1 junho
2016, Brasil de Fato https://www.brasildefato.com.br
(Brasil)
Rafael
Tatemoto
Em entrevista
exclusiva, autora de "Doutrina do Choque" também debate alternativas
às crises econômica e ambiental
A Doutrina
do Choque, publicado
em 2007, marcou uma geração ao apresentar como, ao contrário do que se
afirmava, a implementação do neoliberalismo tinha poucas relações com o avanço
da democracia liberal pelo mundo. A jornalista canadense Naomi Klein, autora da
obra, afirmava: as visões da Escola de Chicago foram primeiramente postas em
prática em regimes autoritários, justamente porque contrariam as necessidades
da maior parte da população.
As ideias
neoliberais, para Klein, se aproveitariam de
momentos de crise para avançar.
Ela concedeu uma entrevista exclusiva para o Brasil de Fato na qual
analisou o momento vivido por nosso país à luz dos debates de seu livro.
Segundo ela,
o programa defendido pelo governo interino de Michel Temer teria poucas
condições políticas de ser implementado através de eleições. “Não há dúvida de
que a democracia brasileira está sob ataque. É um tipo diferente de golpe”,
afirma. “Eles estão explorando uma situação de caos, uma falta de democracia,
para impor algo que eles não conseguiriam sem crise e com uma democracia real”,
completa.
Confira a
entrevista abaixo.
Brasil de
Fato - Em seu livro, você denuncia o que considera a falsa relação entre
neoliberalismo e democracia política. As ditaduras militares latino-americanas
ocupam um papel importante no seu argumento. Você poderia explicar isso para
nós?
Naomi Klein
- O argumento
que eu desenvolvo neste livro é o de que nos contaram um conto de fadas sobre
como esta forma extrema do capitalismo colonizou o mundo. Essa versão
fantasiosa é a de que ela se espalhou pacificamente através das democracias,
que a teriam escolhido. Entretanto, se olharmos para a história dos primeiros
lugares onde o neoliberalismo foi imposto, ele foi imposto exatamente no oposto
[do que nos é dito]: foi necessária uma derrubada da democracia para que ele se
desenvolvesse.
As raízes do
pensamento neoliberal estão na Universidade de Chicago, que recebeu muito apoio
dos industriais norte-americanos, que estavam bastante preocupados com uma
virada à esquerda nos EUA. Ela recebeu apoio, por exemplo, do presidente do
Citibank. Havia muita preocupação de que, nos anos 1960, o espectro ideológico
estivesse se movendo muito à esquerda.
O que é
muito interessante é que quando houve um presidente [norte-americano] de
direita no final dos anos 1960 e início dos 1970, Richard Nixon, apesar de
ele ter contratado conselheiros que vieram da Universidade de Chicago, eles não
conseguiram impor essas mesmas ideias neoliberais extremas em uma democracia,
porque essas ideias eram muito impopulares. É famoso o fato de que Nixon foi
contra os conselhos dados pelos economistas da Escola de Chicago, como Milton
Friedman. Ele introduziu uma série de regulações ambientais e medidas de
controle de salários e preços, porque a inflação estava muito alta. Friedman
disse que "Richard Nixon foi o presidente mais socialista dos EUA"
[risos]. O que é importante é que enquanto este projeto falhou nos EUA naquele
momento, esses mesmos economistas introduziram as ideias neoliberais na América
Latina durante a década de 1970, mas apenas após a realização de golpes de
Estado.
O exemplo
mais famoso é o Chile: após a queda do [presidente Salvador] Allende, quando os
militares fizeram uma parceria com os economistas da Escola de Chicago,
tornando o país um laboratório para essas ideias. Friedman sempre afirmou
que a implementação dessas ideias através da brutalidade não tinha relação com
as ideias em si, mas pessoas como Orlando Letelier [diplomata chileno durante o
governo Allende] diziam que eram dois lados da mesma moeda: nunca é possível
introduzir, através da democracia, esse tipo de ideias em países com uma grande
população pobre que se beneficia de políticas redistributivas.
Você demonstrava
esperança sobre a resistência aos "choques", já que as pessoas
teriam aprendido com experiências anteriores. Como você vê, por exemplo, o que
aconteceu na Europa após 2008, quando a crise financeira internacional estourou
e políticas de austeridade foram implementadas nos países do sul daquele
continente?
Esta é
uma pergunta muita boa. Eu publiquei A Doutrina do Choque em 2007, pouco
antes do colapso financeiro. Honestamente, eu diria que quando escrevi, eu era
ingênua. No meu entendimento de como resistir a esta tática, eu acreditava que
se as pessoas realmente entendessem a tática - as crises e o caos sendo
aproveitados pelas elites para defender políticas inaceitáveis que as
enriquecem e empobrecem a maioria - e dissessem "não", a resistência
funcionaria. Mas eu acho que o que nós vemos com a experiência do que ocorreu
na Grécia e na Espanha, e, na verdade, em todo o sul da Europa, é que resistir
somente dizendo "não" - "não queremos a austeridade" - é
apenas o primeiro passo, não é suficiente.
