20 março 2016, Sul 21 http://www.sul21.com.br (Brasil)
Nas últimas semanas,
Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal, tem erguido a voz
contra o que considera ser um perigoso movimento de atropelo da ordem jurídica
no país. Em recentes manifestações, Marco Aurélio criticou a flexibilização do princípio
da não culpabilidade, e a liberação para a Receita Federal do acesso direto aos
dados bancários de qualquer cidadão brasileiro. Na semana passada, o ministro
criticou a conduta do juiz Sérgio Moro, no episódio do vazamento do conteúdo
das interceptações telefônicas, envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva e a presidenta Dilma Rousseff.
Em entrevista concedida
por telefone ao Sul21, Marco Aurélio fala sobre esses episódios e critica a
conduta de Sérgio Moro: “Ele não é o único juiz do país e deve atuar como todo
juiz. Agora, houve essa divulgação por terceiro de sigilo telefônico. Isso é
crime, está na lei. Ele simplesmente deixou de lado a lei. Isso está
escancarado. Não se avança culturalmente, atropelando a ordem jurídica,
principalmente a constitucional”, adverte.
Sul21: Considerando os acontecimentos dos últimos dias, como
o senhor definiria a atual situação política do Brasil? Na sua avaliação, há
uma ameaça de
ruptura constitucional ou de ruptura social?
Marco Aurélio Mello: A situação chegou a um patamar inimaginável. Eu penso
que nós precisamos deixar as instituições funcionarem segundo o figurino legal,
porque fora da lei não há salvação. Aí vigora o critério de plantão e teremos
só insegurança jurídica. As instituições vêm funcionando, com alguns
pecadilhos, mas vêm funcionando. Não vejo uma ameaça de ruptura. O que eu
receio é o problema das manifestações de rua. Mas aí nós contamos com uma
polícia repressiva, que é a polícia militar, no caso de conflitos entre os
segmentos que defendem o impeachment e os segmentos que apoiam o governo. Só
receio a eclosão de conflitos de rua.
Sul21: Algumas decisões do juiz Sérgio Moro vêm sendo
objeto de polêmica, como esta mais recente das interceptações telefônicas
envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a presidenta Dilma
Rousseff. Como o senhor avalia estas decisões?
Marco Aurélio Mello: Ele não é o único juiz do país e deve atuar como
todo juiz. Agora, houve essa divulgação por terceiros de sigilo telefônico.
Isso é crime, está na lei. Ele simplesmente deixou de lado a lei. Isso está
escancarado e foi objeto, inclusive, de reportagem no exterior. Não se avança
culturalmente, atropelando a ordem jurídica, principalmente a constitucional. O
avanço pressupõe a observância irrestrita do que está escrito na lei de
regência da matéria. Dizer que interessa ao público em geral conhecer o teor de
gravações sigilosas não se sustenta. O público também está submetido à
legislação.
Sul21: Na sua opinião, essas pressões midiáticas e de
setores da chamada opinião pública vêm de certo modo contaminando algumas
decisões judiciais?
Marco Aurélio Mello: Os fatos foram se acumulando. Nós tivemos a
divulgação, para mim imprópria, do objeto da delação do senador Delcídio Amaral
e agora, por último, tivemos a divulgação também da interceptação telefônica,
com vários diálogos da presidente, do ex-presidente Lula, do presidente do
Partido dos Trabalhadores com o ministro Jacques Wagner. Isso é muito ruim pois
implica colocar lenha na fogueira e não se avança assim, de cambulhada.
Sul21: Os ministros do Supremo, para além do que é
debatido durante as sessões no plenário, têm conversado entre si sobre a
situação política do país?
