8 junho 2016, Carta Capital
http://www.cartacapital.com.br (Brasil)
“Tudo ficou mais claro: é golpe”, diz o
revelador do escândalo NSA: esta é a palavra certa
O escritor e jornalista americano Glenn Greenwald
ficou mundialmente conhecido
ao ser escolhido por Edward Snowden para revelar a enorme rede de grampos da
National Security Agency (NSA), do governo dos EUA. Dilma Rousseff e Angela
Merkel foram espionadas, entre outros chefes de Estado.
Ganhador de um Prêmio Pulitzer e personagem do
documentário que fez com Laura Poitras sobre Snowden, o jornalista aderiu à
tese do golpe à brasileira depois de ler as gravações da
conversa do ex-ministro de Temer, Romero Jucá, com Sérgio
Machado, da Transpetro, ambos investigados pela Operação Lava
Jato.
“Entendi que o impeachment foi desfechado para
impedir a Lava Jato. Mas, em última instância, ele visa a aniquilar o PT
e mudar totalmente os rumos do País, impondo políticas que nunca seriam aceitas
pela população, pelo voto.”
Morando no Brasil há 11 anos, o também advogado
Greenwald tornou-se
carioca adotivo através do casamento com David Miranda.
Suas matérias, publicadas no site The Intercept e lidas no mundo
inteiro, vêm mudando o olhar da imprensa estrangeira sobre o golpe de Estado
disfarçado de impeachment.
“Vi que havia abuso do Poder Judiciário, quando o juiz
Sergio Moro
divulgou um diálogo entre Dilma e Lula. Fui advogado antes de ser
jornalista e sei o quanto isso é perigoso para a democracia”, afirma.
Ele se diz chocado com o fato de ver o País relegado
ao 104º lugar no quesito liberdade de imprensa no mundo, na avaliação imparcial
da ONG Repórteres sem Fronteitas (Reporters sans Frontières), que destacou em
seu relatório de 2016: “De maneira pouco velada, os principais meios de
comunicação incitaram o público a ajudar na derrubada da presidenta Dilma
Rousseff.
Os jornalistas que trabalham nesses grupos estão
claramente sujeitos à influência de interesses privados e partidários, e esse
permanente conflito de interesses prejudica fortemente a qualidade de suas
reportagens”. Comentando o fato, Glenn diz: “Imagino que isso deve ter
causado muita vergonha no Estadão, Folha, Globo, Veja e IstoÉ”.
CartaCapital: Através de você, Edward Snowden revelou o escândalo
das escutas telefônicas da NSA que mostravam que Dilma Rousseff e Angela
Merkel, entre outras personalidades, foram grampeadas pelos
americanos. Como você explica que
a presidenta Dilma e o ex-presidente Lula tenham continuado a usar o telefone
para tratar de assuntos tão importantes quanto o da nomeação dele para ministro da Casa
Civil?
Glenn Greenwald: Tive uma grande
surpresa e Snowden disse algo no Twitter sobre isso, quando as conversas foram
divulgadas. Ele ficou decepcionado, quase ofendido, pois sacrificou muito de
sua vida para mostrar ao País como a presidente Dilma estava sendo espionada e
monitorada.
E sei que, depois das revelações, o governo brasileiro
investiu muito para construir métodos de contraespionagem com fotografia, e
fizeram muitas reuniões em Brasília para evitar isso.
O fato de um ex-presidente e uma presidenta estarem
tratando de coisas muito
sensíveis dentro desse clima num
telefone aberto e não encriptado é, para mim, incompreensível. Fiquei chocado.
CC: Depois de 11 anos vivendo no Brasil e escrevendo sobre
geopolítica e política americana, recentemente, com o agravamento da crise no
País, você passou a se interessar mais pela política local?
GG: Eu queria viver num país com tranquilidade, sem
problemas, sem precisar lutar ou brigar. Quando decidi morar aqui, há 11 anos,
não pensava no Brasil como meu país. Agora que moro há tanto tempo, sou casado
com um brasileiro, estamos adotando uma criança que vai ser brasileira, amo
este país que me deu muitas coisas, e penso que tenho não somente o direito,
mas a obrigação de fazer reportagens sobre o que não está sendo feito mas acho
necessário fazer.
Este período que estamos vivendo não é normal. É uma
crise que está ameaçando a democracia. Existe um risco de que ela seja extinta
de novo e não posso ficar sem fazer nada, quando acho que tenho algum poder de
ajudar e defender a democracia.
