terça-feira, 29 de setembro de 2015

Moçambique/NINGUÉM ESTÁ INTERESSADO EM SUSTENTAR UMA GUERRA -- defende Joaquim Chissano

27 de Setembro de 2015, Jornal Domingo http://www.jornaldomingo.co.mz (Moçambique)

O signatário do Acordo Geral da Paz (AGP) e antigo presidente da República, Joaquim Alberto Chissano, defende não haver condições para a guerra no país, apesar de ameaças nesse sentido, protagonizadas pela liderança da Renamo.

Chissano que falava em exclusivo para a Rádio Moçambique por ocasião do vigésimo terceiro aniversário da assinatura do AGP diz que ninguém está interessado em sustentar a guerra em Moçambique ao mesmo tempo que faz uma incursão em torno dos malefícios da guerra. Resgata algumas partes do acordo assinado em Roma, a 4 de Outubro de 1992. Acompanhe, em discurso directo, extractos da conversa conduzida por Filipe Mabutana.

Senhor Presidente Chissano, 23 anos após a assinatura do Acordo Geral de Paz (AGP) acha que Moçambique está em paz?
Moçambique está em paz relativa. Como já disse muitas vezes, a paz não é ausência de guerra. Tem paz porque não estamos em guerra, há sobressaltos de guerra aqui e acolá, as pessoas vivem agora inseguras por causa de repetidas ameaças à paz. Isso faz com que
o povo viva em sobressaltos sem ter a certeza do amanhã.

Aliás, foi por isso que criamos a Fundação Joaquim Chissano para se dedicar à promoção da paz e as pessoas perguntavam-se por que promoção da paz se não estamos em guerra. É que a paz precisa de ser regada, promovida todos os dias e hoje falamos da necessidade da criação cultura de paz.

Portanto estamos numa luta permanente pela consolidação da paz, paz entendida em toda sua extensão. É preciso que haja paz no interior de cada um, paz em cada família, comunidade. Se conseguirmos isso, não haverá lugar à violência, mas neste momento vivemos momentos de desconfianças que não permitem que as pessoas sentam e discutam em profundidade. Todos queremos paz, unidade, integração e que ninguém devia puxar por armas para fazer valer o seu ponto de vista.

No passado, utilizamos as armas para nos ver livres da ocupação estrangeira no país. Mesmo nos anos 1983,1984, o presidente Samora Machel empenhou-se para dizer olha nós não queremos ter a violência estrangeira no nosso país, não queremos a violência, ocupação estrangeira, não queremos portanto que o Apartheid guie a marcha da nossa história.

Marcha da nossa história?
Queremos ser nós, moçambicanos, a guiar a nossa própria história. Foi assim que começaram as discussões com a Renamo e começaram mesmo em Pretória depois dos contactos que foram feitos e houve uma paciência nessa altura até que presidente Samora morreu.

Foi preciso paciência e quando eu fiquei Presidente da República continuei com os mesmos passos que culminaram com a assinatura do acordo em 1992, mas logo ali reconheci que era preciso continuarmos o diálogo, não só entre duas pessoas ou entre dois partidos, mas que abrangesse toda a população porque a reconciliação nacional que é o que devemos continuar a batalhar para conseguir no seio do povo.

Não basta chamar reconciliaçãouma assinatura de um acordo entre o Governo e a Renamo. Reconciliação tem que ser no seio do povo, porque o povo tem que viver junto. Se há um membro da Renamo que é meu vizinho, eu tenho que conversar com ele. Se há um da Frelimo que é vizinho do MDM tem que conversar com ele, tem que conversar os dois ou os três. Ter ideais divergentes não é proibido, é preciso saber conjugar essas ideias para o bem comum da nossa população.

A Constituição da República e as demais leis podem ser boas ou menos boas, melhores, etc, mas o seu melhoramento só pode ser feito em paz numa discussão franca não para obter ganhos imediatos. O que é preciso é irmos discutindo para que cada vez mais as leis nos aproximem a um consenso de maneira a obter vantagens para toda gente.

O BOM SENSOVAI PREVALECER

Não há iminência de um conflito armado em Moçambique por estas alturas?
Eu continuo a ser aquele optimista que pensa que o bom senso sempre vai prevalecer. Então, estou com muita esperança de que, apesar de todas as ameaças, não há condições para guerra em Moçambique.

