se eu cometer um crime, o que o
ministro do Interior tem que fazer é cumprir a lei e não olhar para mim como
presidente honorário do partido Frelimo, porque ele representa os interesses do
Estado. Então, queríamos que as pessoas da Renamo, que viessem da Renamo, do
MDM ou de qualquer outra força política, se viessem a ocupar cargos públicos,
que o fizessem com sentido de Estado e não de partido.
NOT. –Uma das chaves
para o comportamento da Renamo hoje é o facto de ela ter armas e ser, portanto,
para além de política, uma organização militar. O Presidente Chissano tentou desarmar
a Renamo e não conseguiu. Tem alguma espécie de ressentimento por isso?
JC – Bom, estava
claro que não era possível desarmar a Renamo de uma sentada, porque ou nós
cegamente utilizaríamos a força, tentando desarmá-los à força, o que havia de
criar uma luta e a luta passava por cima do povo ou optaríamos por ser
racionais, como tentamos ser. Morreria muita gente, sobretudo porque a Renamo
usa sempre uma táctica que faz sofrer o povo. Se forem a reparar, a Renamo não
marcha contra quartéis e tal sem passar pela população. Cria sempre terror e
intimidação, através de matanças à população. Aliás, faz isso para alguém lhe
ver e ir a correr agarrar-lhe os braços e pedir para não fazer isso e ele
ganhar o seu valor…
NOT -… o senhor
Presidente fez isso?
JC –Não! Eu não! Mas
alguém de fora que chega lá como que a olhar para uma criança com um facho de
fogo na mão e a rogar à criança para não brincar com o fogo. É assim que se
comporta a Renamo, é assim que ela se sente viva. Delegações estrangeiras vêm e
fazem isso e aí ela se sente importante. Se a Renamo deixa as armas já ninguém
fará isso, já ninguém olhará para aquela criança com um facho de fogo na mão.
Se ninguém faz isso não sei onde a Renamo vai assentar-se, porque assentar
dentro de uma força política é possível que tenha algumas dificuldades, pois a
sua força política, bem vistas as coisas, é mantida sobre o poder de uma arma e
não da razão ou do debate político. Neste momento, discute-se entre armas e não
armas, e não ideias. É isso que é a Renamo, é esse o seu sustentáculo.
NOT. –E aonde vai o
nosso país parar assim, senhor Presidente?
JC – Um dia a Renamo
vai ter que depor as armas, eles terão que deixar cair as armas. Até porque o
discurso deles só lhes leva a deixar cair as armas porque se dizem democratas.
Então, eles têm de ter a consciência de que não podem ser um partido
democrático armado. O que muita gente no mundo não entende é que a Frelimo não
tem uma força armada, mas a Renamo quer convencer o mundo que a Frelimo tem
armas e que, por isso, eles têm que as ter também. Mas a Frelimo não tem armas,
se perdêssemos as eleições o ano passado ou nos outros anos, este Exército que
o país tem é o mesmo que havia de ficar e não havíamos de dizer que é o
Exército da Renamo. Aliás, o Exército é constituído por pessoas que nem são
seleccionadas dentro da Frelimo, são recrutadas e não são perguntadas de que
partido são. Mais: estou certo que no Exército há muita gente da Renamo, mas a
Renamo não quer esta gente, quer outra, escolhida por eles no meio daquela
gente que ela esconde. Portanto, não existe uma força armada da Frelimo,
existem sim forças do Estado e é com estas que a Renamo quer fazer a
equiparação. Isso significa que a Renamo vai ter homens armados dentro das
forças do Estado. Aceitamos isso, mas uma vez entrados lá dentro, certamente
que com a própria disciplina e estrutura militar eles deixarão de ser forças
armadas da Renamo.
NOT. –Moçambique faz
40 anos de independência a 25 de Junho e o Presidente Chissano é um dos actores
dessa conquista e também da gestão do país. O que é que tem a dizer sobre estes
40 anos?
