2 junho
2016, Outras Palavras http://outraspalavras.net (Brasil)
Por Inês Castilho
Para DeFEMde, Rede
Feminista de Juristas, não basta lutar por maior presença no Judiciário. É hora
de um Direito que rompa dogmas tradicionais, reveja relações machistas e deixe
de ser ferramenta para subjugar mulheres
A onda de
mobilizações de mulheres que se espalha pelo Brasil acaba de dar à luz uma
iniciativa criadora. Formou-se esta semana (31.05), a Rede
Feminista de Juristas, formada por mulheres que atuam nas mais diversas áreas do
direito: juízas, defensoras públicas, promotoras, sócias de escritórios de
advocacia, professoras universitárias e pesquisadoras. A rede integra também
psicólogas e assistentes sociais feministas que trabalham cotidianamente no
sistema jurídico.
A DeFEMde, sigla que
adotaram, amplia o vigoroso levante de mulheres que vem acontecendo, com
coletivos de trabalhadoras rurais, de mulheres negras, de mulheres da
periferia, de poetas, de cineastas, de mulheres do funk, do hip hop, de
estudantes secundaristas, estudantes universitárias e
outros tantos que estão
sendo criados em praticamente todos os rincões deste país.
“A ‘primavera
feminista brasileira’, que desabrochou ao longo de 2015, deu visibilidade à
luta das mulheres no Brasil. O desafio agora é transportar e representatividade
virtual para a realidade jurídica do país”, afirmam elas ao abrir seu
manifesto.
Bem a propósito dos
constrangimentos provocados pelos delegados inicialmente encarregados do caso
da menor vítima de estupro coletivo no Rio de Janeiro, logo superados quando o
caso foi assumido pela delegada Cristiana Bento, titular da Delegacia da
Criança e Adolescente Vítima (DCAV), as juristas feministas afirmam:
“A DeFEMde não
compactua com a ilusão de neutralidade dos operadores do direito, pois deixar
de abordar a discriminação contra as mulheres não a elimina; pelo contrário, a
reforça. Entendemos que o direito deve ser utilizado para atingirmos uma
sociedade mais justa e igualitária, o que só é possível por meio da maior
participação das mulheres em posições de poder e liderança, na produção, na
aplicação e na avaliação do direito.”
A criação da Rede foi
motivada pela análise do tratamento das mulheres na mídia e no judiciário que,
afirmam, perpetua o machismo em vez de combatê-lo. Partindo do nível pessoal,
elas inicialmente trocaram experiências sobre a discriminação sexista vivida no
exercício da profissão – “situações como homexplicando (postura de homens que
subestimam nossos conhecimentos) e casos de assédio sexual por orientador de
pós-graduação, ou até episódios de violência e violações aos quais são submetidas
mulheres que nos procuram em busca de orientação jurídica.”
Entre seus objetivos
estão “criar juntas estratégias e teses jurídico-feministas para a defesa e
garantia dos direitos das mulheres em todos os campos do direito. Argumentamos,
por exemplo, pela maior relevância do depoimento da vítima em casos de
violência no ambiente de trabalho e doméstico.”
A Rede Feminista de
Juristas convida todxs a visitar sua página e a contribuir para o debate. “O
machismo é responsabilidade de toda a sociedade”, lembra. Leia abaixo a íntegra
do manifesto.
DOS MINISTÉRIOS AO
JUDICIÁRIO, PRECISAMOS DE MAIS MULHERES FEMINISTAS NO DIREITO
A “primavera
feminista brasileira”, que desabrochou ao longo de 2015, deu visibilidade à
luta das mulheres no Brasil. Um dos desafios, agora, é transportar e
representatividade virtual para a realidade jurídica do país.
Do mundo virtual às
ruas, as mulheres e suas vozes ganharam mais espaço na esfera pública. As hashtags
“#meuamigosecreto” e “#meuprimeiroassédio” levaram milhares de mulheres a
compartilhar suas histórias de violência sexual e psicológica nas redes
sociais. Com a campanha “Agora é que são elas”, de expressiva repercussão,
ficou evidente a ausência de mulheres em espaços editoriais e na imprensa. Da
mesma forma, o Projeto de Lei Nº 5069/2013, que dificulta o acesso de vítimas
de estupro ao atendimento básico de saúde, apresentado apenas por parlamentares
homens, levou 15 mil mulheres a saírem às ruas de São Paulo pela defesa de seus
direitos e pela descriminalização e legalização do aborto.
Já em 2016, foram
significativos os variados episódios de machismo que ganharam notoriedade em
nossa sociedade, mostrando que a luta feminista não se faz necessária apenas
para garantir a continuidade dos direitos já conquistados pelas mulheres, mas
também para impedir o seu retrocesso – risco iminente na atual conjuntura
política brasileira.
Assistimos a
reiterados episódios de violência contra a mulher, como o feminicídio racista e
lesbofóbico de Luana dos Reis, cometido pela Polícia Militar em Ribeirão
Preto/SP, que deu nome e rosto à violência cotidiana praticada contra as
mulheres, notadamente negras e periféricas. A juíza da vara de violência
doméstica do Fórum do Butantã, em São Paulo, Tatiane Moreira de Lima, foi feita
refém por um homem acusado de crimes de violência contra sua ex-companheira.