Talvez pelas ameaças alguns querem ganhar algo que não ganhariam de outra maneira, mas creio que não há condições para a guerra. Não sei se há um grupo que realmente quer a guerra que não saiba quais seriam as consequências.

Ninguém sabe onde cairiam os malefícios. Podiam cair dentro das suas próprias famílias, podem cair entre os seus amigos e quantas vezes é que as armas de um grupo não mataram pessoas, parentes de pessoas desse grupo sem saber. Na guerra se faz emboscadas em que não se sabe quem está lá. Quando passa um autocarro que é emboscado a gente não sabe que é que está lá dentro, de maneiras que todos sabem que há um perigo não só para os outros, mas para si próprios e seus familiares. Portanto, a guerra é algo que deve ser posto de lado completamente e prevalecer o diálogo, a construção da confiança.

E com confiança, nós não precisamos de outra defesa, senão aquela que está prevista dentro da lei, cujos instrumentos são criados para defender a nós todos. Podemos discutir como aperfeiçoar esses instrumentos, mas vamos sendo ordeiros.

A criação do quartel em Morrumbala pela Renamo não é um sinal que aponta para a direcção da guerra?
Bom, eu não sei como é que será esse quartel, não vou ser muito conclusivo, mas sou contra a existência de qualquer outro exército que não seja o legalmente reconhecido na Constituição.

Um quartel em Morrumbala vai ser um outro agrupamento militar, mas que não terá legalidade de um exército, não terá o direito do uso das armas, será portanto ilegal.

Não sei se poderá servir para provocar a guerra ou uma força de pressão. Trata-se de uma aberração da história, do comportamento anormal das pessoas num país democrático, onde a legalidade é prezada. Acredito que no seio dessa gente vai prevalecer o bom senso.

Senhor presidente, o líder da Renamo, Afonso Dhlakama, parece ter muito apreço pelo presidente Chissano, sempre o tratou por irmão. Recentemente estiveram juntos, por ventura lhe terá dito para aproximar as partes?
Ele disse em voz alta que eu devia transmitir ao Presidente Nyusi que ele estava disponível para o diálogo. Depois de ter assegurado esta disponibilidade, que até eu aplaudi, ele começou a qualificar a sua disponibilidade, o que não é bom.

Na hora das refeições estivemos na mesma mesa e passei-lhe uma palavrinha para dizer que era de opinião que ele devia aceitar o encontro para discutirem, sem impor condições, porque se tratava de acção de confiança para construir o melhor que queremos para o nosso país.

Portanto, trocamos essas pequenas impressões e aparentemente recebeu-as alegremente com todos sorrisos, abraços e espero que esteja a reflectir nas nossas conversas. Aliás, houve pessoas que falaram com ele com mais dureza como foi o caso do próprio arcebispo da Beira, Dom Jaime Pedro Gonçalves, que falou fortemente sobre as pessoas que se recusam a terem encontro, embora ele tivesse dito que ambas as partes parece que se recusam a ter encontro, mas para quem conhece e ouviu as declarações, pesou mais desta vez para o senhor Afonso Dhlakama, porque ele é que disse que não vai para o encontro e quando recebe pressões diz que iria mas põe condições que dificultam esse encontro.

Oxalá que ele consiga ter outros meios de comunicação porque eu já transmiti ao Presidente Nyusi o que ouvi da boca de Dhlakama, encorajando o Presidente Nyusi a continuar aberto para recebê-lo para negociarem, discutirem, embora alguém tenha dito, e talvez disse bem, que reconciliação não se negoceia, mas constrói-se. Deve-se reconstruir e para isso é preciso colocar à parte os condicionalismos unilaterais que se colocam como barreiras.

ACORDO DE ROMAFOI CUMPRIDO

Senhor presidente Chissano, o líder da Renamo tem estado a reivindicar algo que tem aver com o AGP. Rubricaram juntos há 23 anos em Roma. Alguma coisa há ainda por reivindicar nesse acordo que possa sustentar esse extremar de posições?
Não sei de tudo que se publica na Imprensa sobre as declarações de Afonso Dhlakama, mas no pouco que tenho ouvido não encontrei nada de concreto que dissesse respeito ao acordo de Roma que não tivesse sido comprido e acho que é preciso sentarem-se as partes e abrirem o acordo.
Tem que estar em frente ao acordo e ler-se linha por linha para se descobrir se houve alguma falha.

