30 junio 2016, ODiario.info http://www.odiario.info
(Portugal)
Miguel Urbano, um dos revolucionários que mais
escreveu sobre a heroica luta das FARC-EP e mais divulgou a sua epopeia faz,
nesta hora de refluxo, o comentário possível aos acordos recentemente assinados
em Havana, entre aquela organização revolucionária e o governo da Colômbia.
Termina, confessando a sua dificuldade em «imaginar que tipo de «reconciliação» (…) será possível, num contexto em que a classe dominante não esconde a sua fidelidade ao neoliberalismo ortodoxo e à íntima aliança com os Estados Unidos».
A assinatura em Havana,
no dia 23 de Junho, pelas FARC-EP e pelo governo de Juan Manuel Santos, dos
Acordos de Cessar Fogo e de Hostilidades Bilateral e Definitivo, de Renúncia às
Armas, e o de Garantias de Segurança e Combate ao Paramiliarismo foi recebida
com entusiasmo pelo povo colombiano e com alívio e satisfação pela maioria da
humanidade.
Mas seria uma
ingenuidade concluir que
o fim do conflito armado trouxe à pátria de Marulanda
a paz social e politica.
Os discursos
pronunciados na capital cubana, a presença dos chefes de Estado e altas
personalidades ali reunidos e a atmosfera da grande jornada tendem a gerar
esperanças românticas.
Além do comandante
Timoleón Jimenez, chefe do Estado-Maior Central das FARC, e de Juan Manuel
Santos, compareceram na solenidade o secretário-geral e o presidente do
Conselho de Segurança da ONU e o da Assembleia Geral da organização, os
presidentes de Cuba, do México, do Chile, da Venezuela, de El Salvador, da
Republica Dominicana, representantes especiais dos governos dos EUA, da União
Europeia, da Noruega, etc.
Compartilho a alegria
nascida do fim de uma guerra iniciada há mais de 60 anos em que pereceram
centenas de milhares de colombianos, a esmagadora maioria civis, guerra que
devastou o país e aprofundou abissais desigualdades sociais.
Mas esse sentimento de
júbilo não pode apagar uma preocupação profunda, inseparável da certeza de que
os grandes problemas que levaram as FARC – EP a optar pela luta armada não
constarão do Acordo Final a ser firmado na Colômbia.
A EPOPEIA FARIANA
A EPOPEIA FARIANA
AS FARC-EP são uma das
organizações revolucionárias que mais marcaram emocionalmente a minha vida como
comunista.
Cimentei com alguns dos
seus dirigentes amizades que perduram.
Já admirava a
guerrilha–partido de Marulanda, e sobre o seu combate tinha escrito muito
quando conheci em Havana o comandante Rodrigo Granda então chamado Ricardo
González.
Entre nós surgiu imediata
empatia que evoluiu para sólida amizade. Aprendi muito com ele. Passei a
movimentar-me melhor na história da Colômbia; compreendi o significado terrível
do paramilitarismo.
Devo a Rodrigo Granda o
convite das FARC-EP para passar algumas semanas no acampamento do comandante
Raul Reyes no Caquetá e a oportunidade de acompanhar na Região as negociações
de paz com o governo de Pastrana. Assisti então em La Macarena, no dia 24 de
junho de 2001, a um acontecimento inesquecível: o encontro para libertação unilateral
de 242 soldados e polícias capturados em combate pelas FARC. Conheci nesse dia
o comandante-chefe Marulanda (que me concedeu uma entrevista) e, entre outros
os comandantes Jorge Briceño, Joaquin Gomez, Simon Trinidad, todos alvo de
manifestações de apreço e admiração da parte dos embaixadores ocidentais ali
presentes.
Não se previa nesses
dias que o presidente Pastrana, cedendo a pressões dos EUA, do exército e da
oligarquia colombiana, em breve conduziria as negociações de Los Pozos a um
impasse, prólogo da ocupação da Zona Desmilitarizada e do recomeço da guerra e
de sucessivas ofensivas (derrotadas) no âmbito dos Planos Colômbia e Patriota.