Marco Aurélio Mello: Não. Nós temos uma tradição de não comentar sobre
processos, nem de processos que está sob a relatoria de um dos integrantes nem
a situação política do país. Cada qual tem a sua concepção e aguarda o momento
de seu pronunciar, se houver um conflito de posições. Já se disse que o Supremo
é composto por onze ilhas. Acho bom que seja assim, que guardemos no nosso
convívio uma certa cerimônia. O sistema americano é diferente. Lá, quando chega
uma controvérsia, os juízes trocam memorandos entre si. Aqui nós atuamos em
sessão pública, que inclusive é veiculada pela TV Justiça, de uma forma
totalmente diferente.
Sul21: A Constituição de 1988 incorporou um espírito
garantista de direitos. Na sua avaliação, esse espírito estaria sob ameaça no
Brasil?
Marco Aurélio Mello: Toda vez que se atropela o que está previsto em uma
norma, nós temos a colocação em plano secundário de liberdades constitucionais.
Isso ocorreu, continuo dizendo, com a flexibilização do princípio da não
culpabilidade e ocorreu também quando se admitiu, depois de decisão tomada há
cerca de cinco anos, que a Receita Federal, que é parte na relação jurídica
tributária, pode ter acesso direto aos dados bancários.
Sul21: A expressão “ativismo jurídico” vem circulando
muito na mídia brasileira e nos debates sobre a conjuntura atual. Qual sua
opinião sobre essa expressão?
Marco Aurélio Mello: A atuação do Judiciário brasileiro é vinculada ao
direito positivo, que é o direito aprovado pela casa legislativa ou pelas casas
legislativas. Não cabe atuar à margem da lei. À margem da lei não há salvação.
Se for assim, vinga que critério? Não o critério normativo, da norma a qual
estamos submetidos pelo princípio da legalidade. Ninguém é obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Se o que vale é o
critério subjetivo do julgador, isso gera uma insegurança muito grande.
Sul21: Esse ativismo jurídico vem acontecendo em um
nível preocupante, na sua opinião?
Marco Aurélio Mello: Há um afã muito grande de se buscar correção de
rumos. Mas a correção de rumos pressupõe a observância das regras jurídicas.
Eu, por exemplo, nunca vi tanta delação premiada, essa postura de co-réu
querendo colaborar com o Judiciário. Eu nunca vi tanta prisão preventiva como
nós temos no Brasil em geral. A população carcerária provisória chegou
praticamente ao mesmo patamar da definitiva, em que pese a existência do
princípio da não culpabilidade. Tem alguma coisa errada. Não é por aí que nós
avançaremos e chegaremos ao Brasil sonhado.
Sul21: Como deve ser o encaminhamento da série de
ações enviadas ao Supremo contestando a posse do ex-presidente Lula como
ministro?
Marco Aurélio Mello: Eu recebi uma ação cautelar e neguei seguimento, pois
havia um defeito instrumental. Nem cheguei a entrar no mérito. Nós temos agora
pendentes no Supremo seis mandados de segurança com o ministro Gilmar Mendes e
duas ações de descumprimento de preceito fundamental com o ministro Teori
Zavaski, além de outras ações que tem se veiculado que existem e que estariam
aguardando distribuição. Como também temos cerca de 20 ações populares em
andamento.
No tocante aos mandados
de segurança, a competência quanto à medida de urgência liminar é do relator. Não
é julgamento definitivo. Quanto à arguição de descumprimento de preceito
fundamental, muito embora a atribuição seja do pleno, este não estando reunido
– só teremos sessão agora no dia 28 de março – o relator é quem atua ad
referendum do plenário.
Temos que esperar as
próximas horas. A situação se agravou muito com os últimos episódios envolvendo
a delação do senador Delcídio e a divulgação das interceptações telefônicas.
Não podemos incendiar o país.
Sul21: O STF deverá ter um papel fundamental para que
isso não ocorra…
Marco Aurélio Mello: Sim. É a última trincheira da cidadania. Quando o
Supremo falha, você não tem a quem recorrer. Por isso é que precisamos ter uma
compenetração maior, recebendo não só a legislação e as regras da Constituição
Federal, que precisam ser um pouco mais amadas pelos brasileiros, como também
os fatos envolvidos.
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