Está a falar de se revisitar o acordo?
Por exemplo, durante muito tempo a Renamo tem se defendido quando acusado de estar na posse ilegal das armas e tem dito que o acordo lhe dá esse direito de ter posse de armas, mas o acordo foi muito claro quando disse que os dirigentes da Renamo seriam protegidos por seus próprios homens que teriam posse de armas até às primeiras eleições e essas aconteceram em 1994.

Portanto, a partir daquele momento já deviam deixar de ter aquelas armas porque já não tem nenhuma base legal porque o acordo estabeleceu o prazo para o porte dessas armas e a finalidade era dar confiança à Renamo que durante o processo eleitoral não haveria nenhum perigo para eles e que depois das eleições continuariam seguros e para essa parte nós tínhamos falado na integração dos homens da Renamo na Polícia, que estariam sob o comando da polícia, do Governo, mas seriam homens conhecidos e que podiam se seleccionar alguns para garantir a segurança dos seus líderes, mas tudo seria legal, com as armas registadas.

Portanto, seriam homens da Polícia, já não seriam ilegais, mas da confiança da Renamo como hoje existe o adjunto chefe do Estado Maior -General da proveniência da Renamo. Portanto, não seria essa pessoa que irá constituir perigo para o líder da Renamo, assim seria na Polícia, sobretudo, aquela que seria seleccionada para proteger o próprio Dhlakama.

Isto está a ser dificultado porque a Renamo não quer cooperar, quer ficar com as armas, eu penso que há uma contradição muito grande de um partido que se chama democrático e ao mesmo tempo esteja armado. Tem recorrido a dizer que há exército da Frelimo e da Renamo, mas não existe exército da Frelimo. As pessoas são recrutadas nas aldeias, nos distritos para irem as forças armadas e quem sabe se alguns ou muitos desses que se voluntariaram-se vem das hostes da Renamo. Politicamente podem ser seguidores ou apoiantes da Renamo, há muitos, nós vemos muitos jovens que apoiam a Renamo e ninguém disse que são proibidos de irem às forças armadas e a entrada é voluntária. O recenseamento não pergunta de que partido é um jovem que quer ingressar nas fileiras das forças armadas. Portanto, exército da Frelimo se algum dia houve, já era, não é agora. Há muitos jovens recrutados que estão nas forças armadas e nós não conhecemos.

Foi o presidente que trouxe a paz e manteve até ao fim do seu mandato e esta situação prevaleceu até cerca de vinte anos. De lá para cá voltamos a ter conflito. O que terá falhado?
Creio que não falhou nada. Penso que o adversário político chegou a um desespero e que deve ter pensado que, sem o uso da violência, não poderá ter apoio.

Pode estar recordado que nas eleições de 1994, tivemos um Parlamento quase metade para metade. Por quê? Porque houve zonas onde a Renamo nem se quer deixou a Frelimo ir fazer campanha e mantinha essas zonas sob forças das armas e viu que esse método funcionou e que está a querer voltar fazer funcionar agora e não é por acaso que está escolhendo essas mesas áreas para fazer lembrar as populações daquele tempo como eles agiam.

Estão nessas zonas a mobilizar com as armas e a dizer claramente que vão tomar o poder mesmo que seja à força, então.

Essa palavra da força intimida e o processo de intimidação foi usado no passado, não só pela Renamo, mas também pelos nossos inimigos. Creio que deve ser uma das coisas que querem repetir agora.
Dizem que no dia que deixarem as armas, não terão grande valor, então, o valor deles está associado à posse de armas e à sua utilização nem que seja para ameaçar o Governo.

Bom, isso é que nós estamos a ver à distância, mas pode haver outros interesses económicos envolvidos para dar força à Renamo, porque estas declarações de que vão governar o país , nem que seja à força, querem dizer que devem estar a confiar alguma coisa.

Há possibilidade de ter algum apoio externo?
Não sei, mas ouvi o presidente da Renamo uma vez a falar de mineração, então, se tem a mineração quer dizer que tem fonte de rendimento e não sei se essa mineração é legal ou ilegal. Se a comercialização é feita como dever ser.

