9
abril 2014, Pátria Latina http://www.patrialatina.com.br (Brasil)
Coluna de José Ribamar Bessa Freire
Que Nhanderu me perdoe, mas não consigo
me alegrar com a canonização de Anchieta decretada na quinta-feira pelo Papa
Francisco. Enquanto a cerimônia era celebrada lá no Vaticano, aqui no Brasil os
sinos das igrejas bimbalhavam festivamente, sem que as badaladas tocassem meu
coração. Bem que me esforcei para compartilhar o júbilo de meus compatriotas
com "o terceiro santo do Brasil". Inutilmente.
A incapacidade de participar da comunhão nacional gera um angustiante sentimento de exclusão. Já havia acontecido comigo na morte de Tancredo Neves espetacularizada pela mídia. O Brasil inteiro em prantos e eu, de olhos secos, coração endurecido. Só chorei a morte de Ulisses Guimarães, o homem que enfrentou os cães da polícia e que tinha nojo da ditadura.
A incapacidade de participar da comunhão nacional gera um angustiante sentimento de exclusão. Já havia acontecido comigo na morte de Tancredo Neves espetacularizada pela mídia. O Brasil inteiro em prantos e eu, de olhos secos, coração endurecido. Só chorei a morte de Ulisses Guimarães, o homem que enfrentou os cães da polícia e que tinha nojo da ditadura.
Mas por que não festejar o novo santo?
Porque creio que ele é do pau oco. A expressão usada aqui como metáfora não
pretende desrespeitar a fé de ninguém. Acontece que para alguém ser santo,
precisa comprovar pelo menos dois milagres. Anchieta foi dispensado disso pelo
'poder de chave' do Papa que usou o sensus fidelis, isto é, o sentimento dos
fiéis, entre os quais estão minhas nove irmãs. Porém, como a sabedoria popular
já comprovou que santo de casa não faz milagre, não é por isso que ele é do pau
oco. É por causa do contrabando, do que está por trás da canonização.
Santo do pau oco - nos ensina Câmara Cascudo em seu Dicionário do Folclore Brasileiro - se refere às "imagens de santos, esculpidas em madeira, que eram ocas e vinham de Portugal cheias de dinheiro falso". Essas estátuas, de diversos tamanhos, serviam também para contrabandear ouro e pedras preciosas. Sendo o poder da religião incomensurável, os fiscais não tinham coragem de abrir o santo para checar a muamba que continha. Se é assim, cabe perguntar: qual é o contrabando trazido de Roma com a canonização de Anchieta?
Santo do pau oco - nos ensina Câmara Cascudo em seu Dicionário do Folclore Brasileiro - se refere às "imagens de santos, esculpidas em madeira, que eram ocas e vinham de Portugal cheias de dinheiro falso". Essas estátuas, de diversos tamanhos, serviam também para contrabandear ouro e pedras preciosas. Sendo o poder da religião incomensurável, os fiscais não tinham coragem de abrir o santo para checar a muamba que continha. Se é assim, cabe perguntar: qual é o contrabando trazido de Roma com a canonização de Anchieta?
Devagar com o andor
É preciso abrir a imagem do novo santo para verificar o que ela esconde em seu interior. O diretor da Faculdade de Teologia da PUC/SP, padre Valeriano Costa, deu uma pista, quando definiu que a canonização "é uma grande oportunidade para a Igreja cultuar esse santo e se lembrar de alguns dos valores que pregava" (O Globo, 04/04/14). O que se está canonizando com Anchieta, portanto, é o trabalho missionário de catequização, conversão e "civilização" dos povos indígenas.
É preciso abrir a imagem do novo santo para verificar o que ela esconde em seu interior. O diretor da Faculdade de Teologia da PUC/SP, padre Valeriano Costa, deu uma pista, quando definiu que a canonização "é uma grande oportunidade para a Igreja cultuar esse santo e se lembrar de alguns dos valores que pregava" (O Globo, 04/04/14). O que se está canonizando com Anchieta, portanto, é o trabalho missionário de catequização, conversão e "civilização" dos povos indígenas.
É disso que se trata. Dentro da imagem
do santo, estão os valores da catequese empreendida pelos jesuítas sob os
auspícios da Coroa de Portugal. Segundo o historiador Gabriel Bittencourt,
autor de um livro sobre Anchieta, ele foi "um homem que soube lidar de
forma diplomática com os índios, aprendeu o tupi-guarani, escreveu a primeira
gramática da língua e estudou as crenças para montar peças teatrais que
ajudassem os nativos a entender as lições de catecismo".
Onde vais tão apressado, periquito
tangedor? Devagar com o andor, que o santo é de barro. Os meios usados por
Anchieta nem sempre foram diplomáticos, como comprovam as cartas que ele
escreveu, algumas delas publicadas em agosto de 1980 pelo Porantim, jornal do
Conselho Indigenista Missionário (CIMI) editado, na época, em Manaus. Numa
delas, Anchieta trata os Tupinambá como "inimigos carniceiros" e se
rejubila por haver conseguido jogar os índios uns contra os outros nos
conflitos entre portugueses e franceses:
"E foi coisa maravilhosa que se achavam e encontravam a flechadas irmãos com irmãos, primos com primos, sobrinhos com tios e mais ainda dois filhos que eram cristãos e estavam do nosso lado contra seu pai que estava contra nós".
"E foi coisa maravilhosa que se achavam e encontravam a flechadas irmãos com irmãos, primos com primos, sobrinhos com tios e mais ainda dois filhos que eram cristãos e estavam do nosso lado contra seu pai que estava contra nós".