JC – Tenho que dizer
viva ao povo moçambicano que conseguiu realizar os seus objectivos. Ao
proclamarmos a independência, nós assumimos a soberania, o poder passou a
residir no povo e o povo passou e continua a exercer esse poder de uma maneira
diversa. No princípio utilizávamos uma democracia directa e hoje tende a ser
mais indirecta e isso tem que ser corrigido…
NOT. –… como é que
era directa, senhor Presidente?
JC – Porque através
de órgãos eleitos e não pela participação directa da população. Houve tempos em
que sim senhor havia a Assembleia Popular e era Assembleia Popular porque o
método de eleição era mesmo popular e também havia participação directa, local
das pessoas que discutiam directamente os assuntos da população sem ser através
de representantes, como é agora. Com a Assembleia Popular nos moldes que
implementámos em 1977 consultava-se o povo directamente na aldeia, na
localidade e ao mesmo tempo tinham representantes na Assembleia.
NOT. –O Parlamento
que temos hoje não faz o mesmo papel?
JC – Agora sim somos
um Parlamento, mas temos que criar formas para que haja uma maior interacção e
consulta mais directa com o povo para se tomarem em consideração todas as
particularidades que existem nos nossos distritos e localidades do país, para
que a democracia seja mais participativa e não apenas representativa. É preciso
haver as duas, pois o Parlamento se haveria de fazer valer dos muitos inputs que existem nas
aldeias. Outro aspecto importante destes 40 anos, voltando à sua pergunta, foi
termos nacionalizado a terra, no sentido de devolvermos a terra ao povo, pois
caso contrário ela estaria em grande parte nas mãos de pouca gente e
estrangeira. É um assunto muito difícil porque vemos que mesmo hoje há
estrangeiros a lutarem pela nossa terra e a conseguir em alguns casos em moldes
não definidos. Felizmente, temos muita terra, mas esta vasta terra precisa de
uma gestão cuidadosa, porque com o andar dos tempos é capaz de começar a rarear.
Temos muita terra, cerca de trinta e tal milhões de terra arável, e quando eu
saí estávamos a usar menos de 20 por cento…
NOT -… muito menos,
senhor Presidente…
JC– É preciso que
essa terra toda seja valorizada, daí que é difícil quando vem um estrangeiro
que quer fazer um investimento nós não darmos facilidades. Mas no que diz
respeito à terra para a agricultura, aí temos que ter muito mais cuidado,
porque são vastas áreas e a nossa população está a crescer. Por causa disso, eu
sou por um bom planeamento físico do nosso país, de modo a que saibamos quais
são as terras que devem ser reservadas para a expansão da agricultura em função
da expansão da população e também para evitar o êxodo da população do campo
para a cidade. Portanto, nesta questão da terra foi bom termos nacionalizado,
porque naquela altura nós poderíamos não ter tido formas de impedir que a terra
fosse distribuída pelos poderosos financeiros.
NOT. –Fez parte dos
Governo nos tempos do Presidente Samora e governou, após o falecimento deste, em
momentos difíceis de Moçambique, nomeadamente quando o país estava em guerra.
Mas tinha, quando foi o timoneiro, um projecto para esta nação. Qual foi?