Digo isso porque vimos outras guerras na base dessa mineração:  Serra Leoa, Angola. Se alguém diz que vive de mineração, tenho turmalinas, não o quê, cavo todos os dias, dá para ver que quando eu falava de interesses económicos estava a pensar nisso.

Onde há essas matérias para comercializar devem ter compradores, talvez daí, as forças externas podem estar ligadas através de um negócio que pode haver nesse sentido, porque tenho estado a tentar ver onde é que o senhor Dhlakama encontra tanto dinheiro para fazer o que tem estado a fazer ultimamente.

Eu que sou optimista, não corro para o mais negro que seria a intervenção externa, mas digo que cá dentro é possível como fazia Savimbi para encontrar recursos par se sustentar e isso é o que ele próprio revelou.

Senhor presidente, depois do AGP como é que viu o Acordo de Cessação das Hostilidade Militares, assinado a um ano?
Bom, eu vi como uma tentativa de mostrar a flexibilidade por parte do Governo para criar condições para que houvesse eleições, trazer o país a um ponto que permitisse uma discussão posterior em direcção à reconciliação. Bastaria que a Renamo tivesse aceite os resultados das eleições para se permitir a continuação da discussão sobre vários pontos que interessam ao nosso país, a começar daquilo que chamam da distribuição equitativa da riqueza do país, como é que se faz isso, etc, e toda agente estaria envolvida, não só ao nível do Parlamento, mas a outros níveis.

Em Moçambique nós temos uma sociedade civil muito forte e uma vez envolvida pode nos trazer bons resultados. Há muitas coisas que podem ser discutidas sem desconfiança, mas era preciso que realmente houvesse um comportamento que obedecesse às regras democráticas.

Senhor presidente estaria disponível para, por ventura, fazer parte de um fórum que pudesse ajudar o país a se reconciliar?
Evidentemente que tenho feito isso sempre. Se houver um convite vou medir que tipo é e qual é o papel que se espera de mim e eu responderia não é? Assim no vazio é difícil dizer. Recebi uma carta do líder do PAHUMO e como escreveu para as duas partes, portanto, o Governo, na pessoa do Presidente da República, e para o próprio líder da Renamo. E escreveu também para presidente Chissano.

Eu aguardaria para ver o que é pensam as duas partes sobre alguém de fora meter-se onde já estão a fazer trabalhos e deve ser muito trabalho que o líder do PAHUMO não sabe e eu também não sei.

Vamos ver quais serão as iniciativas. Se me chamarem vamos conversar sobre isso…

E se vier do líder da Renamo?
É a mesma coisa. Vou ler o que é que está por dentro, o que é que ele pede que eu faça. Já disse que ele pediu-me para trazer um recado aqui, embora tenha feito em voz alta e parecia que não era pessoal mas em voz alta disse que está ali o Chissano para ir dizer ao Presidente Nyusi. Eu já disse ao Nyusi para eles dialogarem.

Qual é a mensagem que gostava de deixar para os moçambicanos a propósito dos 23 anos do AGP?
Primeiro: que o nosso povo pudesse revisitar o acordo para compreender o que é que diz este documento, porque muitos se deixam enganar por interpretações que se deixam no ar sem olhar para o próprio AGP.

Segundo: que não desista da exigência de paz, da manutenção da paz. Os apelos devem ser consistentes e o povo deve demonstrar que não quer guerra e nem quer ameaça de guerra.
Mesmo os elementos da Renamo devem recusar essa guerra, devem recusar as ameaças do seu próprio partido, assim como os próprios líderes devem recusar qualquer ameaça de outros partidos ou do próprio Governo se ameaçar a guerra.

O povo deve permanecer firme na defesa do estado do direito que nós estamos a construir, pode não estar perfeito, mas estamos a construir, não se deve atropelar no meio desta construção que estamos a realizar e que custou muito para chegar aqui.

Nós não tínhamos juristas, juízes, tribunais. A nossa polícia não sabia o que é lei. Hoje temos uma academia de polícia que está a ensinar o que é lei, temos mais polícias disciplinados que os indisciplinados, portanto, nós não devemos nos desesperar na construção do estado do direito.x

Nenhum comentário: