terça-feira, 23 de junho de 2015

COMO SE DEFENDE A PAZ E A DEMOCRACIA

21 junho 2015, Jornal de Angola (Angola)

José Ribeiro

A grande vitória dos angolanos em 40 anos de Independência foi terem acabado com a guerra. Mas outro grande sucesso foi terem gorado qualquer tentativa de regresso ao caos e à situação que provocou o conflito armado.

Nisto reside o grande “milagre” de Angola.

O caos precede a violência e mina o exercício das liberdades. Num ambiente caótico, as expectativas sociais tornam-se inviáveis. Ninguém deve ignorar o pecado original que foi a instabilidade gerada no período que se seguiu ao 25 de Abril. Nessa altura juntou-se a revolta contra a repressão colonial às manobras contra a Independência e criou-se o caldo que conduziu à escalada de guerra, que se prolongou por mais 30 anos. Apesar de todos os esforços de Agostinho Neto, em pouco tempo a destruição atravessou o país, como uma lança que nos rasga a carne e tudo desfaz. A Independência exigiu o sacrifício dos heróis, mas muitas vidas teriam sido poupadas se a voz da razão tivesse sido ouvida.

A História Mundial está cheia de exemplos de países que caíram em guerras ou no totalitarismo após um processo de degeneração social. E todos devemos aprender com isso. A subida de Hitler ao poder na Alemanha, em 1932, teve como pano de fundo a crise económica, o crescimento da miséria, da prostituição e do desemprego em massa. No Chile, em 1973, o general Pinochet apoiou-se
na insatisfação popular provocada por capitalistas e pela CIA para dar o seu golpe e derrubar a democracia. A desordem social no Zaíre levou, em 1965, o sargento Mobutu ao poder.

A crise na Europa dos nossos dias e o aumento do exército de desempregados europeus trazem de volta a direita xenófoba e explicam a conflitualidade latente no velho continente. A saída para essa panela de pressão pronta a explodir tem sido uma fuga para a frente, com a abertura de guerras no exterior.

O conflito no nosso país é recente. E é natural que, apesar do passo de gigante que foi dado no sentido da reconciliação nacional e da reabilitação económica, haja ainda riscos de violência. Nesse aspecto, o episódio da chacina no Huambo, em Abril, durante a qual foram mortos polícias e cidadãos por adeptos fanáticos de uma seita, merece reflexão.

A Polícia Nacional tem um papel único na manutenção da paz e da estabilidade. Numa sondagem, publicada em 2008 no Jornal de Angola, perguntava-se aos inquiridos que entidade, entre muitas outras, seria mais importante para assegurar a ordem e tranquilidade no decorrer das eleições desse ano. A maioria dos inquiridos apontou a Polícia Nacional. Muitos dos meus colegas ficaram alarmados, ofendidos mesmo, com a resposta, porque esperavam que a resposta recaísse sobre outra entidade. Mas não, a entidade certa foi a Polícia Nacional. Os angolanos sabem quem esteve ao lado deles, todos os dias, durante a guerra, e os defendeu dos ataques da rebelião armada de Jonas Savimbi. Os cidadãos depositam, também hoje, esperanças na Polícia Nacional, no combate à criminalidade de todo o tipo.

De facto, nenhuma outra instituição nacional tem a importância na salvaguarda da segurança pública e na protecção dos direitos dos cidadãos que tem a Polícia Nacional. No “caso Kalupeteka” ocorreu uma evidente situação de desordem pública, com agressões aos agentes, e nessas situações cabe precisamente à Polícia Nacional exercer o seu papel de garante da segurança do regime democrático e de reposição da legalidade, como determina a Constituição e a legislação ordinária.

As forças policiais e de segurança nos regimes democráticos estão na primeira linha na defesa da legalidade e não podem furtar-se ao cumprimento do seu dever. E não é preciso ir muito longe para compreender isso, porque, também aqui, há muitos exemplos.

Nenhuma força policial no mundo tem enfrentado problemas tão complexos como a dos Estados Unidos – país com o qual o sistema político angolano começa a assumir semelhanças, apesar das diferenças de “idade” – até as novas instalações da Assembleia Nacional se parecem com o Capitólio.

Estive nos últimos tempos em três cidades americanas: Washington, Las Vegas e Chicago. Naquele país desenvolvido, em que a estratificação social tem séculos de existência, um canal de televisão, a FOX News, abriu um dia destes o noticiário informando: “há uma guerra em algumas cidades americanas”. Assim mesmo! Nesse dia, em Washington, eu próprio interroguei-me se não corria riscos se saísse à rua. A FOX martelava: “um clima de violência está a emergir nos Estados Unidos”. E o meu telemóvel alertava para o perigo de uma tempestade na zona do hotel onde estava alojado.

Ora, nada de anormal aconteceu e o que se passou foi o seguinte. A FOX News, que está entre as estações de televisão de maior audiência, é extremamente agressiva em relação ao Presidente Barack Obama. O canal alinha abertamente com os ultraconservadores e a indústria armamentista norte-americana.
E nesse dia estava a capitalizar as reacções de protesto nas ruas face aos actos de ódio racial policial, ocorridos com Freddie Gray, 25 anos, em Baltimore, Rekia Boyd, 22 anos, em Chicago, Michael Brown, de 18 anos, em Ferguson. O mais recentemente os episódios de Mckiney e Charleston, onde um simpatizante dos antigos regimes da Rodésia e da África do Sul disparou a matar numa igreja afro-americana. Em vez de condenar os actos racistas, a FOX associava a Administração Obama ao aumento da “criminalidade”.

Nesse mesmo dia expiravam alguns artigos do “Patriotic Act” que davam à NSA poderes de espionagem aos cidadãos norte-americanos. A FOX recordava os atentados do 11 de Setembro e levantava o fantasma do regresso do terrorismo. Dias antes, a Polícia tinha abatido a tiro na rua um suspeito de terrorismo. Para quem ouvisse as notícias, era uma nova guerra nos EUA.

Em Angola, há também quem se desunhe em desempenhar o papel incendiário da FOX. Há depois quem se aproveite politicamente da violência que fomenta. Por essa razão, a Polícia Nacional, as forças de segurança e os serviços de informação angolanos devem estar preparados para lidar com fenómenos tão complexos como o risco de instabilidade e de caos, mais ainda num contexto de crescimento populacional e urbano desordenado, como o que ocorre.

O Governo soube acabar com a guerra e tem sabido travar a tentação para novas confusões internas. Esse é o maior sucesso dos 40 anos de Independência, porque sem isso nada é possível. A ideia das autoridades não consiste em limitar o direito à manifestação ou à liberdade de expressão – até porque muitas já foram realizadas – mas está em garantir que esses direitos sejam exercidos num ambiente de segurança e de respeito pelo outro e pela diferença.

O clima exacerbado de insulto gratuito, de ruído, de ódio e xenofobia que conduzem à violência já mostrou que efeitos produz. Neste mês de Junho, em que se comemora mais um aniversário do massacre de Soweto, cometido em 1976 pelo regime desumano do apartheid na África do Sul, nunca é demais recordar a necessidade do combate ao ódio racial.

Em 40 anos de independência, Angola conseguiu ter a paz e a estabilidade necessárias para pôr em prática os programas de reconstrução e desenvolvimento do país, mas também para construir uma sociedade de igualdade de oportunidades e de justiça social. Mas é preciso saber preservar essas conquistas.

  

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