Não ficaria em paz com minha consciência o resto da
vida, se não fizesse coisa alguma. Em relação à mídia dominante, talvez eu não
percebesse antes o quão extremista ela é. Ela faz propaganda. Isso me choca
como jornalista. Quis usar a minha revista e meus meios para lutar contra isso.
CC: O que desencadeou sua decisão de passar a escrever
sobre o Brasil?
GG: Eu vi que a Globo estava incitando os protestos. Mas,
por outro lado, eu estava olhando a Lava Jato como algo impressionante,
positivo, pois colocava na prisão por corrupção bilionários e políticos
poderosos, independentemente do partido ou da ideologia. Isso não acontece nos
Estados Unidos, e no Brasil menos ainda.
As pessoas achavam uma coisa fantástica. Comecei a
mudar quando o juiz Moro mandou fazer a condução
coercitiva de Lula, sem razão, uma vez que o ex-presidente fazia
depoimentos voluntários. Ficou claro para mim que o juiz criou uma cena
dramática.
Pior ainda, em minha opinião, foi quando Moro divulgou a
conversa do ex-presidente com a presidenta. Ele não divulgou
apenas grampos de interesse público, mas também conversas para enxovalhar a
reputação do ex-presidente.
Mas minha decisão de começar a cobrir a política
brasileira foi quando vi o Jornal Nacional fazendo uma leitura do
diálogo entre o ex-presidente e Dilma Rousseff como se fosse de novela. Tive
uma imensa vergonha e pensei que era o limite do suportável.
GG: Numa democracia, o jornalismo tem um propósito: o
principal é ser uma força contra facções poderosas, que podem ser os ricos, o
governo, a polícia, as grandes empresas. Ser realmente o Quarto Poder. Ele deve
ser um poder que vai esclarecer, trazer à luz o que certos grupos estão fazendo
às escuras.
Quando o jornalismo está servindo a esta ou aquela
facção, para mim é corrupto. Jornalismo que luta contra os poderosos é o
jornalismo honesto, fiel a seu propósito de investigar e mostrar a verdade.
CC: O mito da objetividade é que está em xeque?
GG: Sim, Dilma fala de golpe, a oposição defende que foi impeachment
legal. Quando saem esses artigos muito fortes, criamos espaço para os
jornalistas estrangeiros irem mais longe.
CC: A GloboNews tentou desqualificar toda a imprensa
internacional, dizendo que os jornalistas estrangeiros não entendiam o
processo.
GG: Isso foi patético, mas não conseguiram. E também a
Dilma e o PT resolveram adotar uma estratégia forte, organizando coletivas da
presidenta e de Lula para a imprensa
internacional, e quando Lula fez uma
entrevista comigo e não com jornalistas brasileiros. Dilma fez três
entrevistas, uma com a CNN, uma com a Telesur e outra comigo. Depois ela fez
uma entrevista exclusiva com CartaCapital.
CC: Na matéria de 23 de maio, sobre a gravação de Romero Jucá, o Intercept diz que vai introduzir definitivamente a
palavra golpe. Como foi a repercussão dessa matéria?
GG: Eu, pessoalmente, nunca usava a palavra golpe porque,
para mim, era como a palavra “terrorismo”. Todo mundo usa essa palavra
politicamente. Não tem um significado específico. Para mim, a gravação de Jucá
mudou tudo, porque tive todos os ingredientes necessários para definir um
golpe.
Qualquer que seja a definição de “golpe”, ela se
enquadra no que foi feito no Brasil com relação à presidenta Dilma Rousseff.
Houve envolvimento de políticos, da Justiça e dos militares, entre outros. O
motivo não foram as alegadas “pedaladas fiscais”. No dia da votação na
Câmara, ninguém falou desse motivo.
GG: Nos Estados Unidos, um juiz da Suprema Corte não pode
falar publicamente sobre assuntos que estão em julgamento. A autoridade do
Judiciário precisa ser e parecer independente da política.
É impensável ver um juiz encontrando-se com políticos,
almoçando com políticos. Para mim, como advogado que sou, esse processo é
totalmente corrupto. Que confiança você pode ter num juiz que discute com
políticos casos que está julgando?
CC: Ele toma partido...
GG: Sim. Para mim, isso é mais importante do que o
envolvimento dos militares. Quando comecei a prestar atenção no debate sobre o impeachment,
eu pensava: “Não pode ser golpe, porque está sendo conduzido sob a autoridade
de um tribunal legítimo”. Para mim era um bom argumento. Perguntei
a Dilma e a Lula nas entrevistas que fiz: como pode ser um golpe se é um
tribunal legítimo? Mas agora a legitimidade desse tribunal fica totalmente duvidosa.
CC: Como avalia a queda do Brasil no ranking de liberdade
de imprensa da respeitada ONG Repórteres Sem Fronteiras? O Brasil ocupava o 58º
lugar em 2010 e hoje ocupa o 104º posto? A Reporters Sans Frontières disse
literalmente: “O problema dos ‘coronéis midiáticos’, que descrevemos em 2013 no
relatório ‘O País dos 30 Berlusconis’, continua intocável”.
GG: O Brasil ficou atrás de El Salvador, Peru e Libéria.
Essa organização é muito respeitada no mundo inteiro, porque não se envolve em
nenhum debate político nos países, atua apenas como um observador.
A Reporters Sans Frontières disse isso de uma forma
clara e absoluta, condenando a mídia brasileira e dizendo que os jornalistas
não estão se comportando como profissionais, mas tentando influir na queda da
presidenta Dilma.
Outra forma de avaliar a liberdade e o pluralismo da
imprensa brasileira foi em relação ao assassinato de jornalistas em cidades
pequenas, a concentração de empresas jornalísticas nas mãos de poucas famílias
e a conexão com a classe política, tentando forçar a saída de Dilma, o que
contradiz a liberdade de imprensa.
A avaliação da RSF foi tão severa com a mídia
brasileira que fiquei chocado e surpreso, pois eles em geral não são tão
explícitos nos seus julgamentos. Imagino que isso deve ter causado muita
vergonha no Estadão, Folha, Globo, Veja e IstoÉ.
CC: Mas eles não deram essa notícia. “O que é ruim, a
gente esconde”, foi uma frase dita por um ministro que falava sem saber que o
microfone estava aberto. Faz algum tempo, mas nada mudou.
GG: Em todos os lugares onde vou falo disso justamente,
porque não vejo ninguém falar. Na gravação de Jucá, ele disse que a
imprensa estava insistindo na saída de Dilma, nitidamente tomando partido. Ele
deixou tudo muito claro.
CC: No Brasil, o povo vê o que a mídia quer que ele
veja...
GG: Você viu o que o Jornal
Nacional fez para noticiar essas gravações? Eles deram 20 segundos no
começo, depois 15 outras reportagens sobre zika, o tempo, a Venezuela. Os
últimos dez minutos foram para comentar as gravações, mas sem falar do
envolvimento dos militares nem a tentativa de impedir a Lava Jato. Disseram que
Temer afirmou que “agora tudo está certo”.
CC: O que falta ao Brasil para ter maior pluralidade na
mídia?
GG: Vi críticas ao PT por não ter feito quase nada nesse
sentido. Nos EUA, há leis mais leves, aliás, do que na Inglaterra e na
França. Se existem instituições fortes e maduras, não há problemas. Havia a TV
Brasil, onde o Temer já mudou as regras. Para mim, muito mais promissora é a
internet.
Vai mudar tudo. Jovens de menos de 25 anos não veem
tevê, não leem jornal. Estão no Facebook, Twitter e leem os jornais
estrangeiros na internet. Acho essa opção melhor que leis para regular e
controlar.
CC: Na França, por exemplo, o governo subvenciona os
jornais para garantir o pluralismo. O governo não quer nem que o jornal
comunista L’Humanité desapareça. O pluralismo na imprensa é importante para a
democracia francesa. O leque ideológico da imprensa é enorme.
GG: Mas é preciso que haja
maturidade política e democracia. Na Argentina, a primeira coisa que Mauricio
Macri fez foi mudar a lei de mídia.
CC: De onde você vem? Qual a sua história familiar a
explicar seu interesse por política, seu engajamento?
GG: Meu avô me influenciou muito quando eu era criança.
Ele foi vereador na nossa cidade, um político que sempre lutou contra as
injustiças. Quando me tornei advogado, me especializei em Direito
Constitucional e me distanciei da política. Depois do 11 de Setembro, eu morava
em Nova York e via as mudanças nos direitos constitucionais irem no mau
sentido.