JC– Momentos muito
difíceis mesmo e posso dizer que os mais difíceis são aqueles em que fomos
invadidos por regimes racistas da África Austral. O que eu pensava que era
capaz de fazer sobretudo depois da experiência dos primeiros anos ou mesmo,
posso dizer, do primeiro ano em que entrei como Chefe do Estado, o objectivo
era deixar um país em paz ou, pelo menos, sem guerra. Mas como me foi dada a
oportunidade depois dos Acordos de Roma, de permanecer mais tempo, o meu
segundo objectivo era deixar um país reconstruído ou, no mínimo, com as bases
lançadas para se continuar com o combate à pobreza e se iniciar com um processo
de desenvolvimento económico. Isso era o que eu queria e penso que consegui
fazer. Quando saí havia essas bases para o desenvolvimento económico. Hoje
falamos da electrificação do país que não foi uma imaginação minha, porque esta
ideia já vinha no PPI (Plano Prospectivo Indicativo, que se propunha a
desenvolver o país na década de 1980 a 1990). Aliás, mesmo antes da
independência já pensávamos que a electrificação do país era prioritária. E
então levei isso muito a sério e conseguimos reconstruir as linhas de
transmissão destruídas e construir novas linhas de transmissão e subestações
para levar a energia eléctrica de Cahora Bassa até Montepuez e Pemba, de um
lado, e para o Niassa, até Lichinga, em que o projecto era chegar até
Metangula, e agora já chegou. Era o mais longe que queríamos chegar. Hoje
trata-se de espalhar, continuar com um projecto que começou no meu tempo, fazer
ramificações a partir dessas linhas principais. A agricultura cai dentro da
rúbrica das reconstruções. Os regadios estavam destruídos e começou-se a
desenhar formas de reconstrui-los, ao exemplo do regadio de Chókwè que continua
ainda hoje em processo de reconstrução e de expansão e modernização. Sei que
outros regadios na Zambézia estão também em processo de reconstrução ou mesmo
de construção. Outras bases para o desenvolvimento que criámos na altura foi a
abertura para o desenvolvimento de instituições privadas de educação, as
universidades, institutos e escolas privadas, que iriam completar ou
complementar o trabalho que é feito pelo Estado. Na área da Justiça, também
tínhamos que criar bases para o desenvolvimento delas e é por isso que criámos
uma academia da Polícia (a Academia de Ciências Policiais, ACIPOL), criámos uma
escola para a formação de magistrados (Centro de Formação de Formação Jurídica
e Judiciária). Criámos e ao mesmo tempo fomos construindo infra-estruturas para
o seu funcionamento, estas e outras ao nível central, províncial, distrital,
etc. Portanto, as bases foram lançadas desta maneira. Continuaram depois, como
se viu.
NOT –Tem o privilégio
de ser o primeiro ex-Presidente de Moçambique, que se retirou e foi sucedido
por outro, que também saiu após cumprir dois mandatos. O país é tido como dos
poucos em África onde as transições de poder foram pacíficas. Que comentário
faz a isso, principalmente por estarmos num continente em que as disputas de
poder geram lutas mais ou menos intestinas?
JC – Bom, nós tivemos
sorte porque todos os chefes de Estado de Moçambique não vieram ao posto por
uma campanha de desejo pessoal de ser Presidente e ter um grupo de apoiantes
que pudesse se opor a outro grupo de apoiantes. Mais, a retirada do poder para
nós não é um problema. No meu caso, bastasse que o partido dissesse chega eu
sairia, sem mesmo que passássemos por eleições, porque nós estávamos ali a
cumprir um dever partidário que assumimos como um dever de servir a nação. Os
nossos antecedentes de luta são os que fazem com que sejamos assim. Agora, há
muitos países que não passaram por isso, passaram por lutas intestinas para se
decidir quem é que fica Presidente. Nos países que tiveram uma independência
sem luta armada, nós vimos que houve muitos golpes de Estado e a partir daí
nada era pacífico, as pessoas não se retiraram voluntariamente e agora se está
a recriar nesses países sistemas democráticos. Portanto, desses países nada
pode ser comparável a Moçambique, que se quisermos comparar pode ser comparável
à Tanzania, embora esta não tenha passado por uma luta armada para estar
independente. Houve na Tanzania uma luta política em que um Presidente (Julius
Nyerere) popular tomou o poder, unificou o país numa união, a TANU (Tanganyka
National Union) e que depois se retirou. A transição foi pacífica e o
Presidente que o substituiu (Ali Hassan Mwinyi) continuou sendo amigo dele, que
por sua vez foi substituído por um outro (Benjamin Mkapa), que também cumpriu e
saiu. Está agora o (Jakaya) Kikwete e continuam ligados. Isso faz-nos dizer que
Moçambique está a andar como a Tanzania. A África está a tomar medidas colectivas
para que não haja distúrbios em tempos de transição, mas não falta um país ou
outro que, utilizando certos pretextos, traz distúrbios, como é o caso do
Burundi, onde há uma legislação um pouco ambígua, em que por um lado há a
Constituição e por outro há um acordo de paz e uns lêem os seus direitos no
acordo de paz e outros na Constituição. É o que está a acontecer no Burundi.
