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de julho de 2019 : 17h50, Cafezinho https://www.ocafezinho.com (Brasil) https://www.ocafezinho.com/2019/07/08/salve-se-quem-puder-o-cinismo-bolsonarista-nos-conduz-a-excecao/
Em 2016,
durante a Comissão Especial de Impeachment de Dilma Roussef, José Eduardo
Cardozo, então Advogado Geral da União e protagonista na defesa jurídica da
Presidente, denunciava um sistema acusatório viciado, que travestia um golpe
com a aparência de uma ação constitucional. Cardozo respondia às provocações
que lhe dirigiam parlamentares após ter chamado o processo de “golpe de abril”.
Discutia-se, portanto, o cinismo.
Quando se
acusa o processo aberto contra Dilma de golpe não se questiona a validade do
instrumento, mas seu uso político para afastar uma presidente democraticamente
eleita que já não agradava tanto assim. Por isso, é possível avaliar que o
Impeachment de Dilma Roussef se deu na forma de um escandaloso (e escancarado)
exemplo de cinismo criminoso com fins políticos.
Durante
todo o processo, a Comissão Especial de Impeachment, relatada por Antonio Anastasia
(lacaio de Aécio Neves e opositor de Dilma) mostrou-se um jogo de cartas
marcadas. É possível assistir
à angústia da defesa da petista nos documentários
“O Processo”, de Maria Augusta Ramos e “Democracia em Vertigem”, de Petra
Costa.
O termo
“golpe” se popularizou como alcunha do Impeachment de Dilma e até hoje é
utilizado para ilustrar, na linguagem, que se tratava de um processo ilegal que
se valia de um instrumento constitucional. Era necessário tirar Dilma, porém
não havia, ainda, o sangue frio necessário para um golpe à queima roupa.
Recorreram a um teatro.
Tanto
membros da defesa jurídica quanto da defesa política (os senadores e senadoras
que brigavam para derrubar o relatório de Anastasia na Comissão) sabiam que
lutavam em vão e que deveriam, portanto, aproveitar o espaço para fazer
política, pois se tratava disso todo o teatro armado desde a votação na Câmara,
liderada por Eduardo Cunha (hoje preso), que autorizou a abertura do processo.
Na política se luta com política.
Àquela
altura, já deveríamos ter acendido as luzes de atenção para essa nova, porém
velhíssima, forma de fazer política. O cinismo cumpre seu papel quando mantém a
imagem de um ideal na luta política anticorrupção, anti-sistêmica e quando
manipula a população indignada, mas que não presta muita atenção nos jogos do
poder. Naquele momento, era crucial tirar Dilma, como ficou provado depois, e
colocar Michel Temer, o presidente mais impopular da história do Brasil, para
estancar a sangria das investigações da Lava Jato – a operação que se revelou
outro grande cinismo.
O cinismo
como modus operandi manipula a verdade e, pior, se traveste de
verdade. Manipula a opinião pública para levar adiante projetos perversos de
poder, atendendo aos interesses de poderosos da direita que, jogando limpo,
jamais conseguiriam o apoio da população. O Movimento Brasil Livre (MBL) foi o
protagonista desta guinada ao cinismo nos jogos políticos brasileiros.
Movimentaram, por meio de um noticiário fantasioso, uma massa indignada,
perdida, que buscava mudanças e a alimentaram com ódio, gerando a demonização
da classe política e destruição da reputação daqueles que não convergiam com
suas ideias de Estado (leia-se projeto de poder). Promoviam a perseguição,
formaram uma milícia digital.
Herança Maldita: de MBL a Bolsonaro
É herança
do MBL o fantasma do comunismo, aquele mesmo que assombrou o Brasil em 1964,
ter voltado à pauta. Os governos petistas nunca chegaram nem perto de serem
governos comunistas ou socialistas. Questiono se tenham sido, inclusive, de esquerda.
Mas o MBL ressuscitou, com restos mortais dos tempos da Ditadura Militar, o
espírito cívico que queria ver o comunismo bem longe do poder – muito embora
ele nunca tenha existido com força para tal. Quando conquistaram a opinião
pública para a queda de Dilma Roussef ao movimentar o país com manifestações
“democráticas”, apartidárias e elitistas, arrastaram no lastro uma legião de
seguidores que, a partir de então, abaixaria a cabeça para toda sorte de
desinformação e doutrinação que fosse publicada por eles.
As
figuras centrais do MBL, Kim Kataguiri e Fernando Holiday, para a surpresa de
ninguém, se elegeram parlamentares com o capital eleitoral construído por sua
“militância”. Kim é Deputado Federal pelo DEM, uma super velha política de
direita e Holiday é vereador em São Paulo pelo mesmo partido. Ambos se calaram
diante dos casos de corrupção do presidente Michel Temer e tampouco se
engajaram nas tentativas de impedi-lo. Trata-se de cinismo político e criminoso
agravado pelo fato de Dilma Roussef nunca ter sido presa ou investigada após
ser afastada do cargo. Michel Temer foi preso duas vezes e segue investigado. O
fato concreto de Dilma ter sido absolvida das acusações que lhe imputavam após
todo o teatro nunca foi discutido senão na bolha esquerdista.
