27 de
Setembro de 2015, Jornal Domingo
http://www.jornaldomingo.co.mz (Moçambique)
O signatário
do Acordo Geral da Paz (AGP) e antigo presidente da República, Joaquim Alberto
Chissano, defende não haver condições para a guerra no país, apesar de ameaças
nesse sentido, protagonizadas pela liderança da Renamo.
Chissano
que falava em exclusivo para a Rádio Moçambique por ocasião do vigésimo
terceiro aniversário da assinatura do AGP diz que ninguém está interessado em
sustentar a guerra em Moçambique ao mesmo tempo que faz uma incursão em torno
dos malefícios da guerra. Resgata algumas partes do acordo assinado em Roma, a
4 de Outubro de 1992. Acompanhe, em discurso directo, extractos da conversa
conduzida por Filipe Mabutana.
Senhor Presidente Chissano, 23 anos após a assinatura do
Acordo Geral de Paz (AGP) acha que Moçambique está em paz?
Moçambique
está em paz relativa. Como já disse muitas vezes, a paz não é ausência de
guerra. Tem paz porque não estamos em guerra, há sobressaltos de guerra aqui e
acolá, as pessoas vivem agora inseguras por causa de repetidas ameaças à paz.
Isso faz com que
o povo viva em sobressaltos sem ter a certeza do amanhã.
Aliás, foi
por isso que criamos a Fundação Joaquim Chissano para se dedicar à promoção da
paz e as pessoas perguntavam-se por que promoção da paz se não estamos em
guerra. É que a paz precisa de ser regada, promovida todos os dias e hoje
falamos da necessidade da criação cultura de paz.
Portanto
estamos numa luta permanente pela consolidação da paz, paz entendida em toda
sua extensão. É preciso que haja paz no interior de cada um, paz em cada
família, comunidade. Se conseguirmos isso, não haverá lugar à violência, mas
neste momento vivemos momentos de desconfianças que não permitem que as pessoas
sentam e discutam em profundidade. Todos queremos paz, unidade, integração e
que ninguém devia puxar por armas para fazer valer o seu ponto de vista.
No passado,
utilizamos as armas para nos ver livres da ocupação estrangeira no país. Mesmo
nos anos 1983,1984, o presidente Samora Machel empenhou-se para dizer olha nós
não queremos ter a violência estrangeira no nosso país, não queremos a
violência, ocupação estrangeira, não queremos portanto que o Apartheid guie a
marcha da nossa história.
Marcha da nossa história?
Queremos ser
nós, moçambicanos, a guiar a nossa própria história. Foi assim que começaram as
discussões com a Renamo e começaram mesmo em Pretória depois dos contactos que
foram feitos e houve uma paciência nessa altura até que presidente Samora
morreu.
Foi preciso
paciência e quando eu fiquei Presidente da República continuei com os mesmos
passos que culminaram com a assinatura do acordo em 1992, mas logo ali
reconheci que era preciso continuarmos o diálogo, não só entre duas pessoas ou
entre dois partidos, mas que abrangesse toda a população porque a reconciliação
nacional que é o que devemos continuar a batalhar para conseguir no seio do
povo.
Não basta
chamar reconciliaçãouma assinatura de um acordo entre o Governo e a Renamo.
Reconciliação tem que ser no seio do povo, porque o povo tem que viver junto.
Se há um membro da Renamo que é meu vizinho, eu tenho que conversar com ele. Se
há um da Frelimo que é vizinho do MDM tem que conversar com ele, tem que
conversar os dois ou os três. Ter ideais divergentes não é proibido, é preciso
saber conjugar essas ideias para o bem comum da nossa população.
A
Constituição da República e as demais leis podem ser boas ou menos boas,
melhores, etc, mas o seu melhoramento só pode ser feito em paz numa discussão
franca não para obter ganhos imediatos. O que é preciso é irmos discutindo para
que cada vez mais as leis nos aproximem a um consenso de maneira a obter
vantagens para toda gente.
O BOM SENSOVAI PREVALECER
Não há iminência de um conflito armado em Moçambique por
estas alturas?
Eu continuo a
ser aquele optimista que pensa que o bom senso sempre vai prevalecer. Então,
estou com muita esperança de que, apesar de todas as ameaças, não há condições
para guerra em Moçambique.
