11 março 2016, Outras Palavras http://outraspalavras.net (Brasil)
Pré-Sal para petroleiras globais. Fim da
demarcação indígena. “Direito” ao armamento pessoal. Veto à família homoafetiva
e muito mais. Que projetos escondem-se atrás da suposta “luta contra corrupção”
Por Cristina Fróes de Borja Reis, Tatiana
Berringer e Maria Caramez Carlotto
A condução coercitiva do ex-presidente Lula em 4 de março foi, até o
momento, o episódio mais grave da atual crise econômica e política no Brasil. A
crise nos coloca diante de uma ameaça, diretamente ligada à correlação de
forças existente na sociedade: os interesses do grande capital financeiro, há
muito questionados, podem retomar completamente o controle do jogo.
Diante do espetáculo criado pela imprensa na chamada “luta contra a
corrupção”, os interesses dominantes amplamente representados no Congresso
aproveitam-se da cortina de fumaça para impor sua agenda regressiva ao país. Ao
invés de discutir com seriedade e aprovar uma reforma política que pusesse fim
ao financiamento empresarial de campanhas eleitorais, que é a base da estrutura
do sistema político brasileiro criado no fim da ditadura militar e que está na
raiz do escândalo atual, oportunisticamente resgata-se antigas e derrotadas
ideias sob a forma de projetos de lei (PL), propostas de emendas constitucionais
(PEC) e projetos de resolução do Senado (PRS) à aprovação sob regime de
urgência. O rápido exame de alguns deles evidencia como atentam contra a
soberania nacional, a democracia e
os direitos humanos no Brasil.
Começando pela economia, o PRS 84/2007, apresentado pelo senador José
Serra (PSDB/SP), estabelece um teto para a dívida pública líquida e bruta da
União, reduzindo a autonomia de política macroeconômica do Estado (na sua
capacidade de atuação anticíclica). Isso significa, no curto prazo, aprofundar
o ajuste fiscal em curso desde 2015 e comprometer as possibilidades de saída da
crise pois, também no médio e longo prazo, o estímulo tributário e de gastos
públicos é fundamental para acender a dinâmica de investimentos doméstica. Duas
das questões mais sensíveis e que afeta diretamente os gastos públicos são a
reforma da previdência e a política de valorização do salário mínimo. Ambas
estão sendo transformadas em prejuízo dos trabalhadores (como ficou claro no
começo de 2015 com a imediata investida, naquele momento mal sucedida, para
alterar a regra da valorização do mínimo e na Medida Provisória 680/2015, no
sentido da flexibilização das leis trabalhistas), dos aposentados e da própria
autonomia de política econômica e social.
A Lei de Responsabilidade das Estatais (PLS 555/2015), cujo relator é o
senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), é mais uma proposta em curso que fere o
princípio da autonomia, ao criar um marco regulatório que enquadra as empresas
estatais na lógica do mercado financeiro. Além de impedir filiados a partidos e
sindicalistas de participarem na composição dos conselhos e diretorias,
prioriza quem tem experiência no mercado. Tal reforma possibilita, sob a imagem
de um falso republicanismo, a captura por parte de grupos particulares privados,
nacionais ou estrangeiros, dos bens públicos que impactam fortemente na
atividade econômica nacional e na inserção geopolítica do país.
Aqui residem dois movimentos igualmente perniciosos. O primeiro é a
ameaça aos direitos de militantes de partidos e sindicatos — algo que fortalece
a ampla propaganda de criminalização da política atualmente em curso,
subtraindo dos atores políticos seus instrumentos legítimos de representação.
Na esteira de um suposto esforço de combate à corrupção, difunde-se uma ideologia
elitista e tecnicista, que associa toda e qualquer atividade política à busca
do auto-interesse, ao descaso com a coisa pública quando não à simples
prevaricação, como se o mercado e as estruturas burocráticas do Estado não
fossem, eles também, permeados de interesses e visões ideológicas.
O segundo movimento é o de recondução da política externa e da margem de
manobra do Estado diante das grandes potências, especialmente dos Estados
Unidos, já que o posicionamento geopolítico no campo energético é crucial para
a soberania brasileira e latino-americana. Ao contrário, o movimento de curso é
de privatização dos recursos naturais e um benefício da maior participação dos
grupos financeiros internacionais, representando uma subtração da soberania nacional
e o fortalecimento deles.
É exatamente a soberania nacional que está em jogo com a aprovação pelo
Senado Federal do PLS 131/ 2015, também de autoria do senador José Serra e
atualmente tramitando na Câmara como PL 4567/2016. O projeto estabelece que a Petrobrás
terá a prerrogativa de escolher se quer ser operadora do campo do Pré-Sal ou se
prefere se abster da exploração mínima de 30% obrigada pela lei. Portanto, abre
possibilidade para o capital privado, nacional e estrangeiro, se apropriar
ainda mais de um recurso estratégico. Além disso, limita o poder fiscalizador
que a estatal brasileira exerceria sobre a exploração do campo. Ou seja, não
somente não garante que as operações passem a ser feitas maximizando
lucratividade e eficiência, como desconsidera as implicações mais abrangentes
de sua operação sobre a estrutura produtiva doméstica e suas consequências
distributivas – em prejuízo, novamente, dos interesses da maioria dos
brasileiros.
Falando na possibilidade de maior participação estrangeira na propriedade
de ativos brasileiros, está em trâmite um texto substitutivo ao PL 4059/12 para
flexibilizar o processo de compra de terras brasileiras por estrangeiros. O
texto contraria parecer publicado pela Advocacia Geral da União — que veda, por
exemplo, empresas estrangeiras adquirirem imóvel rural com mais de 50 módulos
de exploração indefinida. Paralelamente, também se fortalecem os interesses
ruralistas com a PEC 215/ 2000, que tem como objetivo retirar do Executivo o
poder para demarcar terra indígena, transferindo a palavra final sobre
demarcação das terras para o Congresso Nacional. Na prática, as terras ditas
“tradicionais” passarão a ser interpretadas como qualquer outra propriedade
rural. Ainda sobre esse tema, seguiu para a câmara dos Deputados a PEC 71/2011
(relatada pelo senador Blairo Maggi (PR/MT) e aprovada de forma unânime no
Senado), que prevê a indenização a proprietários rurais com áreas incidentes em
Terras Indígenas.
Há ainda a tentativa de flexibilização do estatuto do desarmamento. O
texto substitutivo, do deputado Laudivio Carvalho (PMDB-MG), aprovado em uma
comissão especial do Congresso, facilita a obtenção do porte de armas por mudar
os requisitos necessários para o cidadão comum receber autorização para
circular nas ruas portando armas de calibre permitido. Trocando em miúdos, será
facilitado o acesso às armas por particulares, possibilitando, no limite, que
novas milícias possam atuar concorrentemente às forças do Estado – aumentando,
ao invés de retrair a violência.
Também no campo dos direitos civis, o PL 5069/ 2013 do deputado Eduardo
Cunha (PMDB/RJ) aprovado pela Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) da
Câmara, altera regras sobre o aborto, criminalizando quem preste qualquer
auxílio ou orientação. No caso de estupro, o texto prevê que o aborto seja
permitido somente com exame de corpo delito. Já o Estatuto da Família, PL
6583/2013, de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR/ PE), sedimenta uma
definição excludente de entidade familiar (“o núcleo social formado a partir da
união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou
ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”), o que
tem como consequência a exclusão do casamento homossexual e também da adoção
por famílias formadas por homossexuais marcando um retrocesso enorme nos poucos
direitos conquistados pela comunidade LGBT.
Ainda aguarda apreciação do Senado Federal a PEC 171, proposta
originalmente em 1993, sobre a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos.
Além de especialistas concordarem de modo quase unânime que a medida não afasta
efetivamente adolescentes do crime, seu efeito político imediato é isentar o
Estado do compromisso com políticas de juventude, combatendo-se o efeito e não
a causa da criminalidade, como o comprova a experiência de outros países. A
medida é absurda dentre outros motivos porque já existem leis que
responsabilizam menores infratores. Todos esses diferentes projetos simbolizam
enormes retrocessos nos direitos civis, que prejudicam principal e diretamente
as vidas das mulheres, jovens e LGBTs.
Enquanto emergem aparatos legais tão polêmicos, é assustadora a
aprovação da lei anti-terrorismo pelo Plenário do Senado em 24 de fevereiro de
2016, que reformula o conceito de “organização terrorista”. Como alardeiam os
críticos, e também a Organização das Nações Unidas (ONU), o projeto agride os
direitos humanos porque a tipificação para o crime de terrorismo está ampla e
abre margem para a repressão de movimentos sociais e manifestações populares.
Em nota, a ONU reforçou que definições imprecisas não são compatíveis com a
perspectiva das normas internacionais de Direitos Humanos. Ou seja, no atual
contexto em que os diversos atores políticos deveriam se fortalecer para fazer
escutar suas vozes e disputar o poder, reprime-se seu direito fundamental de se
organizar, movimentar e manifestar.
Mesmo que se seja a favor de um ou mais dos projetos aqui tomados
apresentados, há de concordar que a premissa elementar, de que o que não pode
ser limitado é a garantia da preservação das instituições democráticas. Ou
seja, não é hora para decisões tão importantes serem tomadas sem amplo debate
na esfera pública, com espaço para crítica e reflexão. A prioridade é, também,
zelar pelos direitos humanos e pelas conquistas sociais que efetivamente
melhoraram as condições de vida da maioria da sociedade brasileira. É preciso
pensar também se essa ofensiva contra empresas brasileiras e contra o atual
governo é genuinamente uma tentativa de combater a corrupção e moralizar a
política nacional, ou se é uma investida seletiva a favor dos interesses
financeiros e internacionais, contra a alteração da correlação de forças da
sociedade brasileira dos últimos anos – em que se fortaleceu a posição do
Brasil na geopolítica mundial ao mesmo tempo em que se retirou milhões de
pessoas da miséria, aumentou-se a remuneração real média dos trabalhadores e
atingiu-se a menor taxa de desemprego observada desde o fim da ditadura
militar.
Cristina Fróes de Borja Reis, Doutora em
Economia pela UFRJ, Professora de Economia e Relações Internacionais na UFABC,
autora da monografia premiada pelo Tesouro Nacional Os efeitos do investimento
publico sobre o desenvolvimento econômico: análise aplicada para a economia
brasileira entre 1950 e 2006 (2008).
Tatiana Berringer, Doutora em
Ciência Política pela UNICAMP, Professora de Relações Internacionais na UFABC,
autora do livro A burguesia brasileira e a política externa nos governos FHC e
Lula .(2015).
Maria Caramez Carlotto, Doutora em
Sociologia pela USP, Professora de Relações Internacionais na UFABC, autora do
livro Veredas da mudança na ciência brasileira. Discurso, institucionalização e práticas no cenário
contemporâneo (2013).
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