Escrevi e publiquei em
diferentes países textos sobre a minha a experiência pessoal no acampamento das
FARC-EP. Não é sem emoção que recordo o convívio com os homens e mulheres da
guerrilha. Mantive aliás contacto permanente, via Internet, com o comandante
Raul Reyes, até à trágica jornada em que foi assassinado, com dezenas de
camaradas, durante o bombardeamento de Sucumbio, no Equador, concebido por Juan
Manuel Santos, ao tempo ministro da Defesa de Álvaro Uribe Velez. Não esqueci
que semanas antes Reyes me convidara a revisitá-lo, algures na amazónia
colombiana.
Reencontrei muitas
vezes Rodrigo Granda. A última em Caracas, em 2004, nas vésperas da sua prisão
por esbirros de Uribe, com a cumplicidade de polícias venezuelanos. A minha
admiração por ele aumentara de ano para ano.
Via nele um
revolucionário exemplar pela vastidão da sua cultura marxista, pelo caráter,
pela coerência, pela disponibilidade total para a luta. A convite do advogado
fui aliás testemunha de defesa, através de um depoimento, no processo que
contra ele instaurado quando preso, antes da sua libertação por influência do
presidente Sarkozy da França.
Foi com alegria que
recebi a notícia do seu imediato regresso à luta e a sua inclusão na Delegação
de Paz das FARC-EP em Havana. Quando responsável pelas Relações exteriores da
guerrilha no exterior, era conhecido pelo seu talento diplomático como El
Canciller de las FARC.
Por que evoco hoje o
amigo fraterno e o revolucionário exemplar.
Precisamente porque
nestas semanas em que se festeja a assinatura dos Acordos que puseram fim às
hostilidades na Colômbia me pergunto, apreensivo, o que pensarão da chamada
«reconciliação» Rodrigo e outros amigos como os comandantes Alberto e Juan
António e qual seria a posição do comandante Demétrio, já falecido, um
intelectual brilhante, a que chamavam «o ministro da educação sombra» das FARC?
PREOCUPAÇÕES E TEMORES
Quero registar com
clareza que aprovei desde o início os Diálogos de Paz de Havana. Ao sentar-se à
mesa para negociar, as FARC deram expressão concreta ao profundo desejo de paz
da esmagadora maioria do povo colombiano. Foi essa aspiração, cada vez mais generalizada
e intensa, que levou presidentes como Belisário Bettencourt e Pastrana Borrero
a abrir negociações com as FARC com vista ao fim do conflito armado.
O Estado Maior Central
das FARC-EP teria negado o passado e a ideologia revolucionária da sua organização
se não houvesse respondido favoravelmente a Juan Manuel Santos quando este,
numa viragem inesperada, estabeleceu os contatos que conduziram em Oslo, na
Noruega, a entendimentos preliminares que desembocaram nos Diálogos de Paz de
Havana e na elaboração de uma Agenda ambiciosa.
Acompanhei de longe o
difícil processo de paz, e os esforços para o torpedear desde o começo pelo
alto comando das Forças Armadas, pelos latifundiários que controlam a
agricultura, pelos barões de narcotráfico, por uma parcela da grande indústria
e pelo imperialismo estado-unidense apesar da ambiguidade da sua posição
perante o conflito.
As tremendas
dificuldades a superar na negociação de interlocutores tão antagónicos como as
FARC e o Governo de Santos ficaram transparentes na continuação da guerra, no
financiamento do Plano Colômbia, na entrega de armas sofisticadas ao exército e
à Força Aérea, na cumplicidade de influente generais com destacados dirigentes
paramilitares, no massacre frequente de camponeses pelo exército.
Apesar das campanhas
contra a paz, da repressão permanente ao abrigo da famigerada «Lei de Segurança
Democrática», a Agenda aprovada avançou embora lentamente. As FARC conseguiram
impor em Havana posições por elas defendidas na discussão de temas fulcrais como
a questão da terra, a participação política, o debate sobe as minorias, as
discriminadas, os milhões de deslocados, a degradação do ambiente, a reforma de
uma justiça corrupta, as reparações às vítimas da guerra, a erradicação do
tráfico de drogas, etc. No debate desses outros temas as FARC obtiveram do
governo concessões que em muitos casos foram além do que se poderia esperar.
Porquê então a profunda
preocupação que me invadiu ao tomar conhecimento dos documentos assinados em
Havana?
Dediquei horas à sua
leitura.
A natureza do regime
não é posta em causa. AS FARC-EP não podiam obviamente exigir o fim do
capitalismo, objetivo do seu programa revolucionário. A relação de forças
existente não permitia debater o tema.
Mas não é essa
inevitável omissão que me inquieta.
O Acordo sobre o
Cessar-fogo e o abandono das armas (dejación em espanhol) estabelece que no
prazo de 180 dias o armamento das FARC-EP será entregue a comissões
fiscalizadoras indicadas pela ONU e pela CELAC.
O dominicano Narciso
Isa Conde, num artigo publicado no dia 24 de Junho na Republica Dominicana,
afirma que essa decisão «equivale ao desarmamento total e unilateral do
exército popular mais poderoso da Colômbia da nossa América em troca de
garantias de segurança atribuídas por um sistema sumamente hostil» (…)
Distancio-me muitas
vezes de opiniões do autor, mas neste caso compartilho plenamente a apreensão
que manifesta quanto ao desarmamento das FARC e à insuficiência de garantias
sobre o compromisso oficial de eliminar o paramilitarismo.
Marx advertiu que a
Historia nunca se repete da mesma maneira. As circunstâncias na Colômbia são
hoje muito diferentes das existentes em 1985. Mas é impossível esquecer o
genocídio da União Patriótica.
É alarmante que o
comandante de uma região do Vale do Cauca, no próprio dia em que eram assinados
os Acordos de Havana tenha, em entrevista a uma rádio local, afirmando que a
sua ideologia é a de Carlos Castanho.
Cabe recordar que o fundador e primeiro chefe dos bandos paramilitares foi um assassino, responsável por monstruosos crimes contra a humanidade.
Que eu tenha
conhecimento, o governo de Santos não reagiu às inadmissíveis declarações desse
oficial superior do Exército.
Os Acordos preliminares
de Havana são também omissos sobre a permanência de oito bases militares dos
EUA no território colombiano e as relações especiais que o governo de Bogotá
mantém com o estado neofascista de Israel, cuja polícia secreta, a MOSSAD, atua
na Colômbia como em casa própria.
As Farc tiveram de
renunciar á reivindicação de uma Constituinte e de aceitar o referendo de que
discordavam.
Essas cedências foram
não apenas compreensíveis como inevitáveis. Nos Diálogos de Havana as FARC-EP
negociaram numa época de refluxo histórico. O imperialismo havia retomado a
ofensiva na América Latina e atuava agressivamente no Medio Oriente, na Europa
e na Asia Oriental.
A delegação fariana
enfrentou os representantes do Governo de Santos consciente de que a relação de
forças lhe era muito desfavorável. Num curto espaço de tempo perdera dirigentes
fundamentais. Raul Reyes fora assassinado no Equador, Jorge Briceño e Alfonso
Cano tinham perecido em combate. Manuel Marulanda, o herói de perfil homérico,
falecera no seu acampamento.
As mais recentes
técnicas electrónicas para localização das unidades guerrilheiras, mesmo nas
densas florestas da região amazónica, criaram também problemas dificilmente
superáveis aos estrategos das FARC-EP.
A minha solidariedade
permanente e irrestrita com as Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia-Exército do Povo não me impede, porém, antes me impõe o dever de
encarar com muita apreensão o futuro imediato.
A linguagem de alguns
parágrafos do Acordo de Cessar Fogo por elas assinado e a troca de mensagens com
o alto comando do Exército não me parecem também compatíveis com a ideologia da
organização revolucionária.
Tenho dificuldade em
imaginar que tipo de «reconciliação» - palavra agora muito utilizada - será
possível, num contexto em que a classe dominante não esconde a sua fidelidade
ao neoliberalismo ortodoxo e à íntima aliança com os Estados Unidos.
Daí este desabafo de um
comunista português que fez sua a luta heróica das FARC-EP.
Vila Nova de Gaia, 29 de junho de 2016
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