Talvez pelas
ameaças alguns querem ganhar algo que não ganhariam de outra maneira, mas creio
que não há condições para a guerra. Não sei se há um grupo que realmente quer a
guerra que não saiba quais seriam as consequências.
Ninguém sabe
onde cairiam os malefícios. Podiam cair dentro das suas próprias famílias,
podem cair entre os seus amigos e quantas vezes é que as armas de um grupo não
mataram pessoas, parentes de pessoas desse grupo sem saber. Na guerra se faz
emboscadas em que não se sabe quem está lá. Quando passa um autocarro que é
emboscado a gente não sabe que é que está lá dentro, de maneiras que todos
sabem que há um perigo não só para os outros, mas para si próprios e seus
familiares. Portanto, a guerra é algo que deve ser posto de lado completamente
e prevalecer o diálogo, a construção da confiança.
E com
confiança, nós não precisamos de outra defesa, senão aquela que está prevista
dentro da lei, cujos instrumentos são criados para defender a nós todos.
Podemos discutir como aperfeiçoar esses instrumentos, mas vamos sendo ordeiros.
A criação do quartel em Morrumbala pela Renamo não é um
sinal que aponta para a direcção da guerra?
Bom, eu não
sei como é que será esse quartel, não vou ser muito conclusivo, mas sou contra
a existência de qualquer outro exército que não seja o legalmente reconhecido
na Constituição.
Um quartel em
Morrumbala vai ser um outro agrupamento militar, mas que não terá legalidade de
um exército, não terá o direito do uso das armas, será portanto ilegal.
Não sei se
poderá servir para provocar a guerra ou uma força de pressão. Trata-se de uma
aberração da história, do comportamento anormal das pessoas num país
democrático, onde a legalidade é prezada. Acredito que no seio dessa gente vai
prevalecer o bom senso.
Senhor presidente, o líder da Renamo, Afonso Dhlakama,
parece ter muito apreço pelo presidente Chissano, sempre o tratou por irmão.
Recentemente estiveram juntos, por ventura lhe terá dito para aproximar as
partes?
Ele disse em
voz alta que eu devia transmitir ao Presidente Nyusi que ele estava disponível
para o diálogo. Depois de ter assegurado esta disponibilidade, que até eu
aplaudi, ele começou a qualificar a sua disponibilidade, o que não é bom.
Na hora das
refeições estivemos na mesma mesa e passei-lhe uma palavrinha para dizer que
era de opinião que ele devia aceitar o encontro para discutirem, sem impor
condições, porque se tratava de acção de confiança para construir o melhor que
queremos para o nosso país.
Portanto,
trocamos essas pequenas impressões e aparentemente recebeu-as alegremente com
todos sorrisos, abraços e espero que esteja a reflectir nas nossas conversas.
Aliás, houve pessoas que falaram com ele com mais dureza como foi o caso do
próprio arcebispo da Beira, Dom Jaime Pedro Gonçalves, que falou fortemente
sobre as pessoas que se recusam a terem encontro, embora ele tivesse dito que
ambas as partes parece que se recusam a ter encontro, mas para quem conhece e
ouviu as declarações, pesou mais desta vez para o senhor Afonso Dhlakama,
porque ele é que disse que não vai para o encontro e quando recebe pressões diz
que iria mas põe condições que dificultam esse encontro.
Oxalá que ele
consiga ter outros meios de comunicação porque eu já transmiti ao Presidente
Nyusi o que ouvi da boca de Dhlakama, encorajando o Presidente Nyusi a
continuar aberto para recebê-lo para negociarem, discutirem, embora alguém
tenha dito, e talvez disse bem, que reconciliação não se negoceia, mas
constrói-se. Deve-se reconstruir e para isso é preciso colocar à parte os
condicionalismos unilaterais que se colocam como barreiras.
ACORDO DE ROMAFOI CUMPRIDO
Senhor presidente Chissano, o líder da Renamo tem estado
a reivindicar algo que tem aver com o AGP. Rubricaram juntos há 23 anos em
Roma. Alguma coisa há ainda por reivindicar nesse acordo que possa sustentar
esse extremar de posições?
Não sei de tudo que se publica na Imprensa sobre as declarações de Afonso
Dhlakama, mas no pouco que tenho ouvido não encontrei nada de concreto que
dissesse respeito ao acordo de Roma que não tivesse sido comprido e acho que é preciso
sentarem-se as partes e abrirem o acordo.
