quarta-feira, 30 de abril de 2014

A ESPIONAGEM E OS DIREITOS DO HOMEM

27 abril 2014, Jornal de Angola http://jornaldeangola.sapo.ao (Angola)

Filomeno Manaças

O Brasil voltou a colocar a questão da espionagem na Internet no centro da atenção mundial ao albergar em S. Paulo, durante dois dias, a cimeira internacional NETMundial.

Cerca de mil participantes condenaram por unanimidade a espionagem na Internet e pediram que a vigilância ilegal dos dados pessoais seja punida pela lei.

A questão da espionagem na Internet ganhou foros de escândalo mundial com as revelações feitas pelo ex-analista da Agência Nacional de Segurança (NSA) norte-americana, Edward Snowden, quando veio a público relatar casos de violação abusiva por parte do Governo dos Estados Unidos da privacidade dos seus cidadãos ao ter acesso sem o seu consentimento aos seus dados pessoais.

Foi tão só o primeiro passo para uma série de denúncias que evoluiu para
a apresentação de uma lista de vítimas que passou a incluir várias figuras mundiais, entre elas Chefes de Estado, com particular realce para a própria Presidente brasileira e a chanceler alemã Ângela Merkel.

Os Estados Unidos caíram no descrédito perante os seus próprios aliados e o embaraço diplomático então causado permanece até hoje, com evidentes desconfianças e consequente desconforto, não obstante a pertença à Aliança Atlântica. Apesar de esta não ter ficado abalada por causa disso, a grande polémica política suscitada levou os restantes países a averiguarem o seu grau de vulnerabilidade e, por conseguinte, nível de soberania e protecção de informação classificada face a um total desrespeito por parte de um parceiro do qual esperavam a máxima lealdade.

A verdade é que muito antes das revelações de Edward Snowden já havia sinais de que os Estados Unidos estavam engajados num vasto plano de espionagem, o que levou alguns governos a tomarem cautelas, como a decisão de desligar ou não permitir que telefones, computadores, ipads e outros equipamentos fossem levados às reuniões em que o acesso à imprensa era vedado.

A medida deveu-se à estupefacção com que ficavam a saber que os assuntos tratados já eram do conhecimento fora de portas.

Diante desta realidade, deixou de ter relevo a campanha mediática que os Estados Unidos levavam a cabo contra a China, apresentando o país asiático como uma grande ameaça, quer por estar engajada em espionagem industrial, quer por supostamente ter especialistas que estariam a tentar entrar em sistemas informáticos de defesa norte-americanos de modo a obter informação para a produção do seu próprio equipamento electrónico militar de última geração.

Pela boca de Edward Snowden, especialista insuspeitável da Agência Nacional de Segurança, o mundo ficou a saber que mais graves estavam a ser (e são) as práticas dos Estados Unidos do que as da China. A vigilância em massa e arbitrária e a recolha e uso de dados pessoais não se resumia aos cidadãos norte-americanos, ultrapassava as fronteiras e estava a ser feita de forma indiscriminada.

Não admira que o Presidente russo, Vladimir Putin, tenha classificado a Internet como “um projecto da CIA” e afirmado, num encontro ontem sobre os “media”, em São Petersburgo, que o motor de busca Google recolhe informações sobre os utilizadores e que depois os envia para servidores nos Estados Unidos da América.

Apesar de tudo o que Snowden disse ser verdade, apesar de ajudar muitos dos Governos ocidentais a abrirem os olhos em relação ao que se estava a passar, apesar de a opinião pública ocidental reconhecer que o ex-analista da NSA jogou um papel fundamental na denúncia da violação das liberdades individuais, em que a privacidade aparece como um direito inviolável e está consagrada em todas as constituições europeias e dos Estados Unidos como um dos pilares fundamentais da democracia, paradoxalmente não foi em nenhum deles que encontrou a melhor protecção para a salvaguarda do seu direito à vida. É na velha Rússia, de Vladimir Putin e Dmitri Medvdev, onde consegue respirar o ar da liberdade, que nem mesmo Paris ou Berlim lhe conseguem assegurar, pois, parece mais fácil “sacrificar o carneiro” ou pôr a viola no saco do que dizer ao rei que vai nu.

Não há dúvidas de que a cimeira de S. Paulo representa um marco importante na abordagem da problemática da espionagem na Internet, da necessidade de um novo paradigma na sua gestão, em relação à qual avançou até mesmo propostas concretas. A Presidente Dilma Roussef saudou inclusive a intenção anunciada recentemente pelos Estados Unidos de substituir o seu vínculo institucional com a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN), cedendo o seu controlo a uma entidade multi-sectorial. Mas a verdade é que fica sempre uma pulga atrás da orelha. Por duas razões muito simples: primeiro é que já foram espiadas milhões e milhões de pessoas e os dados estão armazenados; segundo é que, com a velocidade com que evoluiu a tecnologia de “intrusão” e que os Estados Unidos hoje dominam quase que em situação de monopólio, tendo em conta que os interesses militares não olham a meios para atingir os seus fins, não é de acreditar que a aventura termine por aqui.

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