18 março 2016, Resistência
http://www.resistencia.cc (Brasil)
Por Igor Fuser*
A tentativa contra o governo Dilma e a campanha antipetista só podem ser
plenamente entendidos no contexto da conjuntura internacional e, em especial,
da ofensiva dos Estados Unidos para garantir, a qualquer custo, a posição de
supremacia geopolítica obtida ao final da Guerra Fria.
A estratégia do imperialismo no período que se abriu com a dissolução da
União Soviética foi apresentada, de uma forma crua e bruta, por Paul Wolfowitz,
alto funcionário do Departamento de Estado que recebeu do presidente George
Bush (pai) a tarefa de colocar no papel as linhas mestras da conduta da então
única superpotência, a partir das ideias consensuais entre os formuladores de
política externa de Washington.
Wolfowitz escreveu, com todas as letras, que o objetivo central da
conduta dos EUA é impedir, por todos os meios, inclusive pelo uso da força
militar, o surgimento de uma nova potência capaz de ameaçar sua posição de
hegemonia global. Ele foi além e deixou claro que esse esforço inclui a adoção
de medidas para bloquear, do mesmo modo, a ascensão de potências regionais que
possam pôr em risco os interesses dos EUA em qualquer lugar do mundo.
O relatório, que deveria ser
mantido em segredo, vazou para o New York
Times e causou constrangimento às autoridades de Washington, pois outros
governos se sentiram melindrados com a recomendação de Wolfowitz para que
fossem tomadas medidas a fim de garantir a submissão dos aliados europeus aos
EUA mesmo depois de eliminada a “ameaça soviética”. Engavetou-se o texto, mas
suas proposições têm sido seguidas à risca por todos os presidentes nos últimos
25 anos, independente de filiação partidária. E o autor do relatório, que mais
tarde se destacou como o mais fervoroso instigador da invasão do Iraque, acabou
sendo premiado com o cargo de presidente do Banco Mundial.
A disseminação de governos de esquerda e/ou centro-esquerda na América
Latina a partir da eleição de Hugo Chávez na Venezuela, ao final de 1998, veio
na contramão dos esforços estratégicos estadunidenses. A maré progressista fez
naufragar a Alca e deu margem à primeira tentativa eficaz de transformar o
“quintal” dos EUA em um espaço geopolítico soberano, livre do domínio
imperialista e articulado a partir de suas próprias instituições, como a Celac,
a Unasul, o Mercosul e a Alba. Para coroar a desfeita, articulou-se um
movimento do campo geopolítico sul-americano, liderado pelo Brasil, no rumo de
uma aproximação com a China e a Rússia, através dos Brics – iniciativa
anti-hegemônica impulsionada pelas duas potências que, em aliança cada vez mais
estreita entre si, parecem materializar o fantasma imaginado por Wolfowitz no
imediato pós-Guerra Fria.
É difícil exagerar o impacto que a virada à esquerda na América Latina
(especialmente na América do Sul) provocou entre os estrategistas de
Washington. O projeto de uma integração regional sul-americana em termos
autônomos, sobre o alicerce de políticas desenvolvimentistas, nacionalistas e
em alguns casos até socializantes, significa a perda da posição privilegiada
que o Tio Sam vinha exercendo no Hemisfério Ocidental desde o final do século
dezenove. Durante mais de um século os países latino-americanos constituíram
uma área exclusiva para o exercício da hegemonia dos EUA, em contraste com a
situação do imperialismo estadunidense nas demais áreas do planeta, onde sempre
foi obrigado a disputar com outros atores poderosos a influência econômica e
política. O que o comandante Chávez propunha, ao retomar o projeto de
emancipação regional formulado originalmente por Simón Bolívar, era, nada mais,
nada menos, que o fim da Doutrina Monroe, pedra angular da dominação
estadunidense sobre a América Latina.
Vários fatores deram chances de sucesso ao projeto
progressista/autonomista na nossa região. Entre outros, contribuíram para isso
o fracasso do modelo econômico neoliberal; a ascensão da China como parceiro
comercial alternativo à Europa, Japão e EUA; a valorização do preço das
commodities agrícolas e minerais; a posição legalista dos militares,
desgastados pelo trauma dos regimes genocidas no Cone Sul.
O imperialismo, em estreita aliança com a burguesia de cada um dos
países da região, tratou de reagir, desde o início, com a finalidade de conter
a onda progressista e remover cada um dos governos não alinhados com as
preferências de Washington. As primeiras tentativas, no período presidencial de
George W. Bush, foram um fiasco, como se viu na Venezuela, alvo, em 2002, de
duas tentativas golpistas contra o governo de Chávez. Mas seu sucessor, Barack
Obama, mostrou mais habilidade, explorando os nossos pontos mais débeis para
promover a desestabilização de governos esquerdizantes e sua substituição por
dóceis serviçais do imperialismo. Assim vieram os golpes bem-sucedidos em
Honduras e, em seguida, no Paraguai – os elos mais fracos da corrente
progressista.