Tem que estar
em frente ao acordo e ler-se linha por linha para se descobrir se houve alguma
falha.
Está a falar de se revisitar o acordo?
Por exemplo,
durante muito tempo a Renamo tem se defendido quando acusado de estar na posse
ilegal das armas e tem dito que o acordo lhe dá esse direito de ter posse de
armas, mas o acordo foi muito claro quando disse que os dirigentes da Renamo
seriam protegidos por seus próprios homens que teriam posse de armas até às
primeiras eleições e essas aconteceram em 1994.
Portanto, a
partir daquele momento já deviam deixar de ter aquelas armas porque já não tem
nenhuma base legal porque o acordo estabeleceu o prazo para o porte dessas
armas e a finalidade era dar confiança à Renamo que durante o processo
eleitoral não haveria nenhum perigo para eles e que depois das eleições
continuariam seguros e para essa parte nós tínhamos falado na integração dos
homens da Renamo na Polícia, que estariam sob o comando da polícia, do Governo,
mas seriam homens conhecidos e que podiam se seleccionar alguns para garantir a
segurança dos seus líderes, mas tudo seria legal, com as armas registadas.
Portanto,
seriam homens da Polícia, já não seriam ilegais, mas da confiança da Renamo
como hoje existe o adjunto chefe do Estado Maior -General da proveniência da
Renamo. Portanto, não seria essa pessoa que irá constituir perigo para o líder
da Renamo, assim seria na Polícia, sobretudo, aquela que seria seleccionada
para proteger o próprio Dhlakama.
Isto está a
ser dificultado porque a Renamo não quer cooperar, quer ficar com as armas, eu
penso que há uma contradição muito grande de um partido que se chama
democrático e ao mesmo tempo esteja armado. Tem recorrido a dizer que há
exército da Frelimo e da Renamo, mas não existe exército da Frelimo. As pessoas
são recrutadas nas aldeias, nos distritos para irem as forças armadas e quem
sabe se alguns ou muitos desses que se voluntariaram-se vem das hostes da
Renamo. Politicamente podem ser seguidores ou apoiantes da Renamo, há muitos,
nós vemos muitos jovens que apoiam a Renamo e ninguém disse que são proibidos
de irem às forças armadas e a entrada é voluntária. O recenseamento não
pergunta de que partido é um jovem que quer ingressar nas fileiras das forças
armadas. Portanto, exército da Frelimo se algum dia houve, já era, não é agora.
Há muitos jovens recrutados que estão nas forças armadas e nós não conhecemos.
Foi o presidente que trouxe a paz e manteve até ao fim do
seu mandato e esta situação prevaleceu até cerca de vinte anos. De lá para cá
voltamos a ter conflito. O que terá falhado?
Creio que não
falhou nada. Penso que o adversário político chegou a um desespero e que deve
ter pensado que, sem o uso da violência, não poderá ter apoio.
Pode estar
recordado que nas eleições de 1994, tivemos um Parlamento quase metade para
metade. Por quê? Porque houve zonas onde a Renamo nem se quer deixou a Frelimo
ir fazer campanha e mantinha essas zonas sob forças das armas e viu que esse
método funcionou e que está a querer voltar fazer funcionar agora e não é por
acaso que está escolhendo essas mesas áreas para fazer lembrar as populações
daquele tempo como eles agiam.
Estão nessas
zonas a mobilizar com as armas e a dizer claramente que vão tomar o poder mesmo
que seja à força, então.
Essa palavra
da força intimida e o processo de intimidação foi usado no passado, não só pela
Renamo, mas também pelos nossos inimigos. Creio que deve ser uma das coisas que
querem repetir agora.
Dizem que no
dia que deixarem as armas, não terão grande valor, então, o valor deles está
associado à posse de armas e à sua utilização nem que seja para ameaçar o
Governo.
Bom, isso é
que nós estamos a ver à distância, mas pode haver outros interesses económicos
envolvidos para dar força à Renamo, porque estas declarações de que vão
governar o país , nem que seja à força, querem dizer que devem estar a confiar
alguma coisa.
Há possibilidade de ter algum apoio externo?
Não sei, mas
ouvi o presidente da Renamo uma vez a falar de mineração, então, se tem a
mineração quer dizer que tem fonte de rendimento e não sei se essa mineração é
legal ou ilegal. Se a comercialização é feita como dever ser.