Comecei a voltar os olhos para a política. Mas era
advogado. Comecei a ler blogs porque a mídia não cobria de forma inteligente e
contestadora o modo como os Estados Unidos se conduziam. Em 2005, decidi criar
um blog para me comunicar com os blogueiros que estava lendo e
rapidamente me transformei em jornalista.
CC: Dá para fazer um paralelo entre a falta de crítica da
mídia americana no pós 11 de Setembro e a situação dos grandes jornais brasileiros
hoje, tão partidarizados?
GG: Sim. Aderiram à invasão do Iraque de forma bastante
acrítica. Depois, o New York Times pediu desculpas, mas na época o apoio
foi integral, com um discurso muito nacionalista. A imprensa americana sabe que
uma grande parte da população presta pouca atenção à política e, por isso, é
facilmente manipulável.
Mas mesmo naquela época, quando o jornalismo se tornou
horrível e perigoso, havia espaço no New York Times e Washington Post,
às vezes na tevê, para argumentações contra a invasão do Iraque, desafiando
crenças da maioria dos que apoiavam a guerra. Aqui no Brasil, no Globo,
por exemplo, não há quase nada que conteste o impeachment. Esse
pensamento único me dá medo, pois é algo muito perigoso.
CC: Você se considera uma pessoa de esquerda?
GG: Existe esse debate: ele é de esquerda, libertário,
independente, muitas pessoas tentam me colocar numa caixa. Não gosto, porque
acho que é uma forma de as pessoas começarem a ignorar seus argumentos. Tenho
opiniões, claro, e há assuntos em que acho que estou à esquerda, mas em outros
não. Tento evitar pensar me posicionando dessa forma.
CC: Como analisa a entrega do pré-sal brasileiro às
multinacionais nesse contexto?
GG: O representante do governo interino já estava em Nova
York na semana passada para encontrar grupos de Wall Street. Já se deixou claro
que a intenção é privatizar muitas coisas, inclusive parte da Petrobras. Sempre
que vimos acelerar esse tipo de privatização em diversos países, os processos
foram recheados pela corrupção.
José Serra, atual ministro das
Relações Exteriores, afirmou que a política externa agora pretende dar menos
importância aos tratados internacionais e multilaterais e privilegiar relações
baratas, além de estreitar relações com os EUA.
Numa entrevista recente, um repórter fez uma pergunta
sobre a espionagem dos EUA ao Brasil, citando a NSA, e ele perguntou: “O que é
NSA?” Revelou que o objetivo de sua política é reforçar o relacionamento com os
EUA.
CC: O golpe de 1964 deu-se com a cumplicidade e a ajuda de
Washington. No dia seguinte à votação do impeachment na Câmara, o candidato a
vice na chapa de Aécio Neves, senador Aloysio Nunes Ferreira, foi aos EUA, onde
se encontrou com autoridades do Departamento de Estado. Qual o papel dos EUA no
atual golpe?
GG: Não há evidências de que os EUA estejam envolvidos no
processo do impeachment. Não que eu saiba. Mas isso não diz muito.
Qualquer envolvimento americano seria discreto. Creio que a direita brasileira
não conduziria esse processo sem a aprovação dos EUA.
E também está claro que os EUA têm preferência por governos à
direita na América Latina, porque são mais abertos ao capital
internacional, enquanto a esquerda reforçou iniciativas como o Mercosul e os
BRICS. Não sei que tipo de apoio estão dando, se estão planejando e
encorajando, mas certamente demonstram aprovação.
CC: O que aconteceria a um juiz americano se tomasse
posições claramente partidárias, participasse de eventos de organizações
ligadas a partidos ou de órgaos da imprensa, como faz, por exemplo, o juiz
Sergio Moro?
GG: Nos EUA, isso seria impensável. O Poder Judiciário
aqui é muito forte. Um juiz pode grampear conversas, mandar alguém para a
prisão, manter alguém numa cela por 20 anos. É um poder extremo. Para aceitarmos
esse poder, é preciso manter muito claros os limites não só das leis, mas das
instituições.
O Judiciário precisa estar acima de personalidades,
exercer suas funções com objetividade e isenção. Moro virou um
herói coberto de elogios. Acho que isso o está afetando
muito. Nos EUA, esse protagonismo de um juiz jamais seria permitido.
Leia também
Nenhum comentário:
Postar um comentário