A representação dos índios no discurso de Anchieta pode ser avaliada nos versos do poema épico "De gestis Mendi de Saa", escrito em latim para elogiar o poder na pessoa do governador-geral Mem de Sá. Lá os índios são "lobos vorazes, furiosos cães e cruéis leões que nutriam o ávido ventre com carnes humanas". Estes índios "selvagens e animalescos" abandonaram Deus e precisavam ser catequizados para escaparem "das garras de Satanás".
O inquestionável trabalho de Anchieta no campo da linguística, longe de servir para reconhecer as culturas indígenas, foi usado para destruí-las. A gramática que ele fez da língua geral se tornou ferramenta eficaz para veicular valores que negavam e satanizavam as religiões locais, o pensamento, a cosmovisão e os saberes indígenas. Suas peças de teatro, de caráter pedagógico, encenadas pelos índios catequizados, classificaram como "demônios" os personagens da mitologia tupi, condenando o fumo, a medicina indígena, as malocas coletivas, o cauim e os rituais.
O santo é de barro
Se a canonização de Anchieta serve para fazer a apologia da catequese, então estamos mesmo diante de contrabando. O catolicismo guerreiro, arrogante, só admitia um caminho para Deus: o de Roma. As religiões indígenas foram desprezadas, perseguidas, extirpadas a ferro e fogo.
Outro jesuíta, o padre Antônio Vieira, defendeu a catequese como única via para transformar o "índio bárbaro", considerado tábula rasa, folha de papel em branco. O missionário era o escultor que daria feições humanas aos índios:
-- É uma pedra, como dizeis, o índio
rude? Pois trabalhai e continuai com ele. Aplicai o cinzel um dia e outro dia;
dai uma martelada e outra martelada e vereis como dessa pedra tosca e informe
fazeis não só um homem senão um cristão e pode ser um santo - escreveu Vieira.
Apesar da quantidade massiva de mártires indígenas, não se tem notícias de nenhum deles declarado santo, oficialmente reconhecido pela Igreja, mas o barulho de algumas "marteladas" chegaram até os dias de hoje, com notícias sobre as violências cometidas contra os índios, cujas religiões eram consideradas como "superstições", perseguidas pela intolerância.
O resultado da catequese foi avaliado por outro jesuíta brilhante, João Daniel, que viveu 16 anos na Amazônia (1741 a 1757) e relatou suas andanças. Os castigos corporais sistemáticos e o batismo não criaram os cristãos que Anchieta e Vieira queriam: "a religião ficou pouco intrinsicada no coração dos índios", com uma "fé morta no uso das cousas sagradas e na pouca reverência aos sacramentos". Segundo João Daniel, os índios gostavam muito "de medalhas, de verônicas, de escapulários, mas não era por respeito e devoção" e sim para "com eles enfeitar seus macacos e cachorrinhos, atando-lhes ao pescoço".
A muamba que vem escondida dentro do novo santo é essa: um contrabando ideológico, que faz a apologia da prática missionária de Anchieta, sem o menor senso crítico, quando o próprio CIMI, em sua 3ª Assembleia Geral realizada em Goiânia, em julho de 1979, produziu um documento final, assinado também pelos luteranos ali presentes, que diz tudo no seu primeiro parágrafo:
"Reconhecendo os erros que cometemos como Igreja na nossa atuação missionária junto aos povos indígenas, pedimos perdão a eles e a Deus". O CIMI se compromete a mudar sua prática e a respeitar as religiões indígenas "que inclui assumir necessariamente os mitos e a vida religiosa através dos quais cada povo recebe a Revelação de Deus".
Apesar da quantidade massiva de mártires indígenas, não se tem notícias de nenhum deles declarado santo, oficialmente reconhecido pela Igreja, mas o barulho de algumas "marteladas" chegaram até os dias de hoje, com notícias sobre as violências cometidas contra os índios, cujas religiões eram consideradas como "superstições", perseguidas pela intolerância.
O resultado da catequese foi avaliado por outro jesuíta brilhante, João Daniel, que viveu 16 anos na Amazônia (1741 a 1757) e relatou suas andanças. Os castigos corporais sistemáticos e o batismo não criaram os cristãos que Anchieta e Vieira queriam: "a religião ficou pouco intrinsicada no coração dos índios", com uma "fé morta no uso das cousas sagradas e na pouca reverência aos sacramentos". Segundo João Daniel, os índios gostavam muito "de medalhas, de verônicas, de escapulários, mas não era por respeito e devoção" e sim para "com eles enfeitar seus macacos e cachorrinhos, atando-lhes ao pescoço".
A muamba que vem escondida dentro do novo santo é essa: um contrabando ideológico, que faz a apologia da prática missionária de Anchieta, sem o menor senso crítico, quando o próprio CIMI, em sua 3ª Assembleia Geral realizada em Goiânia, em julho de 1979, produziu um documento final, assinado também pelos luteranos ali presentes, que diz tudo no seu primeiro parágrafo:
"Reconhecendo os erros que cometemos como Igreja na nossa atuação missionária junto aos povos indígenas, pedimos perdão a eles e a Deus". O CIMI se compromete a mudar sua prática e a respeitar as religiões indígenas "que inclui assumir necessariamente os mitos e a vida religiosa através dos quais cada povo recebe a Revelação de Deus".
Anchieta é um dos responsáveis por esses
erros. Foi um fiel servidor do sistema colonial, ao contrário de Bartolomé De
Las Casas, o dominicano espanhol que na mesma época ousou romper com o sistema.
Anchieta pode até ser santo, desde que venha sem esse contrabando. E mesmo
assim jamais será santo para os índios. Canonizá-lo para reforçar essas
práticas é um retrocesso, uma reafirmação daquilo que o sociólogo Anibal
Quijano chama de colonialidade, que é mais profunda e duradoura do que o
colonialismo. Esse santo quer reza. De mim, não terá nenhuma.
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