Digo isso
porque vimos outras guerras na base dessa mineração: Serra Leoa, Angola.
Se alguém diz que vive de mineração, tenho turmalinas, não o quê, cavo todos os
dias, dá para ver que quando eu falava de interesses económicos estava a pensar
nisso.
Onde há essas
matérias para comercializar devem ter compradores, talvez daí, as forças
externas podem estar ligadas através de um negócio que pode haver nesse
sentido, porque tenho estado a tentar ver onde é que o senhor Dhlakama encontra
tanto dinheiro para fazer o que tem estado a fazer ultimamente.
Eu que sou
optimista, não corro para o mais negro que seria a intervenção externa, mas
digo que cá dentro é possível como fazia Savimbi para encontrar recursos par se
sustentar e isso é o que ele próprio revelou.
Senhor presidente, depois do AGP como é que viu o Acordo
de Cessação das Hostilidade Militares, assinado a um ano?
Bom, eu vi
como uma tentativa de mostrar a flexibilidade por parte do Governo para criar
condições para que houvesse eleições, trazer o país a um ponto que permitisse
uma discussão posterior em direcção à reconciliação. Bastaria que a Renamo
tivesse aceite os resultados das eleições para se permitir a continuação da
discussão sobre vários pontos que interessam ao nosso país, a começar daquilo
que chamam da distribuição equitativa da riqueza do país, como é que se faz
isso, etc, e toda agente estaria envolvida, não só ao nível do Parlamento, mas
a outros níveis.
Em Moçambique
nós temos uma sociedade civil muito forte e uma vez envolvida pode nos trazer
bons resultados. Há muitas coisas que podem ser discutidas sem desconfiança,
mas era preciso que realmente houvesse um comportamento que obedecesse às
regras democráticas.
Senhor presidente estaria disponível para, por ventura,
fazer parte de um fórum que pudesse ajudar o país a se reconciliar?
Evidentemente
que tenho feito isso sempre. Se houver um convite vou medir que tipo é e qual é
o papel que se espera de mim e eu responderia não é? Assim no vazio é difícil
dizer. Recebi uma carta do líder do PAHUMO e como escreveu para as duas partes,
portanto, o Governo, na pessoa do Presidente da República, e para o próprio
líder da Renamo. E escreveu também para presidente Chissano.
Eu aguardaria
para ver o que é pensam as duas partes sobre alguém de fora meter-se onde já
estão a fazer trabalhos e deve ser muito trabalho que o líder do PAHUMO não
sabe e eu também não sei.
Vamos ver
quais serão as iniciativas. Se me chamarem vamos conversar sobre isso…
E se vier do líder da Renamo?
É a mesma
coisa. Vou ler o que é que está por dentro, o que é que ele pede que eu faça.
Já disse que ele pediu-me para trazer um recado aqui, embora tenha feito em voz
alta e parecia que não era pessoal mas em voz alta disse que está ali o Chissano
para ir dizer ao Presidente Nyusi. Eu já disse ao Nyusi para eles dialogarem.
Qual é a mensagem que gostava de deixar para os
moçambicanos a propósito dos 23 anos do AGP?
Primeiro: que
o nosso povo pudesse revisitar o acordo para compreender o que é que diz este
documento, porque muitos se deixam enganar por interpretações que se deixam no
ar sem olhar para o próprio AGP.
Segundo: que
não desista da exigência de paz, da manutenção da paz. Os apelos devem ser
consistentes e o povo deve demonstrar que não quer guerra e nem quer ameaça de
guerra.
Mesmo os
elementos da Renamo devem recusar essa guerra, devem recusar as ameaças do seu
próprio partido, assim como os próprios líderes devem recusar qualquer ameaça
de outros partidos ou do próprio Governo se ameaçar a guerra.
O povo deve
permanecer firme na defesa do estado do direito que nós estamos a construir,
pode não estar perfeito, mas estamos a construir, não se deve atropelar no meio
desta construção que estamos a realizar e que custou muito para chegar aqui.
Nós não
tínhamos juristas, juízes, tribunais. A nossa polícia não sabia o que é lei.
Hoje temos uma academia de polícia que está a ensinar o que é lei, temos mais
polícias disciplinados que os indisciplinados, portanto, nós não devemos nos
desesperar na construção do estado do direito.x
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