Acompanhamos a intensa desqualificação pessoal e chacota pública a que foi
submetida a advogada e professora Janaína Paschoal por sua atuação e discurso
no processo de impeachment – do qual, pontue-se, discordamos frontalmente.
Com efeitos
sistêmicos, a temerária execração pública da maior autoridade do país, a
presidenta Dilma Rousseff, é motivada essencialmente por ela ser mulher.Não
queremos dizer que toda a crítica ao seu governo é uma crítica machista, mas
sim que o machismo perpassou o tratamento institucional e midiático de sua
imagem e da sua atuação política, tanto no discurso de apoiadores do governo
quanto de opositores, e que esse tratamento foi o que enfraqueceu sua condição de
chefe do Executivo, com perdas irreparáveis para a democracia.
A presidenta foi
constantemente reduzida a estereótipos que o patriarcado faz da mulher, seja na
sua função familiar, conforme a divisão sexual do trabalho (a “Dilmãe”), seja
em sua função social de objeto sexual, o que resultou em abomináveis adesivos
para carros, nos quais aparecia com pernas abertas em posição de alvo das
bombas de gasolina. O machismo sofrido por Dilma contou com exemplos de todos
os partidos, mostrando ser muito mais profundo do que as divisões ideológicas
ou de classe.
A misoginia, focada
na figura da presidenta, pôs em andamento o golpe de Estado que rompe com o
programa político escolhido nas urnas e atenta contra a primeira mulher que
chegou a esta posição em nossa história – um rompimento liderado por homens
brancos, de elite, conservadores, cisgêneros, declaradamente heterossexuais e
dissociados das pautas da juventude. Não é surpreendente que um dos primeiros
atos do governo interino tenha sido, justamente, a extinção do Ministério de
Mulheres, Direitos Humanos e Igualdade Racial.
Estes eventos não
podem ser analisados isoladamente, pois são resultado das premissas misóginas e
patriarcais que fundam e mantêm nossa sociedade, o direito e a política. É
nesse contexto que mulheres atuantes nas mais diversas áreas do mundo jurídico
decidiram criar a Rede Feminista de Juristas.
O que queremos?
A Rede Feminista de
Juristas entende que o positivismo e a dogmática tradicional não conseguem
tratar a discriminação das mulheres nem oferecer segurança e confiança para que
as vítimas de violações de seus direitos obtenham reparação. Avaliamos que não
existe o reconhecimento bastante de que a condição da mulher é diferente da do
homem, nem no ordenamento, nem na prática jurisdicional e/ou legislativa, nem
na política.
Nessa linha,
defendemos e atuamos para que o direito incorpore a análise das relações
machistas que subsumam a condição da mulher perante todas as instituições,
adote uma perspectiva alternativa à dogmática tradicional e seja utilizado como
ferramenta de emancipação e não de subjugo das mulheres.
A DeFEMde não
compactua com a ilusão de neutralidade dos operadores do direito, pois deixar
de abordar a discriminação contra as mulheres não a elimina; pelo contrário, a reforça.
Entendemos que o direito deve ser utilizado para atingirmos uma sociedade mais
justa e igualitária, o que só é possível por meio da maior participação das
mulheres em posições de poder e liderança, na produção, na aplicação e na
avaliação do direito.
Concretamente,
queremos mais mulheres feministas em carreiras públicas, escritórios de
advocacia, cargos políticos e na academia, com base na percepção de que a
desigualdade de poder entre homens e mulheres tem origem estrutural.
O que fazemos?
Nos reunimos, em um
primeiro momento, para trocas de experiências pessoais relacionadas à
misoginia: violências às quais nós somos diariamente submetidas no exercício de
nossas carreiras. Trata-se de situações como homexplicando (postura de homens
que subestimam nossos conhecimentos) e casos de assédio sexual por orientador
de pós-graduação, ou até episódios de violência e violações aos quais são
submetidas mulheres que nos procuram em busca de orientação jurídica.
As correspondências
que firmamos nos inspiraram a criar a DeFEMde para que possamos criar juntas
estratégias e teses jurídico-feministas para a defesa e garantia dos direitos
das mulheres em todos os campos do direito. Argumentamos, por exemplo, pela
maior relevância do depoimento da vítima em casos de violência no ambiente de
trabalho e doméstico.
Atuaremos também para
o avanço normativo e judicial das garantias dos direitos de todas as mulheres,
seja por meio de advocacy junto aos membros do Legislativo, seja pela
disputa da interpretação das leis em sentenças e decisões judiciais.
Por fim, almejamos
realizar litigância estratégica para a defesa dos direitos das mulheres, com
representação em ações coletivas, assistência técnica (já que nossa rede conta
também com mulheres feministas que, embora não sejam juristas, trabalham
cotidianamente em nosso sistema jurídico, como psicólogas e assistentes
sociais) e apresentação de amici curiae.
Nenhum comentário:
Postar um comentário