A inversão do ciclo econômico, a partir da crise de 2008, foi a senha
para a atual ofensiva golpista promovida a partir do centro do império. Com a
queda dos preços dos produtos primários, os governos da região se viram
fragilizados, já que a onda progressista, apesar de proporcionar inegáveis
avanços sociais em benefício das maiorias desfavorecidas, mostrou-se incapaz de
levar adiante transformações econômicas estruturais no sentido da superação da
dependência.
A nova conjuntura, muito mais difícil, instalou-se justamente no momento
em que, por efeito de suas próprias contradições internas, o projeto
progressista perdia o vigor inicial e apresentava sinais claros de estagnação.
A morte de Chávez, nesse cenário, representou um ponto de virada. Mais do que a
perda de um líder insubstituível, essa tragédia foi um fato emblemático do
impasse colocado para a continuidade do movimento emancipatório regional,
forçado a optar entre o aprofundamento e radicalização das mudanças, mesmo sem
que as condições estivessem maduras para esse passo, ou o inevitável declínio, com
o risco de uma reversão catastrófica de todas as conquistas. Esse segundo
cenário é a ameaça que paira sobre os povos latino-americanos no presente
momento.
Temos diante de nós um inimigo que conseguiu aprender com as derrotas da
década passada e reformular sua tática, sem abrir mão do objetivo estratégico
de esmagar todas as vertentes da esquerda. Nas operações para reverter o rumo
progressista – seja pela via eleitoral, como na Argentina, ou pelo golpismo
“branco”, ao estilo paraguaio – a mão pesada do imperialismo ianque permanece
invisível. Mais inteligente que seu antecessor, Obama (isto é, seus assessores
para a política “hemisférica”) terceirizou o golpismo. A influência dos EUA –
tanto por atores estatais quanto privados – em apoio às conspirações da direita
se faz presente, no caso brasileiro, com o financiamento a grupos que organizam
os protestos dos “coxinhas” brasileiros ou o fornecimento de informações sobre
a Petrobras obtidas por espionagem aos investigadores da Lava-Jato. Mas o
núcleo da atual da ofensiva direitista está situado dentro de cada um dos
países. Confiando na vocação da burguesia latino-americana a operar como um
fiel lacaio do imperialismo, Washington espera que ela cumpra a tarefa de se
livrar do bolivarianismo e das demais vertentes reformistas, como o lulismo.
Enganou-se quem acreditou que, em algum momento, a tolerância de setores
das classes dominantes em relação a governantes progressistas fosse mais do que
um recurso temporário e interesseiro. A burguesia, apesar de todas as suas
diferenças internas, constitui uma única classe social, e é ilusão supor que no
atual estágio de globalização do capitalismo uma de suas frações possa se aliar
com a classe trabalhadora contra outras frações e contra o imperialismo. Não se
encontram, em qualquer país latino-americano, indicadores concretos de um apoio
firme de setores burgueses expressivos, com base social concreta, a um projeto
político progressista. O que se verifica, sim, especialmente no Brasil e na
Argentina, é a atitude de muitos empresários em aproveitar as oportunidades de
negócios abertas pelas políticas neodesenvolvimentistas, sem se comprometer
estrategicamente com o destino dessas experiências. Enquanto os lucros estavam
garantidos, as classes dominantes aceitaram, em alguma medida, a gestão do
Estado por atores políticos ligados aos setores populares, enquanto aguardavam
pelo melhor momento para virar o jogo.
E essa hora chegou. A burguesia, empoderada pelo contexto de mal-estar
econômico a partir de 2010 e também pelas nossas próprias falhas, em particular
pela incapacidade de construir uma hegemonia popular no campo das ideias e pela
dependência em relação a lideranças personalistas, sujeitas a limites humanos
de todos os tipos, entendeu que este é o momento de saltar na nossa jugular.
Enfrentamos agora, na defensiva, um inimigo poderoso, sem que tenhamos
condições de escolher o terreno dessa disputa, nem as armas, nem o momento.
Dessas batalhas, no Brasil, na Venezuela, na Bolívia pós-referendo, na
Argentina pós-2015, da nossa capacidade de resistir, de preservar as nossas
conquistas, de corrigir nossos erros e de preservar nossa unidade, depende o
futuro da América Latina nas próximas décadas.
* Igor Fuser é professor da Universidade Federal do ABC e militante da organização
Consulta Popular
Fonte: Revista Fórum
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