O caso do
Syriza é exemplar: mesmo quando governos antineoliberais ganham, há maneiras de
cercá-los. É necessário haver um "não" forte à "doutrina do
choque", mas, especialmente em momento de grandes crises econômicas,
também deve haver um "sim" no qual acreditar: deve haver uma
articulação simultânea das alternativas à "doutrina do choque", que
devem ir além do status quo. Esses momentos de crises demandam uma
reposta. As crises dizem que alguma coisa está errada com o sistema. Nós
sabemos que a direita tem a tática do choque, mas também deve haver o que eu
chamo de "choque popular": uma forma alternativa de responder às
crises.
Essa é a
razão pela qual eu escrevi This Changes Everything [Isto Muda Tudo, sem
edição em português], porque vivemos em um tempo de múltiplas crises, nas quais
o sistema está falhando em várias dimensões. Está falhando economicamente, mas
também ecologicamente. O que eu acredito é que nós precisamos responder a essas
múltiplas crises desenvolvendo uma visão corajosa sobre como a próxima economia
deva ser, que possa nos tirar dessa situação de crises em série.
A falha da
centro-esquerda, em geral, foi a de não conseguir articular uma alternativa
audaciosa o suficiente não só ao neoliberalismo, mas à economia extrativista de
forma ampla.
Como você
analisa o impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff? Alguns analistas
brasileiros utilizam suas ideias para explicar o que está ocorrendo. Você
concorda com eles?
Eu vi essas
análises aplicando a doutrina do choque ao que está acontecendo neste momento
no Brasil, e eu penso que elas são convincentes. O fato de que ela [Dilma] foi
reeleita certamente frustou as elites brasileiras. Também está claro que há
temores [dos políticos] em serem investigados nos escândalos [de corrupção], o
que também impulsionou este desejo [de ver Dilma fora do governo]. Eu não sei
qual é a grande motivação, mas há diversas coisas acontecendo: o desejo de se
livrar das acusações de corrupção e o oportunismo de "nunca desperdiçar
uma crise". Esta é uma frase de Rahm Emanuel, prefeito de Chicago. Ele
impôs uma série de políticas neoliberais que foram incrivelmente destrutivas,
particularmente para a educação e para a habitação.
O PT, sob
nenhum aspecto, foi perfeito. Entretanto, a redistribuição levou a uma redução
da desigualdade e se combateu a pobreza extrema. Isso é significativo e
criou as condições para a reeleição.
Eu realmente
não sei qual foi a força motriz, mas a reeleição de Dilma certamente
desmoralizou as elites brasileiras e as fez entender que não tinham as
condições [políticas] de impôr essas políticas lucrativas para elas.
Responder a
crises não é algo novo. O que eu argumento no livro A Doutrina do
Choque é que o neoliberalismo foi uma maneira oportunista de fazer isso,
não para resolver as causas das crises, mas apenas para impor políticas que
enriquecem as elites e causam mais crises. É isso que estamos vendo no Brasil.
O FMI [Fundo
Monetário Internacional] acabou de publicar um relatório há alguns dias no qual
diz que o neoliberalismo falhou completamente: não produziu crescimento,
produziu desigualdade massiva e instabilidade. E essas são precisamente as
políticas que estão sendo impostas no Brasil como uma suposta solução à crise
econômica, ainda que saibamos que não funciona. Isso não ocorre porque as
elites brasileiras não leram o relatório do FMI, mas sim porque são políticas
incrivelmente lucrativas para uma minoria da população. Eles estão explorando
uma situação de caos, uma falta de democracia, para impor algo que eles não
conseguiriam sem crise e com uma democracia real.
Você
concorda com a ideia de que se trata de um golpe?
Não há
dúvida que a democracia brasileira está sob ataque. O combate à corrupção
foi apenas um pretexto para se livrar da presidenta eleita democraticamente. É
um tipo diferente de golpe. Não se trata de um golpe militar, com tanques nas
ruas - e nós não devemos dizer que são a mesma coisa -, mas, efetivamente, há
um profundo ataque à democracia acontecendo.
A “história
oficial” do neoliberalismo aponta os governos Reagan [EUA] e Thatcher [Reino
Unido], em países tidos como democráticos, como a origem dessas políticas. Em
seu livro, porém, você cita como Thatcher combateu os sindicatos. Até mesmo em
democracias, o neoliberalismo é autoritário? Devemos esperar a mesma situação
no Brasil?
O que eu
argumento em A Doutrina do Choque é que Thatcher não foi capaz de impôr
a agenda neoliberal no Reino Unido no seu primeiro mandato. Ela até escreveu
uma carta a [Friedrich von] Hayek que eu cito no livro: em uma democracia, é
impossível fazer o que foi feito no Chile. O que aconteceu é que a Guerra das
Malvinas [da Inglaterra contra a Argentina] estourou e ela explorou o
sentimento hipernacionalista e se reinventou como a "primeira-ministra
para tempos de guerra", tal como Churchill, e conseguiu ganhar sua
reeleição, e então atacou os sindicatos.
Os
sindicatos são sempre uma grande barreira à implementação da agenda neoliberal.
Eu conto a história do que ocorreu na Bolívia nos anos 1980, quando líderes
sindicais eram sequestrados para que não pudessem se organizar, enquanto o
choque neoliberal era imposto.
Obviamente,
haverá algum tipo de estratégia para desmobilizar. Mas eu acredito que, no
Brasil, o jogo ainda não terminou. As histórias estão mudando a todo momento,
as pessoas estão fazendo exatamente o que elas deveriam fazer, resistindo nas
ruas. Os vazamentos das conversas revelando a trama antes do golpe continuam a
criar uma crise [política]. Isso precisa ser divulgado fora do Brasil,
colocando pressão sobre governos estrangeiros. Nós não precisamos aceitar a
ideia de que tudo vai continuar como está.
Recentemente,
tivemos um grande desastre ambiental no Brasil. Em sua última obra, This
Changes Everything, você coloca que o capitalismo não só aumentou as
desigualdades, mas, hoje, também representa um risco para a própria existência
da humanidade. Pode nos explicar isso?
O que
sabemos é que se continuarmos fazendo o que estamos fazendo, alcançaremos um
nível de aquecimento insustentável. Estamos em um momento em que o capitalismo
e a busca pelo crescimento perpétuo estão em guerra contra a vida na Terra.
Estamos chegando a um nível em que boa parte do planeta será inabitável por
humanos. Está acontecendo mais rápido do que o imaginado. O branqueamento dos
corais ano passado foi em uma escala sem precedentes. A Índia e o Paquistão
estão passando por ondas de calor de 51º C -- algo que os humanos não conseguem
aguentar. E isso representa, na média global, um aumento de apenas 1º C - e nós
estamos caminhando para um aumento de 6º C, a não ser que ações governamentais
diferentes das que estão sendo implementadas até agora sejam tomadas.
As crises
são sinais nos dizendo que há algo errado na forma como organizamos nossa
sociedade. As crises econômicas apontam para o fato de que é algo sistêmico.
Quando nós pensamos nas décadas de 1920 e 1930, quando ocorreu a Grande
Depressão, a esquerda respondeu com alternativas muito fortes: propostas sobre
como reinventar aquele sistema. Quando nós enfrentamos um choque climático -
enchentes, incêndios, grandes tempestades - nós devemos responder tentando
mudar o sistema para que nós paremos de enfrentar esses choques.
O Acordo de
Paris [sobre o clima] não está próximo o suficiente das nossas necessidades,
ele não tem poder vinculativo -- é por isso que Donald Trump disse que
cancelaria [a participação dos EUA no acordo].
Isso está
ocorrendo porque temos um sistema que nos encoraja a empreender uma busca pelo
crescimento infinito a qualquer preço. Nós temos economias extrativistas, e
vemos que governos de esquerda também falharam em confrontar essa lógica. Isso
é verdade para a Venezuela, o Equador e para o Brasil também.
É por isso
que digo que, nesses momentos de crise, o sistema revela a si mesmo como
irrealizável. Nós devemos dizer "não" à doutrina do choque, mas
também devemos ir além, propor um "sim". Temos que elaborar uma visão
que vá até a raiz, tanto da instabilidade econômica, como da ecológica.
Nesse momento, esse é o verdadeiro desafio para as brasileiras e os brasileiros.
O que nós sabemos de outros países é que o "não" sozinho não é
suficiente, porque em crises econômicas, as pessoas querem soluções. Elas não
querem a doutrina do choque, então a pergunta é: Qual a solução? Qual o plano?
Essa era
minha próxima pergunta…
Eu não posso
responder para o contexto brasileiro, mas eu posso dizer que no Canadá, onde
vivo, estive envolvida em um processo com diversos movimentos sociais que
culminou no Manifesto do Salto [Leap Manifesto]. É uma antevisão da
sociedade que queremos: como passar de uma economia extrativista - que explora
sem fim a Terra, os corpos e a sociedade - para um modelo que respeite o
planeta e que garanta o respeito pelo outro. Nós elaboramos 15 demandas por
políticas que nos fariam chegar lá. Foi um processo maravilhoso de conectar
movimentos - ambientalistas; organizações contra austeridade, contra
tratados de livre comércio como o TTPP; a favor dos direitos indígenas.
Nossa
perspectiva se fundamentou na visão de mundo dos povos originários, aprendendo
com as primeiras nações do nosso país. Defendemos, por exemplo, o uso de
energia 100% renovável, mas queremos também mudar a forma de propriedade: nem
o controle das grandes corporações, nem do grande poder estatal,
queremos controle comunitário. Além disso, os primeiros beneficiários desse
novo modelo devem ser as comunidades atingidas pela indústria suja. Assim, [no
Canadá], em primeiro lugar os indígenas e, logo em seguida, os latinos e
negros.
É o que
chamamos de transição justa para a próxima economia. Nós tentamos elaborar
isso, talvez seja útil para as pessoas no Brasil conhecerem e se inspirarem a
realizar um processo semelhante: se juntar e imaginar o desenho de uma economia
pós-extrativista.
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