Diante do
fantasma do comunismo, dos escândalos de corrupção investigados pela Operação
Lava Jato, da impopularidade de Michel Temer na presidência, surgia cada vez
mais o desejo de que alguém aparecesse para salvar tudo. Nada melhor que um
grande cínico. A população não queria mais ninguém moderado, ao centro, mas sim
aos extremos, à extrema direita ou, como se autointitula hoje, à direita
verdadeira. Começa a nascer o Bolsonarismo, que tem em sua figura central um
homem mediano, incapaz, mas cínico o suficiente para abarcar todos os medos
fantasiosos e delírios em uma só figura.
Os
grandes monstros criados para distrair e atrair a população aos seus discursos
passaram, claro, pela moral e pela religião. A homossexualidade, a pedofilia, o
aborto, a ideologia de gênero, a doutrinação ideológica esquerdista, a ameaça
anticristã no Brasil (risos), a demonização e perseguição de artistas, o
comunismo fantasioso, tudo muito bem construído e disseminado. São monstros
símbolo do cinismo político que elegeria Bolsonaro.
Ainda
hoje é difícil desmentir grandes símbolos deste cinismo, como o Kit Gay, a
doutrinação ideológica nas escolas, as aberrações associadas a homossexuais, a
mamadeira de piroca (essa sempre me surpreende e me faz pensar que quem
acredita é tão cínico e perturbado quanto quem a inventa), e outros exemplos
que chamamos de fake news. Não são apenas fake news, são parte de um discurso
que atende a um projeto de poder. Diante do questionamento, inventam mais
monstros, respondem com alguns gritos e outros tantos memes e, pronto,
lacraram. Não dão respostas satisfatórias, não prestam esclarecimentos e seguem
impunes.
O cinismo bolsonarista esconde um monstro maior: a Ditadura
O
Ministro Sergio Moro talvez seja hoje um dos maiores exemplos do cinismo
bolsonarista. Persona central nas discussões que envolvem o governo, Moro
começou o ano como o grande nome de Bolsonaro. Era o coringa do presidente em
meio a tantas controvérsias. Para quem havia apoiado Bolsonaro de forma
acanhada, Moro cumpriu o papel de fiel da balança. Trouxe ao ministério algum
respaldo da grande luta “contra tudo isso que ta aí” que representava. Por
outro lado, mesmo quem ainda não desconfiava da parcialidade do ex-juiz começou
a estranhar, após ter condenado Lula e agido para a manutenção da sentença, que
ele tenha aceitado o convite para ser Ministro da Justiça de seu maior opositor
nas eleições.
Como os
escândalos envolvendo o Governo são comuns e frequentes desde o primeiro dia,
Moro provou ser um grande cínico. De laranjas a envolvimento com a milícia,
passando pelos desatinos proferidos pelo presidente, Moro sentou-se à cadeira
ao lado de Ônyx Lorenzoni, investigado por corrupção, e de Ricardo Salles, o
Ministro do Meio Ambiente condenado por crimes ambientais. É também colega de
Damares Alves, a Ministra dos Direitos Humanos que persegue aqueles que não
compactuam com sua visão fundamentalista de mundo. Moro optou por calar-se
diante de tudo isso.
Se antes
gostava de dar opinião sobre tudo, seu silêncio se tornou cada vez mais
ensurdecedor. A cada investida de jornalistas, o Ministro se esquiva de alguma
forma ultrajante: repete frases de efeito sobre a confiança no presidente, se
furta a comentar os escândalos do governo e chega a rir, com deboche, diante
daqueles que o interpelam.
Moro chegou, no entanto, ao limite de seu
desgaste desde que o site The Intercept Brasil começou a publicar a série de
reportagens Vaza Jato, que explora a troca de mensagens entre Moro, Deltan
Dallagnol (procurador da Lava Jato) e outros membros da Força Tarefa e mostra
um grande esquema de colaboração entre parte julgadora e acusação no caso de
Lula. Hoje, Moro é o maior escândalo do Governo e se transformou num fantasma a
arrastar correntes.
É verdade
que Bolsonaro não precisa de grande ajuda para escândalos. É da práxis do
bolsonarismo estar rodeado de escândalos para concluir a narrativa. O
presidente se comunica pelo Twitter e por lives na internet. Quase sempre para
atacar alguém ou se defender de polêmicas criadas por ele ou seus filhos. Criam
cortinas de fumaça o tempo todo na tentativa de manter a imagem que ostentam:
não têm medo de briga nem da verdade, são polêmicos assumidos, não ligam para
direitos humanos porque isso é uma bobagem e acham tudo um grande “mimimi
esquerdista”.
Com essa narrativa
alimentada, temos um homem mediano no poder que não representa, nem de longe, o
que deveria representar um presidente. Bolsonaro cumpre muito mais o papel de
influenciador digital de extrema-direita do que o de Presidente da República.