NOT. –Como é que olha
para a gestão do país depois de si em termos de governação?
JC –Depois de eu sair
entrou o Presidente Guebuza e eu penso que ele, pegando por onde nós tínhamos
deixado, materializou várias opções construindo. Construiu infra-estruturas no
país como, por exemplo, as pontes que nós já tínhamos preparado os requisitos
necessários para a sua construção, como a ponte sobre o Zambeze, a ponte sobre
o Rovuma, a ponte sobre o rio Incomáti, aqui na Moamba, e outras. Ele
materializou o que já vinha, mas também teve várias inovações que foram
facilitadas pelo facto de ter havido uma injecção de capitais no país. Ele
construiu infra-estruturas públicas que nos faziam muita falta. Os nossos
ministérios, a Procuradoria-Geral da República, funcionavam em residências ou
casas que não ofereciam as características necessárias para o seu
funcionamento; a própria Presidência da República funcionava numa casa que era
um clube, o que não oferecia as condições necessárias para o trabalho
eficiente. O Presidente Guebuza fez tudo isso e mais actividades em muitos
sectores. No que diz respeito à inclusão do povo nos debates, ele continuou com
uma actividade que eu exerci durante os 18 anos em que estive no poder, que é
visitar frequentemente as bases e discutir directamente com Governos locais e
com a população, também fez uma aposta. Eu fazia isso e ele continuou a fazer
com o nome de Presidência Aberta. A diferença é que ele fazia com grande
intensidade, até porque ele foi secretário-geral do partido e fez um ensaio
quando tinha mais liberdade para implantar melhor as bases da Frelimo. Saíram
muitas realizações no tempo do Presidente Guebuza e importa continuar em todas
as áreas. Quando saímos deixámos um clima para os investimentos e estes
investimentos vieram para que pudéssemos ter o país a continuar o seu
crescimento. Por exemplo, a Vale do Rio Doce já estava cá, depois de termos a
Mozal, a TRAC e os corredores (de desenvolvimento de Maputo, Beira e Nacala)
também; tínhamos iniciado a reconstrução da linha férrea da Beira para Moatize
(Linha de Sena). O Presidente Guebuza completou as negociações com Portugal
sobre Cahora Bassa, em que foi mais ousado nas ofertas feitas a Portugal para
terminar de uma vez o processo, e estou satisfeito porque tinha feito uma
abertura de clareiras no terreno, etc. Enfim, há uma linha de coisas que foram
realizadas, que para mim estão na linha que foi preconizada. Agora temos um
novo Presidente que vai continuar a fazer crescer o país com a teoria dele dos
andares, em que diz que vai construir o quarto andar. Ele está consciente de
que os pilares continuam consolidados e não se devem deixar enferrujar, pois caso
contrário terá que construir outro edifício. Mas ele vai continuar o edifício
que nós deixámos, dentro da nossa filosofia de mudanças na continuidade. Ele
terá que imprimir mudanças na maneira de fazer, na maneira de ser, na maneira
de contactar, de dialogar, etc., etc., mas com o objectivo principal em mente.
A não ser que nos diga que é preciso deixar esse objectivo para ir buscar outro
e então nesse caso será uma mudança radical… (GIL FILIPE)
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