No entanto, a piada deixa de ser engraçada quando todo esse cinismo esconde
passos perigosos rumo a um estado totalitário, que persegue seus opositores,
dilacera a vida dos pobres e coloca o aparato do estado para matar a serviço
dos interesses de poderosos, inclusive estrangeiros.
Os
primeiros sinais foram os ataques a Cultura e a Educação, com o fim do
Ministério da Cultura, ataques orquestrados a artistas e os cortes das
universidades e órgãos do MEC – claro, também com ataques a estudantes e
professores. Desde a campanha (que parece não ter acabado), os ataques à
oposição, os ditos “vermelhos”, são constantes e a perseguição a jornalistas
rotineira. O presidente e seus filhos chegaram a perseguir, publicamente,
professores da rede pública, divulgando nome e local de trabalho no Twitter.
Também incitaram milhões de seguidores a atacar e linchar virtualmente alguns
jornalistas. O simples fato de um jornalista discordar do presidente é motivo
para ser bloqueado por ele nas redes sociais e ter sua conta invadida por mensagens
de ódio. Este mesmo que vos escreve já foi vítima algumas vezes de ataques e
comentários ofensivos.
Quando a
família se confunde com o Planalto e temos um Presidente que mistura sua casa
com a Presidência da República, fazendo do Poder o playground de seus filhos,
temos o exemplo de que a política de carreira pode ter um alto custo para os
brasileiros se perpetuada.
É
preocupante o avanço deste governo e suas cortinas de fumaça ancoradas nas
declarações absurdas do presidente que, ainda assim, encontram alguma
ressonância. Para distrair das pautas dos vazamentos de Moro, da Reforma da
Previdência, dos agrotóxicos liberados, do desmatamento desenfreado, da
recessão que se avizinha, dos escândalos com laranjas e milicianos, cada dia um
novo jogo no discurso: tem que ter Ministro evangélico no Supremo para barrar
pautas progressistas, trabalho infantil é legal, japonês tem pau pequeno,
Brasil é uma virgem que todo tarado quer, e por aí seguimos.
A passos
largos, enquanto discutimos os grandes absurdos que representa Bolsonaro, o
governo avança em pautas delicadas e que nos colocam em uma situação de risco.
Acredito que vivemos num Estado de suspeição desde o golpe que derrubou Dilma,
que se consolida num Estado exceção com a eleição de Bolsonaro. Uma eleição
marcada por fraudes, disseminação de fake news e manipulação midiática dos
eleitores não deveria ser levada a sério, ou, pelo menos, deveria ser
investigada.
É verdade
também que a Vaza Jato, do The Intercept, também se tornou uma cortina de
fumaça para o Governo. Enquanto Glenn Greenwald prestava esclarecimentos a uma
sessão lotada de deputados na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, a
Comissão da reforma da previdência iniciava sessão com plenário esvaziado e
audiência baixa. Glenn, a propósito, enfrentou uma dura tarde naquela sessão:
teve de lidar com o escárnio e o cinismo dos deputados que apoiam o governo
irrestritamente e que já fazem parte deste jogo sujo: basta contar uma mentira,
distorcer alguns fatos, falar de homossexualidade e o discurso vencerá.
Quando
chegou a vez de Moro falar ao parlamento, um show de mediocridade tomou conta
da sessão. Moro se esquivava de todas as perguntas, ria de parlamentares, não
respeitou a casa em que estava e se apresentou numa calma impassível de quem
sabe que nada será levado adiante. Mas vejamos porque não: a Polícia Federal,
subordinada a Moro, se recusa a investigar o conteúdo vazado pelas reportagens
da série Vaza Jato, que já apontaram absurdos suficientes para destronar o
ministro. De sugestão de conduta a dicas de prova, Moro também escolheu
delações, pediu para encerrar investigações e agiu em acordo com a Rede Globo
para maximizar a força da operação Lava Jato e, por consequência, sua própria
imagem.
O Brasil
vive tempos de absoluto obscurantismo e valorização da mediocridade. O projeto
de poder que aí está se alimenta de golpes constitucionais, até que se
estabeleça um golpe de poder de fato. Os ataques à diversidade, o desmonte da
educação, da ciência, cultura, das políticas públicas para as mulheres, a
população negra e LGBT, os ataques ambientais, as vendas de nosso patrimônio, a
união do poder máximo a milícias, já deveriam ter nos colocado em estado máximo
de atenção.
Na semana
em que Governo pormenoriza e faz piada com o tráfico internacional de cocaína
em avião presidencial, que o exército brasileiro homenageia oficial de
alta patente do nazismo em seus meios de comunicação oficiais e em que Moro
resolve perseguir um jornalista que lhe faz acusações quando deveria se afastar
do cargo e deixar a Polícia Federal agir com lisura, vivemos o estado puro do
cinismo que nos aproxima, por fim, da formalização de um estado autocrático,
pois nele já vivemos. O salve-se quem puder chegou.
*Guto Alves: 27, é jornalista e produtor no Rio de Janeiro Twitter: @gutoalvesp
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